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06 setembro 2022

Independência & Independências




Por
DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]
 

A consolidação da nossa independência, através de D. Pedro I, foi marcada por conflitos em diferentes províncias [2]

Além de alterar o cotidiano carioca, a transferência da Corte portuguesa teve outros efeitos bem mais profundos sobre a Colônia. O preço pago pelo apoio inglês, não só na proteção aos navios que trouxeram a família real, como também no combate às tropas francesas estacionadas em Portugal, era alto. Ele implicou tratados comerciais, nos quais d. João previa a abertura dos portos “às potências que se conserva[ssem] em paz e harmonia com a minha real coroa”, e ainda em tarifas alfandegárias menores para negociantes britânicos. Se isso era desastroso para a economia portuguesa, o mesmo não pode ser dito em relação ao Brasil. Na prática, a nova medida significava a desativação do “exclusivo comercial”, mecanismo através do qual a Metrópole impunha os preços – quase sempre inferiores aos do mercado internacional – aos produtos coloniais. É por essas razões que se costuma afirmar que nossa independência teria ocorrido nesse momento, em 1808, e que 1822 teria representado apenas sua consolidação.
Vejamos o que ocorreu entre essas duas datas.
Vale a pena lembrar que, do ponto de vista político, a vinda da Corte teve um efeito ambíguo. Não se tratava de uma simples visita da rainha, “d. Maria, a louca”, e de d. João, príncipe regente, com seus demais familiares e lacaios. Longe disso, a transmigração implicou a transferência de inúmeros funcionários régios, boa parte deles pertencente à nata da administração e da aristocracia portuguesas. Uma vez instalada, a nova Corte deu origem a uma situação inusitada: o Império colonial português passa a ter duas sedes, uma em Lisboa e outra no Rio de Janeiro. Enquanto a ameaça napoleônica pairou sob o mundo europeu, houve justificativa para tal situação. A partir de 1815, porém, ela deixou de existir. Essa data marca a derrota definitiva de Napoleão e, ao mesmo tempo, o progressivo restabelecimento dos sistemas monárquicos europeus.
Na América, a implantação da Corte tropical coincidiu com a difusão da produção cafeeira em larga escala. Para os servidores do regente não era difícil conseguir a confirmação de sesmarias, transformadas rapidamente em imensas fazendas de café. Isso para não mencionarmos a compra de terra ou então o acesso a ela via casamentos e sociedades com a elite local. Dessa maneira, a Corte que acompanhou a família real foi criando raízes no território brasileiro e formando um poderoso grupo contrário ao retorno de d. João VI. A tensa relação entre essa elite e a que permaneceu em Portugal culminou em 1820, quando tem início a Revolução do Porto. Tratava-se de um movimento liberal, voltado para a convocação de uma Assembleia Constituinte, mas que exigia o retorno imediato do rei. Um ano após sua eclosão, d. João e uma parcela significativa de sua Corte retornavam. No entanto, a dualidade de poder não havia sido extinta: como regente brasileiro ficou d. Pedro e, com ele, segmentos importantes do antigo grupo que havia fugido de Portugal. O alvo da pressão volta-se agora para o regente: em 21 de setembro de 1821, um decreto determina seu retorno imediato, na intenção de evitar o risco do retorno do Rio de Janeiro à condição de sede do Império após a morte de d. João VI. Mas d. Pedro resiste a essas pressões e, a 9 de janeiro de 1822, torna pública sua decisão de permanecer no Brasil. Nesse mesmo mês, a metrópole portuguesa nivela o Rio de Janeiro à condição das demais províncias, gesto a que o regente responde com a expulsão das tropas lusitanas do Rio. As duas cortes, dessa forma, disputam o poder, até que, em 7 de setembro, d. Pedro rompe definitivamente com a antiga pátria-mãe, sagrando-se imperador a 12 de outubro do mesmo ano.
Vista sob esse ângulo, a independência do Brasil pode ser definida como um movimento bastante elitista, quase uma disputa entre aristocratas portugueses. Uma imagem que não deixa de ser interessante, embora incompleta. Para compreendermos a especificidade de nosso processo de independência, é necessário lembrarmos que ele conviveu com outros projetos alternativos, pois, há muito, uma parte da elite colonial aspirava à ruptura com Portugal. Tais propostas de independência, contudo, tinham uma forte marca regional, como fica claro na denominação de duas delas: a Inconfidência Mineira e a Revolução Pernambucana (ocorrida em 1817).
Entre 1820 e 1822, as elites regionais tiveram dúvidas em relação a qual projeto político deveriam seguir. Paradoxalmente, mais do que a “independência” liderada por d. Pedro, o movimento português de 1820 parecia atender ao anseio de autonomia regional. De caráter liberal e constitucional, a Revolução do Porto contou com representantes coloniais, eleitos nas diversas províncias. Essas, por sua vez, passaram a ser beneficiadas pelo direito de eleger suas respectivas juntas governativas. A medida agradava em muito às elites regionais, pois, a partir de então, elas passavam a ter controle sobre o sistema político e as rendas internas das ex-capitanias.
A partir de 1821, a tendência, portanto, era de que a maior parte das classes dominantes coloniais apoiasse o governo português, deixando de obedecer às ordens emitidas pelo Rio de Janeiro. Isso, de fato, ocorreu, mas contou com um importante contraponto: o movimento constitucionalista brasileiro. O sucesso inicial da independência se deve à adesão de várias províncias à convocação da Assembleia Constituinte e Legislativa do Brasil, sugestão acatada pelo regente em 3 de junho de 1822.
A posição de d. Pedro, no entanto, era ambígua. O apoio que dava ao movimento constitucionalista era marcado por ressalvas do tipo: “a Constituição deve ser digna do meu poder”, e assim por diante. Não é de se estranhar, portanto, que, após o 7 de Setembro, as elites regionais ficassem divididas. Apoiar as cortes portuguesas significava submeter-se a um governo liberal, ao passo que acatar ao imperador implicava o risco de retorno ao absolutismo. Além disso, havia divisões nas tropas estacionadas nas diversas províncias, umas fiéis à Corte portuguesa e outras à carioca. Por isso, a independência foi seguida por uma série de guerras. No Norte e Nordeste, o processo de ruptura com Portugal esteve longe de ser tranquilo. Entre março e maio de 1823, Belém registra levantes pró-Lisboa. O mesmo ocorre no Maranhão, Piauí e Ceará, onde os conflitos armados estendem-se de outubro de 1822 a janeiro de 1823. Na Bahia, as lutas desdobram-se por quase um ano. Tais embates não pararam por aí. Na verdade, tiveram desdobramentos bem mais sérios em outras regiões, e punham em xeque a dominação das duas cortes.
A reengenharia política da independência implicava esvaziar a influência das Cortes legislativas portuguesas, criando uma similar nacional. A medida deu certo e foi auxiliada por algumas iniciativas recolonizadoras dos constituintes portugueses. A elas deve em grande parte ser atribuído o sucesso do Grito do Ipiranga, gesto que, se não contasse com o inestimável apoio das elites do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, passaria para a história como mais um berro inconsequente do autoritário d. Pedro. A independência, porém, pregou uma peça nessas elites. Um ano após ser convocada, a Assembleia Constituinte foi dissolvida e, em seu lugar, o imperador designou um pequeno grupo para redigir uma Constituição “digna dele”, ou seja, que lhe garantisse poderes semelhantes aos dos reis absolutistas. Um exemplo disso foi a criação do Poder Moderador, através do qual o monarca reservava para si, entre outras prerrogativas, o direito de nomear senadores, convocar e dissolver assembleias legislativas, sancionar decretos, suspender resoluções dos conselhos provinciais, nomear livremente ministros de Estado, indicar presidentes de província e suspender magistrados.
Não é de se estranhar, portanto, que, lá pelos idos de 1824, parte das elites provinciais encarasse a independência como um retrocesso em relação às conquistas da Revolução do Porto. Tal descontentamento, porém, não significava a luta pela “restauração”, até porque Portugal, por aquela época, também dava uma guinada rumo ao absolutismo. Em vez de voltar a obedecer a Lisboa ou continuar obedecendo ao Rio de Janeiro, a palavra de ordem agora era de independência local e proclamação da República. E é isso que ocorrerá, em Pernambuco, no ano de 1824, quando então é deflagrada a Confederação do Equador, um movimento republicano e de cunho separatista, ou federalista, que contou com a adesão de fazendeiros, homens simples e também de numerosos padres. A rápida difusão da revolta e a violenta repressão que se seguiu dimensionam o grau de descontentamento reinante. Nada mais do que seis províncias apoiam a rebelião contra o despotismo carioca; três delas, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, chegam a fornecer tropas para combater ao lado dos pernambucanos. A repressão, por sua vez, foi violentíssima, deixando com saldo centenas de mortos e dezessete condenados à forca, inclusive clérigos, como Frei Caneca.
Nos anos seguintes, o imperador recua e convoca a primeira Assembleia Legislativa, empossando-a em 1826. O federalismo, almejado pelas elites regionais, continuou, porém, a ser um sonho distante. Para complicar ainda mais o quadro político, d. Pedro, entre 1825 e 1828, enfrenta outro movimento separatista, envolvendo a Província Cisplatina. Essa rebelião, uma vez vitoriosa, dá origem ao Uruguai. A guerra torra grande quantidade de recursos públicos, sendo inclusive uma das causas da falência do Banco do Brasil em 1829. A crise financeira instala-se com o aumento vertiginoso da emissão de moedas para cobrir os gastos públicos, resultando uma inflação igualmente vertiginosa. No Rio de Janeiro, por exemplo, o preço de alimentos básicos da população pobre e dos escravos, como a farinha de mandioca e o charque, dobram em um espaço de poucos anos. O imperador torna-se cada vez mais impopular. Paralelamente a isso, o Exército, ampliado às pressas em razão das lutas contra as tropas portuguesas e grupos separatistas, foge ao controle das autoridades. Compostas em grande parte por mercenários estrangeiros, oriundos das guerras napoleônicas, e homens pobres, muitos deles pardos e negros livres, as forças armadas aliam-se às demais camadas populares nos ataques a comerciantes portugueses. Estes eram odiados por ser considerados responsáveis pela elevação dos preços dos alimentos no meio urbano.
No início da década de 1830, o clima é de guerra civil. Rio de Janeiro, Ceará, Bahia, Pernambuco e Alagoas são palco de levantes armados em que fazendeiros, tropas, pequenos proprietários, índios e escravos se ombreiam, ora contra a centralização do poder, ora como expressão de revolta diante da pobreza e da escravidão. É nesse contexto que d. Pedro I, a 7 de abril de 1831, renuncia ao trono brasileiro. Junto ao medo de ser deposto, havia outro motivo para o gesto: em 1826, com a morte de d. João VI, o imperador tornou-se o virtual sucessor da Coroa portuguesa. Ciente do risco que a ameaça de restauração representava, como munição para movimentos separatistas, d. Pedro renuncia ao trono lusitano em nome da filha, sob o título de d. Maria II. Tal gesto, porém, não é acatado por seu irmão, d. Miguel, lançando Portugal em uma guerra de sucessão dinástica até 1834, na qual, entre os combatentes, estava d. Pedro I – aliás, d. Pedro IV para os portugueses.
Em 1831, a segunda renúncia do imperador buscava apaziguar os ânimos no Brasil. Tal efeito não é difícil de ser compreendido: como herdeiro do trono ficou uma criança – o futuro d. Pedro II –, que nem ao menos havia completado os 5 anos de idade. Na prática, portanto, a abdicação significava a transferência do poder para as elites regionais, tendo em vista que o cargo máximo do governo – inicialmente na forma de regência trina (ou seja, composto por três regentes) e, depois, na forma da escolha de um único regente, como foi Diogo Feijó (1835-37) e Araújo Lima (1837-40) –, passou a ser definido via eleição. A descentralização, porém, ao contrário do imaginado, acentuou ainda mais as tendências separatistas. Como vimos, até o imperador, que desfrutava de uma certa legitimidade decorrente do fato de descender de uma casa reinante europeia e de ter comandado o vitorioso processo de independência, viu seu poder contestado. O que dizer então de um regente? Os grupos dominantes derrotados nas eleições mostravam seu descontentamento através das armas. Por volta de 1835, tais levantes assumiram um perfil claramente separatista. No Pará, uma revolta política lança a província em uma violenta guerra civil, que se estende por cinco anos. A independência local chega a ser decretada, mas os rebeldes, autointitulados cabanos, são violentamente esmagados, deixando como saldo cerca de 30 mil mortos, ou seja, cerca de 20% da população provincial. No extremo sul do país, a Farroupilha tem melhor sorte. A independência do Rio Grande do Sul é alcançada e, durante os anos 1835-45, a então denominada República do Piratini mantém-se separada do Brasil.
Em várias outras províncias, os movimentos separatistas ou federalistas se sucedem, assumindo designações que lembravam o mês de sua ocorrência – Abrilada, Novembrada – ou o nome de seus líderes, como no caso da Sabinada. Vez por outra, porém, tais movimentos fugiam ao controle da elite, tornando-se levantes populares. As chances de esses grupos alimentarem seus projetos de independência eram grandes, pois, nos embates com as tropas oficiais, os fazendeiros armavam os cativos e homens pobres. Além disso, os movimentos separatistas criavam divisões no interior das elites, como era o caso dos liberais exaltados se contrapondo aos grupos que procuravam se alinhar ao governo regencial. Ora, a divisão entre os senhores dava maior eficácia aos movimentos de contestação escravistas, arriscando todo o sistema a sucumbir em razão da luta de classes. Essa possibilidade foi registrada em 1835, quando da descoberta de planos de um levante de escravos muçulmanos em Salvador. Detalhe da Revolta dos Malês: os cativos pretendiam matar todos os brancos e decretar uma monarquia islâmica na Bahia. O Maranhão também apresentou um movimento rebelde com características populares. Iniciada em 1838, entre as elites, essa revolta escapou ao controle delas, passando a ser liderada por um escravo fugido e por um fazedor de balaios (cestos produzidos com talas de palmeiras ou de cipó). A então denominada Balaiada chegou a reunir um exército de 11 mil revoltosos, espalhando terror entre as elites maranhenses e de províncias vizinhas. Nesse contexto de risco de os pobres e escravos assumirem o controle do poder, reproduzindo em grande escala o ocorrido no Haiti em fins do século XVIII, é que se articula entre 1837-40 o retorno dos mecanismos centralizadores do Primeiro Império. O regresso conservador abrirá caminho para a repressão eficaz aos movimentos separatistas e aos levantes de escravos, assim como articulará um projeto nacional que manterá intacto o território brasileiro herdado do período colonial. Contudo, não foram poucos os obstáculos enfrentados por esse projeto. Desde a época da independência, vários testemunhos registraram a ausência de uma identidade nacional brasileira e o desafio de construí-la. Pressentindo as resistências regionais à centralização, o viajante francês SaintHilaire constatou, em 1820, no Rio Grande do Sul: “Nesta capitania até os cães latem de um modo diferente”.



Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.


Notas:

  • [1] Texto copiado na íntegra de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 117 a 128.

  • [2] Imagem ilustrativa. Disponível em:<https://mundoeducacao.uol.com.br/historiadobrasil/as-guerras-independencia-brasil.htm>. Acesso em 06/09/2022.

05 setembro 2022

Religiosidades na Colônia

Por DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]

 

Os jesuítas no Brasil [2]

O Brasil nasceu à sombra da cruz. Não apenas da que foi plantada na praia do litoral baiano, para atestar o domínio português, ou da que lhe deu nome – Terra de Santa Cruz –, mas da que unia Igreja e Império, religião e poder. Mais. Essa era uma época em que parecia impensável viver fora do seio de uma religião. A religião era uma forma de identidade, de inserção num grupo social – numa irmandade ou confraria, por exemplo – ou no mundo. A colonização das almas indígenas não se deu apenas porque o nativo era potencial força de trabalho a ser explorada, mas também porque não tinha “conhecimento algum do seu Criador, nem de cousa do Céu”. Isso foi fundamental para dar uma característica de missão à presença de homens da Igreja na América portuguesa. D. João III não deixou dúvidas quanto a isso ao escrever a Mem de Sá: “A principal causa que me levou a povoar o Brasil foi que a gente do Brasil se convertesse à nossa santa fé católica1”. A crença de que o apóstolo São Tomé teria saído pregando o evangelho de Cristo mundo afora estimulava os religiosos europeus a seguir seu modelo, suas pegadas. Para empurrá-los, o próprio infante d. Henrique criara, com o aval da Santa Sé, conventos no Norte da África. Os padrões, ou marcos, plantados na costa da África e da Ásia, traziam as armas reais entrelaçadas à cruz, pois missão evangelizadora e colonização se sobrepunham.

o zelo fanático em extirpar idolatrias e heresias, num momento delicado em que católicos e protestantes se digladiavam pela hegemonia religiosa no Velho Mundo, somou-se à necessidade de pregar a palavra de Deus, evangelizando, catequizando e impondo ideais. “Todos temem e todos obedecem e se fazem adeptos para receber a fé”, registrava, no século XVI, o jesuíta Antônio Blásquez. Mas como se deu tal evangelização? Quem foram os primeiros a difundir o cristianismo no ultramar?

Os primeiros religiosos a desembarcar entre nós foram oito franciscanos, membros de importante ordem estabelecida, há tempos, em Portugal. Sua presença como capelães de bordo na navegação portuguesa era comum, mas sua participação na evangelização do gentio ou nas práticas religiosas de colonos só ganhou envergadura a partir da década de 1580, com a conquista da Paraíba. A eles juntaram-se beneditinos e carmelitas. Papel bem mais relevante, contudo, teriam os jesuítas. Vindo com Mem de Sá em 1549, o primeiro grupo era composto por seis missionários da recém-fundada Companhia de Jesus, entre os quais estava Manuel da Nóbrega (1517-70). Sua primeira providência? A organização de uma escola que, como outras que se seguiriam, consistia na base da missão. Um ano mais tarde, chegaram mais padres acompanhados de “órfãos de Lisboa, moços perdidos, ladrões e maus”, que teriam papel relevante, embora anônimo, nos projetos da Companhia. Chamados meninos língua, cabia-lhes aprender o tupi-guarani, tendo como tarefa a conversão das crianças nativas. Em 1550, Leonardo Nunes instalou-se em São Vicente, litoral paulista, onde, em registro admirativo de Nóbrega, ergueu “uma grande casa e muito boa igreja”. Bahia e Rio de Janeiro tornavam-se polos de irradiação da atividade de catequese. Em 1575, inaugurou-se, em Olinda, o quarto grande colégio, onde eram ministradas aulas de “ler, escrever e algarismos” para os filhos de colonos.

