O
Brasil nasceu à sombra da cruz. Não apenas da que foi plantada na
praia do litoral baiano, para atestar o domínio português, ou da
que lhe deu nome – Terra de Santa Cruz –, mas da que unia Igreja
e Império, religião e poder. Mais. Essa era uma época em que
parecia impensável viver fora do seio de uma religião. A religião
era uma forma de identidade, de inserção num grupo social – numa
irmandade ou confraria, por exemplo – ou no mundo. A colonização
das almas indígenas não se deu apenas porque o nativo era potencial
força de trabalho a ser explorada, mas também porque não tinha
“conhecimento algum do seu Criador, nem de cousa do Céu”. Isso
foi fundamental para dar uma característica de missão à presença
de homens da Igreja na América portuguesa. D. João III não deixou
dúvidas quanto a isso ao escrever a Mem de Sá: “A principal causa
que me levou a povoar o Brasil foi que a gente do Brasil se
convertesse à nossa santa fé católica”.
A crença de que o apóstolo São Tomé teria saído pregando o
evangelho de Cristo mundo afora estimulava os religiosos europeus a
seguir seu modelo, suas pegadas. Para empurrá-los, o próprio
infante d. Henrique criara, com o aval da Santa Sé, conventos no
Norte da África. Os padrões, ou marcos, plantados na costa da
África e da Ásia, traziam as armas reais entrelaçadas à cruz,
pois missão evangelizadora e colonização se sobrepunham.
o zelo fanático em extirpar idolatrias e heresias, num momento
delicado em que católicos e protestantes se digladiavam pela
hegemonia religiosa no Velho Mundo, somou-se à necessidade de pregar
a palavra de Deus, evangelizando, catequizando e impondo ideais.
“Todos temem e todos obedecem e se fazem adeptos para receber a
fé”, registrava, no século XVI, o jesuíta Antônio Blásquez.
Mas como se deu tal evangelização? Quem foram os primeiros a
difundir o cristianismo no ultramar?
Os
primeiros religiosos a desembarcar entre nós foram oito
franciscanos, membros de importante ordem estabelecida, há tempos,
em Portugal. Sua presença como capelães de bordo na navegação
portuguesa era comum, mas sua participação na evangelização do
gentio ou nas práticas religiosas de colonos só ganhou envergadura
a partir da década de 1580, com a conquista da Paraíba. A eles
juntaram-se beneditinos e carmelitas. Papel bem mais relevante,
contudo, teriam os jesuítas. Vindo com Mem de Sá em 1549, o
primeiro grupo era composto por seis missionários da recém-fundada
Companhia de Jesus, entre os quais estava Manuel da Nóbrega
(1517-70). Sua primeira providência? A organização de uma escola
que, como outras que se seguiriam, consistia na base da missão. Um
ano mais tarde, chegaram mais padres acompanhados de “órfãos de
Lisboa, moços perdidos, ladrões e maus”, que teriam papel
relevante, embora anônimo, nos projetos da Companhia. Chamados
meninos língua, cabia-lhes aprender o tupi-guarani, tendo como
tarefa a conversão das crianças nativas. Em 1550, Leonardo Nunes
instalou-se em São Vicente, litoral paulista, onde, em registro
admirativo de Nóbrega, ergueu “uma grande casa e muito boa
igreja”. Bahia e Rio de Janeiro tornavam-se polos de irradiação
da atividade de catequese. Em 1575, inaugurou-se, em Olinda, o quarto
grande colégio, onde eram ministradas aulas de “ler, escrever e
algarismos” para os filhos de colonos.