As cartas escritas pelos padres jesuítas a seus superiores na Europa revelam como transcorria o cotidiano nas missões onde se juntavam padres e indígenas: “Se ouvem tanger missa”, conta um inaciano, “já acodem e tudo que nos veem fazer, tudo fazem. Assentam-se de joelhos, batem nos peitos, levantam as mãos para o céu”. A clientela era feita de filhos de índios e mestiços, acrescida, de tempos em tempos, de um principal, ou seja, um chefe. As primeiras atividades religiosas consistiam em recitar, nas igrejas, ladainhas ou a Salve-Rainha. Nas sextas-feiras, disciplinavam-se em cerimônias de autoflagelação e, com o corpo coberto de sangue, saíam em procissão. Cantavam hinos como o Dominus et Creator e revezavam-se entre aulas de flauta e canto. A Gramática, feita de perguntas e respostas, era o livro básico para a instrução, além de aprenderem a escrever. Confessavam-se de oito em oito dias e saíam para caçar e pescar todas as tardes, pois não havia qualquer forma regular de aprovisionamento. A alimentação baseava-se na farinha de pau, nome dado à farinha de mandioca, e caça, “como sejam os macacos, as corças, certos animais semelhantes a lagartos, pardais e outras feras”, explicava o padre Anchieta. O pescado era considerado gostoso e o cardápio engrossado por legumes, favas, folhas de mostarda e abóbora, e “em lugar de vinho [...] milho cozido em água a que se ajunta mel”. As meninas indígenas eram ensinadas a tecer e fiar algodão, capaz de vestir os jovens nus. O tempo livre das crianças ficava por conta do banho de rio ou no “ver correr as argolinhas”, brinquedo, segundo Nóbrega, importado de Portugal: “Ensinamos-lhes jogos que usam lá os meninos do Reino. Tomam-nos tão bem e folgam tanto com eles que parece que toda a sua vida se criou nisso”, anotava o padre Rui Pereira em 1560. As atividades físicas mais simples impregnavam-se de cantos e danças nos quais a cultura indígena se impunha. Em festas nos aldeamentos, os meninos levantavam-se à noite para a seu modo cantar e dançar “com taquaras que são canos grossos que dão no chão e com o som que fazem cantam e com as maracas que são umas frutas, umas cascas como cocos furados por onde deitam pedrinhas dentro”. A sensibilidade musical do indígena fazia crer aos jesuítas que, “tocando e cantando entre eles, os ganharíamos” e que “se cá viesse um gaiteiro”, anotava Nóbrega, não haveria cacique que recusasse seus filhos à escola jesuítica. Nos batismos em grupo, os meninos índios eram vestidos com “roupas brancas, flores na cabeça e palmas na mão”, sinal da vitória que teriam alcançado contra o Demônio.

Até 1580, os jesuítas procediam como uma espécie de missionários oficiais da Coroa. A anexação de Portugal à Espanha, no período da União Ibérica (1580–1640), mudou, contudo, essa hegemonia – estimulando-se o ingresso de outras ordens religiosas ao Brasil. Os franciscanos destacaram-se por seguir a ocupação do litoral nordestino, do Rio Grande do Norte a Alagoas. Unidos aos senhores do açúcar, desenvolviam sua ação dentro das capelas de engenhos, rezando missas, realizando batismos e casamentos comunitários, abençoando as moendas e os animais. Acompanharam os bandeirantes em suas expedições de apresamento de índios e, ao contrário dos jesuítas, situaram-se mais do lado do branco do que do índio. Nas expedições oficiais para a conquista da Paraíba, por exemplo, jamais apoiaram tabajaras e potiguares e, entre 1588 e 1591, começaram a estabelecer-se em conventos, lado a lado com beneditinos e carmelitas.

Instalados ao final do século XVI em Olinda, os carmelitas ensinavam teologia e língua brasílica, ou seja, o tupi simplificado, e daí enviavam seus missionários Brasil afora. Foram vigorosos defensores dos interesses portugueses na Amazônia, logo deixando de importar-se com o caráter missionário e investindo nas relações com as populações de vilas interessadas no comércio de especiarias, como o cacau. Mais dedicados à vida contemplativa do que a qualquer outra atividade, os beneditinos pertenciam, por sua vez, a uma ordem rica, possuidora de inúmeros imóveis e fazendas sustentadas por escravos. Na Amazônia, cartas régias fixaram a atuação de cada ordem: franciscanos de Santo Antônio, as missões do cabo do Norte, Marajó e norte do rio Amazonas; Companhia de Jesus, as dos rios Tocantins, Xingu, Tapajós e Madeira; Carmo, as dos rios Negro, Branco e Solimões; franciscanos da Piedade, as do Baixo Amazonas; mercedários, as do Urubu, Uatumã e trechos do Baixo Amazonas. Já no Sudeste, os franciscanos organizavam-se em missões volantes, nas quais grupos visitavam de tempos em tempos as vilas e povoados do interior para pregar, confessar, rezar missas, apoiando com socorro espiritual os colonos.

À medida que a colonização, a fome e as guerras dizimavam os índios do litoral e que os negros africanos eram trazidos em massa para trabalhar nos engenhos como escravos – sem que autoridades religiosas argumentassem contra sua escravização –, os movimentos missionários se deslocavam para o interior da Colônia à procura de novas almas. Nos sertões do rio São Francisco, capuchinhos franceses, aliados das reformas propostas pelo Concílio de Trento, e oratorianos italianos, muito voltados para as práticas piedosas de orações e devoções, tiveram destacada atuação. Os laços que os ligavam diretamente à Santa Sé, em Roma, sem passar por vínculos com o governo português, lhes davam grande liberdade de ação. Suas missões lhes permitiam estar mais próximos do povo humilde que habitava, disperso e sem auxílio, as ermas vastidões do interior.

Mas havia muitos espinhos nos caminhos da evangelização. Os conflitos entre leigos e o clero se sucediam. Os mais importantes deram-se em torno da escravização dos indígenas, verdadeira pedra no sapato – ou melhor, nas alpargatas – dos padres que desejavam a catequese e a conversão do gentio. Desde o século XVI, a Companhia de Jesus conseguiu que o governo proibisse tal prática. Todavia, grupos importantes de plantadores de cana, donos de engenhos e, posteriormente, bandeirantes que obtinham grandes lucros com a escravização dos negros da terra consideravam sua proteção uma ruína para a Colônia. Eles não apenas insistiam com as autoridades do Reino para que estas lhes concedessem liberdade para usar o trabalho compulsório dos índios, como também, por meio de pressões e ameaças, retardaram o quanto puderam a supressão da escravatura dos nativos. Para fazer frente às dificuldades criadas pelos colonos, uma lei de 1639, baseada em bula papal, reafirmou a liberdade dos indígenas. A resposta não tardou: colonos revoltaram-se em São Paulo, Santos e Rio de Janeiro, apontando suas armas contra os portões das escolas da Companhia de Jesus. Das janelas, terços na mão, os padres os excomungavam sob uma chuva de balas. Em Belém, os colonos acusavam os jesuítas por libelos enviados diretamente a procuradores na Corte. O ódio entre um e outro grupo era tal que os jesuítas foram expulsos dessas localidades, só regressando anos depois.

Em meio a essa crise, chegou ao Brasil, em 1652, o padre Antônio Vieira, que logo no ano seguinte foi nomeado visitador das missões do Maranhão e Grão-Pará. Familiarizado com a Colônia, pois tinha morado com os pais na Bahia até entrar para o seminário, Vieira vinha com a função de evangelizar, erguer igrejas e realizar missões entre os índios do Maranhão, além de contar com o apoio do rei, que ameaçara com severas punições os que atravessassem seu caminho. Alguns de seus textos são contundentes críticas à escravidão indígena, como a Informação sobre o modo que foram tomados e sentenciados por cativos os índios no ano de 1655. Nele, Vieira afirma: “Para acudir às injustiças que em todo o estado do Brasil se usavam no cativeiro dos índios naturais da terra, tomaram por último remédio os senhores reis destes reinos declarar a todos por forros e livres”. Exceção seria feita no caso de guerra justa, ou seja, quando os nativos se recusassem à catequese, praticassem a antropofogia, cometessem latrocínio em terra ou no mar, se negassem a pagar tributos e a defender o rei ou a trabalhar para ele. Em outras palavras: quando de alguma forma resistissem à colonização.

Levados do sertão para o litoral pelos jesuítas, muitos índios eram agrupados em aldeamentos onde recebiam instrução e educação religiosa. A orientação de Vieira era, contudo, de que permanecessem no interior, evitando o confronto com os colonos gananciosos ou com outras ordens religiosas, mais incomodadas com o prestígio da Companhia do que com o destino dos índios. A pressão sobre Vieira foi tão grande que ele se viu obrigado a sair do Maranhão em 1654, retornando a Portugal. Havia tempos, na verdade, delineava-se esse quadro incendiário: entre 1632 e 1648, as populações guaranis aldeadas pelos jesuítas entre o Paraguai, o Paraná e o Rio Grande do Sul (Guairá, Itatim e Tape) haviam sido arrasadas por bandeirantes paulistas. Por essa época, numerosos grupos indígenas deslocaram-se para a margem oriental do rio Uruguai para estabelecerem-se junto dos jesuítas nos Sete Povos das Missões. Organizados para abrigar até mil famílias em moradias de terra socada, tais aldeamentos eram alvos constantes de ataques organizados por bandeirantes paulistas.

Em relação às demais populações católicas, um importante espaço de práticas religiosas para homens e mulheres coloniais eram as irmandades ou confrarias. Associações de caráter local, tais instituições auxiliavam a ação da Igreja e promoviam a vida social, desempenhando tarefas que, muitas vezes, deveriam caber ao ausente governo português: fundação e manutenção de abrigos de meninos pobres, recolhimento de meninas órfãs e hospitais, denominados Santas Casas da Misericórdia. Sua finalidade específica era promover a devoção a um santo. Em torno de festas, do culto e da capela do santo, um grupo de pessoas, fossem brancas, mulatas ou negras, se organizava. O que caracterizava a irmandade era justamente a participação de leigos no culto católico, participação que não implicava necessariamente a constante presença de padres e religiosos. Confrarias e irmandades demonstravam toda a força por ocasião da festa do padroeiro: ruas e igrejas eram decoradas com ervas perfumadas e tapetes e iluminadas por tigelinhas de barro contendo óleo de baleia. Irmãos vestidos de capa vermelha, tocheiros à mão, abriam a procissão, que era seguida de carros alegóricos ricamente enfeitados, atrás dos quais volteavam músicos e bailarinos. A diversidade de instrumentos musicais não ficava atrás da pompa coreográfica dos cortejos. Ritmos profanos e peças sacras se mesclavam à sonoridade dos batuques africanos. Músicos negros vestidos de seda e cobertos de plumas, tocando címbalos, pífaros e trombetas misturavam-se a brancos, tocadores de clarins e charamelas. Uma imensa variedade de sons rasgava o ar, enquanto fiéis, piedosamente, desfilavam estandartes e as imagens religiosas.

Seguindo o costume português, a vida doméstica também consistia em importante espaço espiritual. Nas paredes das moradias era comum encontrarem-se cruzes de madeira, gravuras do anjo da guarda ou do santo com nome do dono da casa. Nas zonas rurais, um mastro com a bandeira do santo indicava a preferência da devoção familiar. Ao levantar-se, pela manhã, o cristão benzia-se murmurando o “Pelo sinal”. Oratórios, ou quartos de santos, eram iluminados por velas de cera que queimavam constantemente e onde as imagens eram vestidas e adornadas pelas mulheres. Flores naturais ou de papel, palhas bentas no Domingo de Ramos, medalhas milagrosas, escapulários e livros de oração compunham o arsenal do devoto na luta contra Satã. Em propriedades abastadas era comum a presença de capelas ou ermidas onde se celebravam casamentos, comunhões e batismos de senhores e escravos, homens livres e homens forros. Santos de estimação como, por exemplo, Santo Antônio, eram invocados para interceder em favor do fiel em caso de escravos fugidos, cavalos extraviados ou roubos. As solteiras costumavam invocá-lo para arranjar maridos; as casadas, em caso de desavenças conjugais. Não atendidas, penduravam-no, de cabeça para baixo, nos poços de água ou tiravam-lhe o menino Jesus do colo até terem seus desejos concedidos. Orações em que se nomeavam os santos, Jesus ou Maria eram usadas por benzedeiras e curandeiras para aliviar as dores, feridas e maleitas dos fiéis: “Deus eterno, por cujo amor Santa Apolônia sofreu que lhe tirassem os dentes [...] dai-me socorro saudável contra o incêndio dos vícios, e dai-me socorro saudável contra a dor dos dentes, por intercessão. Amém, Jesus”.

Além do catolicismo, a Colônia foi palco de outros credos, crenças e práticas religiosas. Descendentes de judeus, por exemplo, buscaram refúgio nessas terras, que lhes pareciam de promissão. O movimento migratório começara em inícios do século XVI em função de perseguições que lhes eram movidas na península Ibérica. Instalados sobretudo na Bahia, em Pernambuco e no Maranhão, os recém-chegados integraram-se rapidamente à língua, aos costumes e à economia local, misturando-se aos cristãos, com quem dividiam cargos administrativos e comerciais. Os cristãos-novos detinham engenhos, escravos e terras. Para manter vivos os laços comunitários e de identificação, realizavam clandestinamente práticas e atos religiosos do judaísmo, ainda que sob a ameaça da Inquisição. Mas como é que esta se fazia presente na Colônia?

A Colônia nunca possuiu tribunal inquisitorial, ficando subordinada ao existente em Lisboa. Bispos e até leigos – sob o título de Familiares do Santo Ofício – podiam encaminhar denúncias contra suspeitos de heresia. Essas acusações também ocorriam por ocasião de visitações. Espécie de justiça ambulante, as visitas de inquisidores – realizadas entre 1591 e 1595, 1618 e 1621 e 1627 ao Nordeste, assim como entre 1763 e 1769 ao Grão-Pará – tinham por objetivo combater as heresias e zelar pela fé e boa moral dos católicos. Nesse quadro, ritos, preceitos ou cerimônias judaicas eram alvo dos monitórios gerais, ou seja, um documento eclesiástico com aviso aos fiéis, que descrevia minuciosamente tais ritos e era afixado às portas das igrejas. Pequenos atos do cotidiano serviam para indicar judaísmo. Guardar os sábados, por exemplo, revelava-se através do hábito de vestir roupas limpas e arrumar a casa na véspera – limpar e cozer alimentos, acender candeeiros, etc. – para que não houvesse necessidade de trabalhar nesse dia. Conscientes do interesse do Santo Ofício por pessoas que cometiam essas infrações, os cristãos-novos costumavam apresentar-se às autoridades confessando seus atos. Fernando Salazar, por exemplo, compareceu perante o inquisidor Marcos Teixeira, em 1618, e declarou “vestir camisa lavada aos sábados”, justificando-se a seguir: “Por ser homem que ganha a sua vida em tratar as galinhas e papagaios e em outras cousas da terra e vir muito suado quando vem de fora”. Os jejuns eram outra prática constante daqueles que seguiam às escondidas a lei de Moisés. Havia um grande jejum em setembro, o da rainha Ester e o das segundas e quintas-feiras da semana. Nesses dias, os israelitas evitavam alimentos durante o dia e ingeriam, só à noite, carnes e sopas; passavam, ainda, o dia descalços, pedindo perdão uns aos outros. Na celebração da Páscoa judaica, comiam pães ázimos e recitavam orações judaicas, baixando e levantando a cabeça diante da parede, adornada com cordões e fitas rituais, os trancelins. Enterravam os mortos em mortalha nova e terra virgem, colocando-lhes na boca um grão de aljôfar ou uma moeda de prata para que pagassem a primeira pousada. Os meninos eram circuncidados. Mesmo não seguindo as práticas judaicas de modo inteiramente consciente, os cristãos-novos conservavam a essência de sua cultura original. Repudiavam as imagens dos santos que enfeitavam os oratórios, consideravam a religião católica uma idolatria, esquivavam-se do sacramento da confissão, alegando que: “Era melhor confessar a um pau ou a uma pedra do que a um outro pecador”.

Diferentemente dos cristãos-novos, os judeus que iriam se instalar em Pernambuco quando da invasão holandesa, de 1630 a 1654, encontraram melhores condições para exercer sua religiosidade. Concentrados numa rua de Recife, a Jodenstraat (rua dos Judeus), onde construíram a sinagoga da comunidade Kahal Zur Israel: uma casa de muitas janelas, com o térreo ocupado por duas lojas, tendo no andar de cima uma ampla sala mobiliada para utilização religiosa. Ao rabino, ou haham, Isaac Aboab da Fonseca devem-se as primeiras páginas literárias, em hebraico, escritas no Brasil: um poema que descreve os sofrimentos suportados pelos judeus em 1646, quando Recife ficou sitiado pelos luso-brasileiros.

O protestantismo teve, no Brasil colonial, dois períodos marcantes. O primeiro vai de 1555 a 1560, quando chega à baía de Guanabara o vice-almirante francês Nicolau Durand de Villegaignon para fundar no hemisfério sul uma colônia, a França Antártica, com calvinistas (huguenotes) franceses, hostilizados em sua terra. O segundo foi o da colonização holandesa no Nordeste. Com o auxílio de Gaspar de Coligny, nobre protetor dos huguenotes, Villegaignon estabeleceu-se na Guanabara com quatrocentos homens atraídos pela promessa de liberdade religiosa. Suspeitas e insegurança, porém, logo perturbariam o governo da França Antártica. Villegaignon desconfiava de seus próprios homens e dos índios tamoios, seus aliados. Os problemas ficaram maiores quando aqui chegou um contigente de 280 religiosos calvinistas vindos de Genebra, onde haviam sido ordenados. Ao que parece, os missionários recém-chegados traziam cartas de recomendação de importantes líderes religiosos e nobres, que fizeram Villegaignon temer por seu prestígio na França. Na chegada, o líder os recebeu com gestos de obediência, passando, logo depois, a criticá-los por não usarem pão comum e vinho não misturado com água na celebração da Santa Ceia.

As polêmicas se multiplicaram. Villegaignon questionava as posições calvinistas sobre a transubstanciação, ou seja, a mudança da hóstia em corpo de Deus, a invocação dos santos, o Purgatório. Por fim, proibiu Pierre Richier, um dos pastores credenciados por Calvino, de pregar. Diante de tantos conflitos, Richier partiu para a Europa com seus auxiliares. Devido às más condições da travessia marítima, alguns resolveram voltar. Foram recebidos por um desconfiado Villegaignon que rejeitara publicamente o calvinismo. Obrigados a redigir uma declaração sobre alguns pontos doutrinários – intitulada Confessio Fluminensis –, caíram numa armadilha; acusados de traição, foram condenados e executados. Tornaram-se os primeiros mártires do credo protestante na América.

Enfraquecido e já sem a proteção de Coligny, Villegaignon retornou à França em 1558, pouco antes de os portugueses recuperarem a Guanabara. Por tensões político-religiosas, fracassava a tentativa de implantar uma colônia calvinista no Centro-Sul do Brasil colonial. Ela seria repetida, igualmente sem sucesso, no começo do século XVII, em São Luís do Maranhão, com a França Equinocial.

Conforme mencionamos, outro período de significativa atividade protestante foi o da colonização holandesa no Nordeste. Sob a regência de Maurício de Nassau, o domínio holandês estendeu-se temporariamente do Maranhão até abaixo do rio São Francisco. Nesse governo, a liberdade religiosa era para todos. Católicos eram livres para exercer seu culto e manter relações com a sede episcopal da Bahia. Sinagogas e escolas hebraicas funcionavam no Recife e foram as primeiras da América. O protestantismo, considerado a verdadeira religião, lutava para instalar-se no Brasil. A chave para sua compreensão era a subordinação de todos os aspectos da vida aos sagrados mandamentos. A formação de paróquias protestantes estendeu-se pelas conquistas territoriais, com a catequese e o ensino ocupando muitos pregadores.