As
cartas escritas pelos padres jesuítas a seus superiores na Europa
revelam como transcorria o cotidiano nas missões onde se juntavam
padres e indígenas: “Se ouvem tanger missa”, conta um inaciano,
“já acodem e tudo que nos veem fazer, tudo fazem. Assentam-se de
joelhos, batem nos peitos, levantam as mãos para o céu”. A
clientela era feita de filhos de índios e mestiços, acrescida, de
tempos em tempos, de um principal, ou seja, um chefe. As primeiras
atividades religiosas consistiam em recitar, nas igrejas, ladainhas
ou a Salve-Rainha. Nas sextas-feiras, disciplinavam-se em cerimônias
de autoflagelação e, com o corpo coberto de sangue, saíam em
procissão. Cantavam hinos como o Dominus et Creator e revezavam-se
entre aulas de flauta e canto. A Gramática, feita de perguntas e
respostas, era o livro básico para a instrução, além de
aprenderem a escrever. Confessavam-se de oito em oito dias e saíam
para caçar e pescar todas as tardes, pois não havia qualquer forma
regular de aprovisionamento. A alimentação baseava-se na farinha de
pau, nome dado à farinha de mandioca, e caça, “como sejam os
macacos, as corças, certos animais semelhantes a lagartos, pardais e
outras feras”, explicava o padre Anchieta. O pescado era
considerado gostoso e o cardápio engrossado por legumes, favas,
folhas de mostarda e abóbora, e “em lugar de vinho [...] milho
cozido em água a que se ajunta mel”. As meninas indígenas eram
ensinadas a tecer e fiar algodão, capaz de vestir os jovens nus. O
tempo livre das crianças ficava por conta do banho de rio ou no “ver
correr as argolinhas”, brinquedo, segundo Nóbrega, importado de
Portugal: “Ensinamos-lhes jogos que usam lá os meninos do Reino.
Tomam-nos tão bem e folgam tanto com eles que parece que toda a sua
vida se criou nisso”, anotava o padre Rui Pereira em 1560. As
atividades físicas mais simples impregnavam-se de cantos e danças
nos quais a cultura indígena se impunha. Em festas nos aldeamentos,
os meninos levantavam-se à noite para a seu modo cantar e dançar
“com taquaras que são canos grossos que dão no chão e com o som
que fazem cantam e com as maracas que são umas frutas, umas cascas
como cocos furados por onde deitam pedrinhas dentro”. A
sensibilidade musical do indígena fazia crer aos jesuítas que,
“tocando e cantando entre eles, os ganharíamos” e que “se cá
viesse um gaiteiro”, anotava Nóbrega, não haveria cacique que
recusasse seus filhos à escola jesuítica. Nos batismos em grupo, os
meninos índios eram vestidos com “roupas brancas, flores na cabeça
e palmas na mão”, sinal da vitória que teriam alcançado contra o
Demônio.
Até
1580, os jesuítas procediam como uma espécie de missionários
oficiais da Coroa. A anexação de Portugal à Espanha, no período
da União Ibérica (1580–1640), mudou, contudo, essa hegemonia –
estimulando-se o ingresso de outras ordens religiosas ao Brasil. Os
franciscanos destacaram-se por seguir a ocupação do litoral
nordestino, do Rio Grande do Norte a Alagoas. Unidos aos senhores do
açúcar, desenvolviam sua ação dentro das capelas de engenhos,
rezando missas, realizando batismos e casamentos comunitários,
abençoando as moendas e os animais. Acompanharam os bandeirantes em
suas expedições de apresamento de índios e, ao contrário dos
jesuítas, situaram-se mais do lado do branco do que do índio. Nas
expedições oficiais para a conquista da Paraíba, por exemplo,
jamais apoiaram tabajaras e potiguares e, entre 1588 e 1591,
começaram a estabelecer-se em conventos, lado a lado com beneditinos
e carmelitas.