Os africanos também trouxeram seus credos para a América portuguesa. Com eles, cerimônias religiosas como o acotundá e o calundu, além de cultos envolvendo os mortos, que eram corriqueiramente praticados. Em casas humildes, cobertas de capim, de paredes de barro, preferencialmente à beira de um córrego ou fonte, celebrava-se a dança de tunda, ou acotundá. Altares com banquetas de ferro onde se misturavam ordenadamente cabaças, panelas e recipientes variados de barro e imagens antropomorfas sinalizavam o espaço sagrado. O som de tambores e atabaques, cantos no dialeto courá, da Costa da Mina, enchiam a noite. Vindas das camarinhas, mulheres vestidas com panos brancos, que com frequência lhes cobriam a cabeça, dançavam e cantavam, por vezes misturando palavras extraídas de textos católicos e africanos. Muitos dos elementos rituais que se encontram hoje no candomblé baiano e xangôs do Nordeste já estavam presentes nesses rituais: o emprego de galos e galinhas nos sacrifícios de animais, a predominância feminina, o destaque de uma das dançantes identificada ao líder cerimonial, a possessão e o transe ao som de atabaques.

Havia ainda outras formas de religiosidade africana na Colônia. Vindas do Daomé, atual Benin, na costa ocidental da África, rituais de origem jeje conhecidos como calundus eram conduzidos por um vodunô, líder espiritual, com o auxílio de vodúnsis, membros do culto; o ritual consistia em danças e cantos na língua jeje, ao som de ferrinhos (agogôs e gans) e atabaques. O centro do cerimonial abrigava ervas, búzios e aguardente. Folhas de diversas plantas serviam na preparação de alimentos oferecidos às divindades, os ebós, mas também em ritos de iniciação e limpeza do corpo. Um sentido para a vida, segurança e proteção contra um mundo hostil, espaço para sociabilidades e solidariedades eram as funções desses rituais religiosos. Dessa maneira, a Colônia crescia à sombra da cruz e de vários credos que ainda hoje hidratam nossa cultura.


Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.


Notas:

[1] Texto copiado na íntegra de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 19 a 27. 

[2] Foto meramente ilustrativa. Disponível em: <https://www.estudokids.com.br/jesuitas-no-brasil-colonia/>. Acesso em 05/09/2022.

[3] Veja mais sobre este assunto no capítulo 4 de minha monografia “Fundamentalismo protestante: dificuldades de interação e diálogo com a cultura brasileira”. In: <https://monografias.brasilescola.uol.com.br/historia/fundamentalismo-protestante-dificuldades-interacao-dialogo-com-cultura-brasileira.htm>. Acesso em 05/09/2022.

01 agosto 2022

Infância perdida: como a Romênia comunista destruiu uma geração inteira de crianças

Por Maurício Brum [1]

Milhares de crianças foram criadas em instituições estatais na
Romênia comunista comandada com mão de ferro
por Ceausescu [2].

Uma desastrosa intervenção do Estado Romeno na vida das famílias provocou uma tragédia pouco conhecida até hoje: milhares de crianças sem lar, desamparadas e vítimas de doenças como hepatite e Aids.

No início de 1990, pouco após o ditador romeno Nicolae Ceausescu ser deposto e executado em uma das tantas revoluções que varreram os regimes socialistas do Leste Europeu, o resto do mundo começou a conhecer a verdade sobre um dos países mais fechados do Leste Europeu.

Entre as revelações feitas na época, nenhuma chocou mais do que as imagens das centenas de orfanatos mantidos ao redor do país: um número estimado entre 100 mil e 170 mil crianças eram confinadas em instituições fétidas, com péssimas condições de saneamento e higiene, esquecidas pelo governo e praticamente sem contato humano. Muitas desenvolveram transtornos psicológicos e foram infectadas com doenças como hepatite B e Aids. Hoje, trinta anos mais tarde, os sobreviventes lutam por justiça.

Quando o ditador Nicolae Ceausescu assumiu o poder na Romênia, em 1965, seu país era pobre mesmo para os padrões da Europa Oriental. Tudo estava por ser feito naquele que era um dos estados mais obscuros do bloco socialista, e os planos grandiosos do novo líder para o futuro da nação envolviam promover um rápido crescimento populacional. Sua ideia, baseada nos projetos econômicos do stalinismo, parecia simples: quanto mais romenos jovens, mais mão de obra, mais produção — e, consequentemente, mais riqueza à disposição do Estado.

Não tardou para a Romênia se tornar, ao lado da Albânia, um dos países mais fechados de trás da Cortina de Ferro. Ao contrário de nações como a Polônia, a Hungria, a Tchecoslováquia ou a União Soviética, no caso romeno era raro haver, até mesmo, dissidentes famosos: o regime totalitário controlava a dissensão de maneira ainda mais sufocante do que os vizinhos, e ditava regras para todos os aspectos da vida cotidiana, inclusive questões íntimas como a reprodução e o tamanho “adequado” para as famílias romenas.

Para atingir mais facilmente suas metas econômicas, Ceausescu implementou o Decreto 770 logo em seus primeiros tempos de governo: a nova lei estabelecia regras e punições para desestimular os cidadãos a terem famílias pequenas. O ditador instituiu uma multa de até 30% sobre o salário de casais acima de 25 anos que não tivessem filhos. As cirurgias esterilizadoras foram proibidas para as mulheres de menos de 40 anos (e, mais tarde, 45 anos) que não tivessem pelo menos cinco crianças em casa. Outra lei da época determinou que os homossexuais, quando descobertos pela Securitate, a polícia secreta, seriam punidos ainda mais duramente do que antes: o “crime” rendia até cinco anos na cadeia e, com frequência, os presos eram mortos antes de recuperar a liberdade. A ordem do dia era garantir que nenhum lar da Romênia ficasse sem filhos.

A lei surtiu efeitos imediatos: já no primeiro ano após o decreto, a taxa de natalidade cresceu cerca de 13% no país. O “baby boom” romeno, que se seguiu pela década seguinte, fez com que as crianças nascidas nesse período recebessem o apelido de “decretei”, os “filhos do decreto”.

Com o tempo, porém, as mulheres que não queriam mais crianças passaram a utilizar métodos clandestinos para evitar ou interromper a gravidez — pílulas abortivas, por exemplo, começaram a ser contrabandeadas para o país e, embora vendidas ilegalmente e a preços altíssimos, chegaram às mãos de muitas romenas. Famílias influentes também contavam com as vistas grossas das autoridades. Segundo a Human Rights Watch, estimava-se ainda que o número de mortes relacionadas a abortos havia aumentado em até 600% nos anos imediatamente seguintes à lei.

Foi assim que, nos anos 80, quando o crescimento da população voltou a esfriar, Ceausescu aprofundou sua política de controle: em 1985, criou também os “Corpos de Comando Demográfico”, grupos médicos que ganharam o apelido de “polícia da menstruação” — ginecologistas enviados pelo governo faziam exames trimestrais nas mulheres, em seus locais de trabalho, para detectar gestações antes que elas fossem interrompidas. As grávidas que não viessem a dar à luz, por qualquer razão, eram investigadas pelo Estado e podiam ser presas.

Após o Decreto 770, os orfanatos romenos passaram a exercer uma função distinta daquela para a qual haviam surgido. Agora, em vez de atenderem principalmente a crianças que haviam perdido os pais, tornaram-se também repositórios de jovens oriundos de famílias sem condições de arcar com tantos filhos em casa. O próprio Estado estimulava essa decisão, com a propaganda governamental garantindo que as crianças seriam bem cuidadas e preparadas para a vida adulta. De fato, nos primeiros anos os “decretei” destinados aos orfanatos não sofreram tanto quanto aqueles nascidos nas décadas seguintes — apesar de estarem longe da qualidade anunciada pelo regime de Ceausescu, as instituições dispunham de recursos suficientes para operar dentro de um certo padrão.

A partir de 1982, no entanto, quando o governo iniciou sua tentativa de pagar a astronômica dívida externa da Romênia, grande parte dos serviços públicos começou a enfrentar uma constante falta de verbas — e manter os orfanatos funcionando adequadamente passou a ser uma das últimas prioridades.

No final dos anos 1980, às vésperas da derrubada do ditador, faltavam alimentos, roupas e remédios para os orfanatos. Dentro e fora das instituições, também haviam se tornado comuns os cortes no fornecimento de água e energia elétrica. Com o país inteiro na penúria, o pouco que chegava para suprir as crianças era rotineiramente furtado pelos funcionários, segundo relataram os sobreviventes dos orfanatos, anos mais tarde. Em 1989, o orçamento diário destinado a um orfanato romeno era inferior a dois centavos de dólar por criança (ou 14 lei, o valor na desvalorizada moeda local).

Os protocolos do governo também deixaram de ser seguidos à risca. Originalmente, as crianças ficavam em uma instituição até os três anos de idade e, após isso, transferidas para outra, onde ficavam até completar o sexto aniversário. Finalmente, elas passavam por uma avaliação física e psiquiátrica: as consideradas “normais” seguiam em instituições mantidas pelo Ministério da Educação, enquanto aquelas tachadas de “irrecuperáveis” ou “improdutivas” (em razão de alguma deficiência ou dificuldade de aprendizado) eram entregues a órgãos ligados, ironicamente, ao Ministério do Trabalho.

Diante da falta de recursos, os já controversos critérios foram afrouxados — as crianças agora eram destinadas ao prédio que tivesse espaço para recebê-las, independentemente da filosofia seguida ali. De modo geral, as práticas se tornaram parecidas: os responsáveis pelos orfanatos eram orientados a não conversar com as crianças e a não responder se estivessem chorando. O objetivo, alegavam os especialistas do governo, era “acostumá-las” a não depender de alguém, já que havia poucos funcionários para dar atenção a todas.

As crianças não eram abraçadas, não participavam de brincadeiras e não recebiam qualquer estímulo emocional. Em geral, eram apenas alimentadas e limpas. Nas instituições para “irrecuperáveis”, como Cighid, perto da fronteira com a Hungria, nem isso: a falta de atenção e higiene chegava a provocar taxas de mortalidade de até 50% em um único ano.

O brutal regime de Nicolae Ceausescu chegou a um fim abrupto em dezembro de 1989. Com a queda do Muro de Berlim servindo de exemplo aos movimentos que cobravam o fim dos regimes socialistas, Ceausescu se viu encurralado: cada vez mais impopular em função de duas décadas de desmandos e perdendo o controle de seus subordinados mais próximos diante das pressões econômicas, o ditador tentou fugir em 22 de dezembro, após uma série de protestos tomarem as ruas de Bucareste.

Ceausescu e a esposa, Elena, foram capturados três dias mais tarde, julgados sumariamente por um tribunal montado pelo novo governo provisório, e condenados por crimes de genocídio e acúmulo ilícito de riquezas — antes que a noite de Natal terminasse, os dois haviam sido executados por um pelotão de fuzilamento. O fim da ditadura comunista na Romênia não trouxe mudanças imediatas ao país: muitos membros da Securitate se beneficiaram da desestatização da economia, assumindo o controle de importantes setores e se tornando oligarcas aos moldes russos — reformas mais profundas só começariam a aparecer em 1997, após a eleição de um opositor para o governo.

Ainda assim, apesar da lenta transição, a vontade do novo governo de se diferenciar dos dias de Ceausescu fez com que já no início dos anos 90 a Romênia se abrisse para o Ocidente, denunciando os horrores do regime anterior. As cenas que mais chocaram o resto do mundo foram aquelas gravadas no interior dos orfanatos, cuja realidade havia sido tornada pública pela primeira vez, dentro e fora do país.

As duas coisas que eu lembro mais vividamente, e que vão ficar comigo para sempre: o cheiro de urina e o silêncio de tantas crianças”, relatou o britânico Bob Graham, repórter do Daily Mail que esteve entre os primeiros estrangeiros a visitar uma instituição romena em janeiro de 1990, em entrevista ao GlobalPost.

Normalmente quando se entra em uma sala cheia de berços com crianças dentro, a expectativa é de barulho, conversa ou choro, às vezes um choramingo. Não havia coisa alguma, mesmo com as crianças acordadas. Elas deitavam em seus berços, às vezes duas ou três em uma mesma cama, e ficavam olhando. Em silêncio. Era assustador, quase sinistro”.

As câmeras internacionais mostraram uma fração da realidade vivida diariamente nos orfanatos de Ceausescu: crianças vestidas com roupas parecidas, que às vezes não lhes serviam direito, com frequência sujas, sempre com o mesmo corte de cabelo – muito curto, independentemente do gênero, para evitar piolhos.

Quando um visitante entrava nos salões, as crianças corriam para abraçá-lo. Era a “afabilidade indiscriminada”, assim descrita pelo neurocientista David Eagleman em “Cérebro: uma biografia”: “Embora esse tipo de comportamento indiscriminado pareça meigo à primeira vista, é uma estratégia que crianças negligenciadas usam para lidar com essa situação e está ligada a problemas de apego de longo prazo”.

O choque causado pelas imagens provocou uma onda de adoções de crianças romenas por famílias da Europa Ocidental, dos Estados Unidos e do Canadá. Nos quase trinta anos desde então, acompanhadas por psicólogos, seu crescimento e desenvolvimento foram estudados — e ajudaram a compreender a importância dos anos iniciais e a forma como eles se refletem na vida adulta. 

As péssimas condições das instituições romenas deixaram muitas crianças com sequelas físicas e psicológicas que repercutem ainda hoje. Charles Nelson, médico do Hospital Infantil de Boston, avaliou 136 crianças em Bucareste: após submetê-las a exames de eletroencefalografia, viu que sua atividade neural era muito reduzida — o QI daqueles internados oscilava entre 60 e 70, quando a média para a sua faixa etária batia nos 100 pontos.

Outro levantamento, que incluiu crianças adotadas por famílias no Reino Unido, mostrou que, embora o nível de QI geralmente voltasse ao normal ao longo dos anos, esses jovens ainda tinham mais dificuldades de sociabilidade — apresentando, por exemplo, maiores taxas de desemprego do que crianças adotadas que não haviam passado pelos orfanatos de Ceausescu. 

Ainda nos anos 1990, a neurobióloga Mary Carlson e o marido, o psiquiatra Felton Earls, ambos de Harvard, também investigaram a situação das crianças internadas nas instituições que, naquele momento, não haviam mudado muito. Seu estudo se centrou no cortisol, o chamado hormônio do estresse, e mostrou que as crianças possuíam níveis completamente fora dos padrões para a sua idade: nelas, o pico de cortisol acontecia no meio da tarde e seguia alto até à noite.

O cortisol ajuda a nos manter preparados para situações de perigo mas, em excesso, tem efeitos profundos sobre o cérebro: pode reduzir a capacidade de memória e causar sintomas de depressão e a síndrome de estresse pós-traumático.

Graças aos efeitos de uma criação sem laços humanos, muitos romenos acreditavam que os órfãos do país eram utilizados nas fileiras da Securitate. Para Mary Carlson, a hipótese era plausível: “eles eram ótimos membros para a polícia secreta”, disse, em uma entrevista à Harvard Magazine. “Como elas não têm qualquer senso de lealdade social, perdem as emoções sociais básicas”. Outro drama que afligiu aqueles crescidos nos orfanatos romenos foi uma chocante epidemia de Aids. Para driblar a falta de alimentos, era comum que as enfermeiras de muitas instituições aplicassem microtransfusões nas crianças sob seus cuidados: injetando sangue que não havia sido devidamente testado para doenças e reutilizando seringas não esterilizadas, vírus como o HIV e o HBV (da hepatite B) foram disseminados para orfanatos inteiros.

No início dos anos 90, incríveis 94% dos casos de Aids na Romênia afetavam crianças menores de 13 anos. Na virada do século, o país respondia por 60% das infecções por HIV em toda a Europa, a maioria afetando crianças contaminadas por transfusões.

A situação dos orfanatos romenos começou a mudar drasticamente nos anos 2000, quando o país buscou a entrada na União Europeia e uma das exigências do bloco era a revisão completa do sistema de atenção aos menores desacompanhados na Romênia.

Desde então, o governo estabeleceu um programa nacional para substituir as grandes instituições do passado por um sistema de adoção temporária em casas de família ou em pequenos orfanatos, muito menores que os antigos.

Também se tornou ilegal para as famílias abandonarem suas crianças em instituições estatais antes de o bebê completar dois anos de idade, salvo em caso de deficiências graves. Além disso, as políticas draconianas exigindo um número mínimo de filhos por casal foram imediatamente suspensas com o fim da ditadura.

Como resultado das políticas adotadas após a Revolução de 1989, o número de crianças institucionalizadas, superior a 100 mil no fim do regime de Ceausescu, havia baixado para 8 mil em 2016. A Romênia também prometeu acabar inteiramente com os orfanatos estruturados à moda antiga até 2022. Embora ainda seja proporcionalmente o país mais pobre da União Europeia (os romenos entraram no bloco onze anos atrás), a economia do país tem passado por um ciclo de crescimento acelerado nos últimos anos. Com a mudança no perfil socioeconômico da população, despencou a necessidade artificial por orfanatos causada na época do Decreto 770.

Muitos dos jovens que cresceram nas instituições estatais e não foram adotados, porém, hoje vivem na indigência, marginalizados dentro da sociedade romena. Desde 2014, a Federeii, uma organização formada pelos “órfãos” de Ceausescu, busca chamar atenção para o problema dos “decretei”. Hoje adultos entre 30 e 40 anos de idade, eles cobram do governo atual políticas de reparação e indenizações pelos danos sofridos ainda na infância.


Referência bibliográfica:

  • BRUM, Maurício. Infância perdida: como a Romênia comunista destruiu uma geração inteira de crianças. In: As atrocidades do comunismo que você não aprendeu na escola – Ebook, pp. 46-59. Gazeta do Povo. Acesso em: 1º/08/2022.

Notas:

  • [1BRUM, Maurício. Infância perdida: como a Romênia comunista destruiu uma geração inteira de crianças (Vide Referência bibliográfica).

29 julho 2022

Trofim Lysenko: o pseudocientista que matou milhões de fome com o apoio de Stalin e Mao

Por Tiago Cordeiro [1]


Com o apoio explícito de Stalin, Lysenko eliminou seus
adversários e implementou um programa de reforma
agrícola desastroso [2]

Lysenko, para quem a genética era uma “pseudociência burguesa”, eliminou seus adversários e implementou um programa de reforma agrícola desastroso, que seria posteriormente exportado para a China.

Selecione um jovem do povo, sem pesquisas acadêmicas relevantes, para conduzir o departamento de genética de um país inteiro de 170 milhões de habitantes. Permita que ele desenvolva um raciocínio pseudocientífico, sem nenhuma base em fatos. Mande para campos de trabalho forçado e manicômios os pesquisadores que discordarem dele.

Na sequência, com base nos conceitos desse jovem do povo, force uma mudança nos métodos centenários de plantio. Exporte esses métodos para um país vizinho, com 550 milhões de habitantes, também controlado por uma ditadura. E pronto: você tem a receita para matar de fome milhões de pessoas — só na China, foram 35 a 45 milhões de vítimas. O jovem em questão foi Trofim Denisovich Lysenko. Nascido em 1898, na atual Ucrânia, ele se tornou diretor do Instituto de Genética da Academia de Ciências da União Soviética em 1940, mas suas ideias já vinham sendo implementadas ao longo da década anterior.