Instalados
ao final do século XVI em Olinda, os carmelitas ensinavam teologia e
língua brasílica, ou seja, o tupi simplificado, e daí enviavam
seus missionários Brasil afora. Foram vigorosos defensores dos
interesses portugueses na Amazônia, logo deixando de importar-se com
o caráter missionário e investindo nas relações com as populações
de vilas interessadas no comércio de especiarias, como o cacau. Mais
dedicados à vida contemplativa do que a qualquer outra atividade, os
beneditinos pertenciam, por sua vez, a uma ordem rica, possuidora de
inúmeros imóveis e fazendas sustentadas por escravos. Na Amazônia,
cartas régias fixaram a atuação de cada ordem: franciscanos de
Santo Antônio, as missões do cabo do Norte, Marajó e norte do rio
Amazonas; Companhia de Jesus, as dos rios Tocantins, Xingu, Tapajós
e Madeira; Carmo, as dos rios Negro, Branco e Solimões; franciscanos
da Piedade, as do Baixo Amazonas; mercedários, as do Urubu, Uatumã
e trechos do Baixo Amazonas. Já no Sudeste, os franciscanos
organizavam-se em missões volantes, nas quais grupos visitavam de
tempos em tempos as vilas e povoados do interior para pregar,
confessar, rezar missas, apoiando com socorro espiritual os colonos.
À
medida que a colonização, a fome e as guerras dizimavam os índios
do litoral e que os negros africanos eram trazidos em massa para
trabalhar nos engenhos como escravos – sem que autoridades
religiosas argumentassem contra sua escravização –, os movimentos
missionários se deslocavam para o interior da Colônia à procura de
novas almas. Nos sertões do rio São Francisco, capuchinhos
franceses, aliados das reformas propostas pelo Concílio de Trento, e
oratorianos italianos, muito voltados para as práticas piedosas de
orações e devoções, tiveram destacada atuação. Os laços que os
ligavam diretamente à Santa Sé, em Roma, sem passar por vínculos
com o governo português, lhes davam grande liberdade de ação. Suas
missões lhes permitiam estar mais próximos do povo humilde que
habitava, disperso e sem auxílio, as ermas vastidões do interior.
Mas
havia muitos espinhos nos caminhos da evangelização. Os conflitos
entre leigos e o clero se sucediam. Os mais importantes deram-se em
torno da escravização dos indígenas, verdadeira pedra no sapato –
ou melhor, nas alpargatas – dos padres que desejavam a catequese e
a conversão do gentio. Desde o século XVI, a Companhia de Jesus
conseguiu que o governo proibisse tal prática. Todavia, grupos
importantes de plantadores de cana, donos de engenhos e,
posteriormente, bandeirantes que obtinham grandes lucros com a
escravização dos negros da terra consideravam sua proteção uma
ruína para a Colônia. Eles não apenas insistiam com as autoridades
do Reino para que estas lhes concedessem liberdade para usar o
trabalho compulsório dos índios, como também, por meio de pressões
e ameaças, retardaram o quanto puderam a supressão da escravatura
dos nativos. Para fazer frente às dificuldades criadas pelos
colonos, uma lei de 1639, baseada em bula papal, reafirmou a
liberdade dos indígenas. A resposta não tardou: colonos
revoltaram-se em São Paulo, Santos e Rio de Janeiro, apontando suas
armas contra os portões das escolas da Companhia de Jesus. Das
janelas, terços na mão, os padres os excomungavam sob uma chuva de
balas. Em Belém, os colonos acusavam os jesuítas por libelos
enviados diretamente a procuradores na Corte. O ódio entre um e
outro grupo era tal que os jesuítas foram expulsos dessas
localidades, só regressando anos depois.
Em
meio a essa crise, chegou ao Brasil, em 1652, o padre Antônio
Vieira, que logo no ano seguinte foi nomeado visitador das missões
do Maranhão e Grão-Pará. Familiarizado com a Colônia, pois tinha
morado com os pais na Bahia até entrar para o seminário, Vieira
vinha com a função de evangelizar, erguer igrejas e realizar
missões entre os índios do Maranhão, além de contar com o apoio
do rei, que ameaçara com severas punições os que atravessassem seu
caminho. Alguns de seus textos são contundentes críticas à
escravidão indígena, como a Informação sobre o modo que foram
tomados e sentenciados por cativos os índios no ano de 1655. Nele,
Vieira afirma: “Para acudir às injustiças que em todo o estado do
Brasil se usavam no cativeiro dos índios naturais da terra, tomaram
por último remédio os senhores reis destes reinos declarar a todos
por forros e livres”. Exceção seria feita no caso de guerra
justa, ou seja, quando os nativos se recusassem à catequese,
praticassem a antropofogia, cometessem latrocínio em terra ou no
mar, se negassem a pagar tributos e a defender o rei ou a trabalhar
para ele. Em outras palavras: quando de alguma forma resistissem à
colonização.