Com o apoio explícito de Josef Stalin, Lysenko eliminou seus adversários e implementou um programa de reforma agrícola desastroso, que seria posteriormente exportado para a China de Mao Tsé-Tung.

Filho de camponeses, analfabeto até os 13 anos, Lysenko estudou no Instituto de Agricultura de Kiev, onde começou a pesquisar os efeitos das variações de temperatura sobre os ciclos das plantas. Seu objetivo era permitir que o trigo que costumava ser plantado na primavera resistisse ao inverno, de forma a garantir a produção de alimentos ao longo do ano inteiro. Seus primeiros estudos chamaram a atenção de outro pesquisador mais experiente, Nikolai Vavilov, que decidiu orientar os trabalhos de Lysenko.

Em 1928, o aluno veio a público com a promessa de que havia encontrado, sozinho, uma forma de implementar o plantio de diferentes plantas em qualquer estação do ano. Lysenko passou a defender que uma série de técnicas, somadas, eram mais eficazes do que as recombinações genéticas que vinham sendo testadas por agrônomos do mundo inteiro, com base na redescoberta dos trabalhos do frei Gregor Mendel.

Mendel, nascido em 1822 e falecido em 1844, deixou escritos que, no século 20, influenciariam o campo da genética e suas aplicações práticas para uma série de atividades, incluindo a agricultura.

O agrônomo preferia utilizar métodos que, na prática, reduziam a produtividade das plantas, como o uso excessivo de enxertos e a exposição de sementes a baixas temperaturas antes do plantio. Em outras palavras, ele recusava os avanços apresentados por Mendel em nome da noção definida pelo naturalista francês Jean-Baptiste Lamarck, morto em 1829, que defendia que as características adquiridas durante a vida eram repassadas para as gerações futuras.

Para Lysenko, a genética era uma “pseudociência burguesa”, porque ia contra os princípios marxistas-leninistas de que as leis que regem a história são universais e imutáveis.

Nisso, ele contava com o apoio de Stalin. “Stalin detestava a genética. Ele dizia não acreditar na genética como era estudada no Ocidente, pois a considerava uma ciência burguesa, que não estaria de acordo com o materialismo dialético. Não por acaso, ele autorizou seu verdugo científico, Trofim Lysenko, a tornar a genética mendeliana ilegal na URSS”, afirma Daniel Fernandes, professor de história, coordenador editorial da editora Arcádia e organizador do livro O elogio do conservadorismo e outros escritos.

Alguns dos métodos do pesquisador, como o de resfriar ou aquecer as sementes para que elas ficassem preparadas para solos adversos, já eram conhecidos na Europa desde o século 19, e eram considerados limitados pelos produtores rurais. Outros, como a recomendação de plantar as sementes mais próximas entre si, duas a duas, para que uma desse suporte à outra, simplesmente não funcionavam.

Ao longo da década de 1930, enquanto a União Soviética provocava uma grande crise de abastecimento na Ucrânia que levaria ao Holodomor (veja o capítulo 3), a coletivização da produção agrícola soviética era implementada seguindo práticas preconizadas por Lysenko, que passou a ganhar amplo espaço junto a Stalin.

Foi também por influência do agrônomo que o ditador proibiu o uso de qualquer tipo de herbicida e fertilizante na agricultura soviética, sob a alegação de que as plantas seriam capazes de aprender sozinhas a se fortalecer e se defender de pragas.

Em 1935, o agrônomo discursou no Kremlin, alegando que os pesquisadores que se apegavam à genética eram semelhantes aos fazendeiros que resistiam a ceder suas terras ao Estado. Ao fim de sua fala, Stalin, que estava presente, se levantou e aplaudiu, gritando: “Bravo, camarada Lysenko, Bravo!”.

Em 1948, Lysenko conseguiu que a Academia de Ciências Agrícolas da União Soviética, que ele mesmo presidia desde 1938, declarasse que sua teoria era a única correta, e que qualquer pesquisa que questionasse o chamado Lysenkoísmo deveria ser renegada. “A influência de Lysenko foi tão grande que qualquer referência aos cromossomos foi banida dos livros didáticos”, diz Daniel Fernandes.

Na mesma época, o americano Norman Bourlaug iniciava a chamada Revolução Verde, que salvou da fome mais de 1 bilhão de pessoas. Os efeitos da adoção do pensamento de Lysenko foram catastróficos. Mais de 3 mil pesquisadores foram presos e levados para gulags ou manicômios.

Nikolai Vavilov, o antigo professor de Lysenko, e primeiro presidente da Academia de Ciências Agrícolas da União Soviética, recusou-se a abrir mão de suas pesquisas.

Vavilov havia viajado para 64 países, incluindo o Brasil (onde esteve entre dezembro de 1932 e janeiro de 1933), coletando sementes e desenvolvendo técnicas de plantio com base na observação das variedades que encontrou em todo o planeta. Acabou preso em 1940, acusado de provocar a escassez de alimentos que era, na verdade, resultado da política de Lysenko.

Depois de passar a vida buscando soluções para melhorar a produtividade do plantio, Vavilov morreu de fome em um campo de trabalho forçado, em 1943. Seu trabalho pioneiro, que indicou que todas as maiores variações genéticas de uma determinada espécie de planta são encontradas nos locais onde ela se desenvolveu pela primeira vez, ainda hoje funciona como referência para pesquisadores do mundo todo.

Como escreveu em 2001 o geneticista russo Valery N. Soyfer, no artigo “The consequences of political dictatorship for Russian science [As consequências da ditadura política para a ciência russa]”, “os líderes comunistas promoveram Trofim Lysenko e impuseram o banimento da prática e do ensino da genética, condenada como ‘perversão burguesa’. A ciência russa, que havia florescido no início do século, sofreu um rápido declínio, e muitas descobertas científicas valiosas realizadas por pesquisadores russos foram esquecidas”.

Na medida em que os geneticistas eram silenciados, a União Soviética expandia as técnicas de Lysenko para outros locais, incluindo a Alemanha Oriental e a Tchecoslováquia. Mas foi na China que a combinação de coletivização da produção agrícola e o Lysenkoísmo provocaram o maior número de mortes. Entre 1958 e 1962, a Grande Fome resultante da reforma agrícola conduzida na China transformou Mao no maior assassino em massa da história mundial, segundo o historiador Frank Dikotter.

As ações de Lysenko foram implementadas como reforço a uma política de abandono das ações individuais dos fazendeiros russos. “A coletivização forçada do campo foi uma guerra declarada pelo Estado soviético contra toda uma nação de camponeses bem sucedidos. Com o tempo, o processo inteiro transformou-se em guerra contra os camponeses em geral”, diz o professor Daniel Fernandes. “Com a coletivização forçada do solo agrícola, a produção de grãos entrou imediatamente em declínio, logo seguida por acentuada queda na criação de gado. A iniciativa congênita do camponês foi cortada pela raiz, com sérias e inevitáveis consequências”.

Diante do fracasso da política, diz o professor, “Stalin reagiu tratando de encontrar um culpado. Acusou os funcionários do partido, afirmando que não haviam entendido corretamente as instruções que receberam”.

Lysenko acabaria perdendo espaço com a morte de Stalin, em 1953. Depois que o sucessor do ditador, Nikita Kruschev, denunciou os crimes do stalinismo, o agrônomo foi mantido na direção da Academia de Ciências Agrícolas da União Soviética, mas agora com atuação mais discreta.

Em 1964, Lysenko foi abertamente denunciado pelo físico Andrei Sakharov: “Ele é responsável por um recuo vergonhoso da biologia soviética, e da genética em particular, provocado pela disseminação de uma visão pseudocientífica”, escreveu. O agrônomo perdeu o cargo em 1965, quando a imprensa controlada pelo Estado passou a publicamente criticar seu trabalho e caracterizá-lo como pseudociência. Foi só então que as pesquisas russas sobre genética puderam ser retomadas. Ao morrer, em 1976, Trofim Lysenko recebeu um enterro discreto.


Notas / Referências:

  • [1]  "Tiago  Cordeiro é jornalista pós-graduado em Literatura Brasileira. Nascido em Curitiba, foi repórter das revistas Época e Veja, e editor da Aventuras na História. É autor de ‘A Grande Aventuras dos Jesuítas no Brasi’ e ‘Os Primeiros Brasileiros’. Foi indicado ao Prêmio Esso de Criação Gráfica e ganhou medalha de prata no Prêmio Malofiej. Colabora com a Gazeta do Povo desde 2016”. In: <https://www.gazetadopovo.com.br/autor/tiago-cordeiro/>. Acesso em: 26/07/2022.

26 julho 2022

A Ilha de Nazino: um lugar ainda pior do que os Gulags e Auschwitz

Por Rafael Azevedo [1]

 

Ilha canibal do Stalin [2]

Milhares de pessoas tiveram como destino uma ilha gelada e barrenta no meio da Sibéria. Sem ter o que comer, a situação descambou para o caos absoluto, com fuzilamentos, mutilações e canibalismo.

Hoje em dia – ou pelo menos até a pandemia de Covid-19 parar o mundo – barcos cheios de passageiros cruzam corriqueiramente um trecho do rio Ob, no meio da Sibéria, sem que a maioria dos seus passageiros se deem conta de por onde estão passando. Talvez uns poucos tenham ouvido seus pais e avôs comentarem o que aconteceu ali. Mas, se nem eles se lembram, imagine o resto do mundo.

Já no fim da década de 20 o regime soviético tinha começado a se revoltar contra inimigos, imaginários ou não, inaugurando com os kulaks (não confundir com gulags. Os kulaks eram os proprietários de terras considerados “burgueses” pelo regime comunista) a mania de mandar todo mundo de que não gostassem para a Sibéria. Mas com as dissidências internas do regime e a própria insânia inerente ao socialismo, a paranoia se instalou no regime e pessoas consideradas “desclassificadas e socialmente prejudiciais”, como comerciantes, camponeses que fugiam da fome, “ladrões de galinha”, ou qualquer um que simplesmente não se encaixasse no esquema de classes idealizado pelo Partidão ou tivesse deixado seu passaporte em casa, começaram a ser presas em Moscou e Leningrado, classificados como “parasitas da sociedade” e deportados para algum “campo de trabalho”.

Para o idealizador do plano, Genrikh Yagoda, chefe da política secreta da época e alguém que poderia apresentar um programa policial na TV soviética da época, tudo isso serviria para “purificar” as cidades. Mendigos e criminosos seriam mandados para colonizar e subjugar a Sibéria, enquanto a população local tinha que se virar com a falta de remédios, empregos, moradia, e viver à base de tubérculos e caça. Em 1931, um primeiro experimento foi feito pelo governo soviético: 800 pessoas consideradas “socialmente perigosas” foram despachadas para um lugar às margens do Ob, onde, sem comida e emprego, acabaram se revoltando e aterrorizaram a população local até serem exterminadas pelos nativos. 

O responsável pelo transporte dos “prisioneiros”, conhecido apenas como Comandante Tsepkov, depois de receber um telegrama de seus superiores ordenando acomodar “pelo menos 25.000 elementos” na região no início de maio, respondeu dizendo que conhecia os nativos da taiga e sabia que eles “eram excelentes caçadores”. Tsepkov esperava, no entanto, receber fazendeiros, gente especializada com a vida agrária. Quando foi informado pelos seus superiores que receberia milhares de “criminosos e desclassificados”, pouco pôde fazer.

Quatro barcas carregadas com cerca de cinco mil “dissidentes”, presos pelos mais variados e irrelevantes motivos, foram levados rumo ao Oceano Ártico em balsas usadas para carregar madeira. Depois de quatro dias de viagem e 900 quilômetros Sibéria adentro, em 18 de maio de 1933 os chamados “desclassificados” desembarcaram na ilha de Nazino. Uma ilha entre aspas. Um pedaço de lama e terra, em plena taiga siberiana. Um terreno pantanoso e infértil, cujas redondezas eram habitadas por tribos nativas hostis.

Os registros de embarque estavam tão ilegíveis que era quase impossível conferir a presença dos passageiros. Mas, ao que se conta, 332 mulheres e 4.556 homens conseguiram desembarcar, e 27 não resistiram à viagem. Os que sobreviveram desembarcaram com as parcas forças que tinham, sem qualquer roupa ou bagagem, e se depararam não só com a paisagem desolada da ilha, mas também com a falta de qualquer estrutura. Ao ver os prisioneiros, a frase de Tsepkov ficou para a história: “eles que pastem”. Muitos tentaram fugir, construindo jangadas improvisadas com o que encontravam pela frente, mas morreram depois de naufragar nas águas geladas ou fuzilados pelos guardas que o governo soviético tinha diligentemente designado para cuidar de dissidentes tão perigosos.

A única comida distribuída aos prisioneiros era uma pilha de farinha podre. À medida que o frio e a neve aumentaram, o Comandante Tsepkov tentou organizar duas equipes para construir fornos para assar pães. Quando questionado por Moscou, ele foi obrigado a responder que “os indivíduos desclassificados que alegavam conhecer todo tipo de trabalho, quando foram forçados a trabalhar, não sabiam fazer nada, especialmente como construir fornos!”

Dois dias depois, todo tipo de doença contagiosa já tinha se espalhado pela ilha. A sociedade local rapidamente se transformou numa espécie de “valetudo”, com grupos oriundos das cidades formando máfias para extorquir a população e, com o tempo, todos os outros habitantes das redondezas. Com o tempo, até o canibalismo foi “institucionalizado” e corpos passaram a ser encontrados mutilados, sem órgãos. Pessoas foram pegas com restos de fígados e outros órgãos alheios.

Os soldados e policiais responsáveis por “cuidar” do lugar acabaram se rendendo ao absurdo da situação, alguns extorquindo os habitantes para manter a coisa em segredo, mas muitos apelando aos superiores para narrar o desespero e detalhar a que ponto os locais tinham chegado. Tropas foram enviadas para a ilha, mas, em vez de trazer provisões ou transferir quem estava lá, a intenção dos militares era apenas reprimir os condenados, dizendo que o “sistema soviético tinha fracassado com eles”.

Enquanto isso tudo acontecia, Tsepkov, seus superiores e auxiliares se recusavam a informar os chefões. Talvez por medo de serem eles mesmos canibalizados por sua ideologia. A dificuldade de encontrar guardas dispostos a patrulhar o lugar era tamanha que foi necessário o uso de informantes entre a população de aldeias locais. Uma pessoa a cada doze famílias era incumbida de delatar casos de fuga e qualquer distúrbio da ordem pública, já que não eram poucos os casos de moradores da ilha que assaltavam as populações vizinhas e tentavam matar seus animais e roubar seus barcos para fugir.

Enquanto os documentos da época mostravam uma obsessão em implementar um sistema utópico de colônias administradas sob um sistema quase militar, o que se via na realidade era praticamente uma terra de ninguém. Um emissário do Departamento de Assentamentos Especiais enviado para inspecionar as condições do lugar ouviu de um dos locais: “Vocês estão fazendo as pessoas passarem fome. Bem, estamos comendo uns aos outros!” O sujeito obviamente foi preso por “propaganda contrarrevolucionária”, por “espalhar alegações envolvendo canibalismo e uma suposta fome causada pelo Estado soviético”. Para as autoridades, os rumores estavam sendo difundidos por dissidentes infiltrados em Nazino para contatar os “elementos desclassificados” que tinham sido enviados para lá, “numa clara demonstração de manipulação política conduzida por elementos externos”. 

A chegada de uma nova remessa de “dejetos humanos” à ilha agravou de tal maneira a situação em Nazino que, depois de alguns meses, autoridades do Partido Comunista ordenaram a transferência dos detentos para locais vizinhos, obrigando a população destes locais a fornecer pão, roupas e construir acomodações para os “elementos desclassificados”. O Comandante Tsepkov caiu em desgraça, acusado de “incompetência” e de “violar as resoluções do Partido com respeito à recepção dada aos assentados especiais”.

Nas semanas seguintes, a ilha começou a ser gradualmente esvaziada. Durante o processo de transporte dos prisioneiros, muitos estavam num estado de tamanha fragilidade que não resistiram à viagem. Outros tantos simplesmente “desapareceram” após desembarcarem. 157 estavam tão fracos que foram obrigados a continuar lá. A situação nos novos assentamentos, no entanto, não era muito diferente da que eles viviam na ilha de Nazino. Muitos que tentavam fugir eram simplesmente abatidos a tiros pelos guardas. 

Enquanto isso, um comitê de inspeção enviado pelo governo até a ilha determinou que o número de mortos em Nazino tinha sido “escancaradamente exagerado por motivos políticos”. O episódio foi mantido em segredo por décadas, até que, durante a glasnost, na década de 1980, um grupo ativista de direitos humanos chamado Memorial trouxe o assunto à tona, entrevistando sobreviventes e membros da população local. O relato de um desses últimos foi simplesmente estarrecedor: “Eles estavam tentando fugir [da ilha]. Perguntaram para nós: “Onde está a ferrovia? Nunca tínhamos visto uma ferrovia. Perguntaram: “Para que direção é Moscou? Leningrado? Estavam perguntando para as pessoas erradas. Nunca tínhamos sequer ouvido falar desses lugares. Somos ostiaques. As pessoas estavam fugindo, famintas. Tinham lhes dado um punhado de farinha, que eles misturaram com água para comer e imediatamente tiveram diarreia. As coisas que vimos! Pessoas morrendo por toda a parte, matando uns aos outros... na ilha havia um guarda chamado Kostia Venikov, um rapaz jovem. Ele se apaixonou por uma garota enviada para lá e estava tentando conquistá-la, procurava protegê-la. Um dia ele teve que se ausentar e pediu a um de seus colegas que ‘cuidasse dela’, mas não havia nada que aquele sujeito pudesse fazer diante daquela quantidade de pessoas... Agarraram-na e a amarraram numa árvore, cortaram seus seios, seus músculos, tudo que puderam comer, tudo, tudo... estavam famintos, precisavam comer. Quando Kostia voltou, ela ainda estava viva. Tentou salvá-la, mas já era tarde. Ela tinha perdido muito sangue”. 

O fracasso de Nazino pôs um fim ao sistema de “colonização” dos territórios de fronteira planejado pelo regime soviético usando elementos tidos como perigosos e “desclassificados”. Muitos membros do Partido ficaram chocados ao descobrir que amigos e colegas deles tinham sido enviados para lá, além de pessoas que não tinham cometido absolutamente nada de condenável. 

Mas Stalin e seus capangas ainda continuariam mandando por mais algumas décadas todos aqueles que julgavam indesejáveis para os gulags, onde, segundo algumas estimativas, mais de um milhão de pessoas morreram.


Notas / Referências:

  • [1]  Texto de Rafael Azevedo. In: As atrocidades do comunismo que você não apendeu na escola. Capítulo 1. Ebook publicado por Gazeta do Povo, pp. 07 a 13.

  • [2]  Imagem disponível em: <https://history.uol.com.br/historia-geral/prisioneiros-sofreram-horrores-na-ilha-canibal-do-stalin>. Acesso em: 21/07/2022.

Campo 14 – bebês mortos a pauladas, fome e execuções: a vida em um campo de concentração norte-coreano

P or J ones R ossi  [ 1 ] Uma aula no Campo 14   Os  professores do Campo 14 eram guardas uniformizados:  tratados por Shin no desenho acima...