Levados
do sertão para o litoral pelos jesuítas, muitos índios eram
agrupados em aldeamentos onde recebiam instrução e educação
religiosa. A orientação de Vieira era, contudo, de que
permanecessem no interior, evitando o confronto com os colonos
gananciosos ou com outras ordens religiosas, mais incomodadas com o
prestígio da Companhia do que com o destino dos índios. A pressão
sobre Vieira foi tão grande que ele se viu obrigado a sair do
Maranhão em 1654, retornando a Portugal. Havia tempos, na verdade,
delineava-se esse quadro incendiário: entre 1632 e 1648, as
populações guaranis aldeadas pelos jesuítas entre o Paraguai, o
Paraná e o Rio Grande do Sul (Guairá, Itatim e Tape) haviam sido
arrasadas por bandeirantes paulistas. Por essa época, numerosos
grupos indígenas deslocaram-se para a margem oriental do rio Uruguai
para estabelecerem-se junto dos jesuítas nos Sete Povos das Missões.
Organizados para abrigar até mil famílias em moradias de terra
socada, tais aldeamentos eram alvos constantes de ataques organizados
por bandeirantes paulistas.
Em
relação às demais populações católicas, um importante espaço
de práticas religiosas para homens e mulheres coloniais eram as
irmandades ou confrarias. Associações de caráter local, tais
instituições auxiliavam a ação da Igreja e promoviam a vida
social, desempenhando tarefas que, muitas vezes, deveriam caber ao
ausente governo português: fundação e manutenção de abrigos de
meninos pobres, recolhimento de meninas órfãs e hospitais,
denominados Santas Casas da Misericórdia. Sua finalidade específica
era promover a devoção a um santo. Em torno de festas, do culto e
da capela do santo, um grupo de pessoas, fossem brancas, mulatas ou
negras, se organizava. O que caracterizava a irmandade era justamente
a participação de leigos no culto católico, participação que não
implicava necessariamente a constante presença de padres e
religiosos. Confrarias e irmandades demonstravam toda a força por
ocasião da festa do padroeiro: ruas e igrejas eram decoradas com
ervas perfumadas e tapetes e iluminadas por tigelinhas de barro
contendo óleo de baleia. Irmãos vestidos de capa vermelha,
tocheiros à mão, abriam a procissão, que era seguida de carros
alegóricos ricamente enfeitados, atrás dos quais volteavam músicos
e bailarinos. A diversidade de instrumentos musicais não ficava
atrás da pompa coreográfica dos cortejos. Ritmos profanos e peças
sacras se mesclavam à sonoridade dos batuques africanos. Músicos
negros vestidos de seda e cobertos de plumas, tocando címbalos,
pífaros e trombetas misturavam-se a brancos, tocadores de clarins e
charamelas. Uma imensa variedade de sons rasgava o ar, enquanto
fiéis, piedosamente, desfilavam estandartes e as imagens religiosas.
Seguindo
o costume português, a vida doméstica também consistia em
importante espaço espiritual. Nas paredes das moradias era comum
encontrarem-se cruzes de madeira, gravuras do anjo da guarda ou do
santo com nome do dono da casa. Nas zonas rurais, um mastro com a
bandeira do santo indicava a preferência da devoção familiar. Ao
levantar-se, pela manhã, o cristão benzia-se murmurando o “Pelo
sinal”. Oratórios, ou quartos de santos, eram iluminados por velas
de cera que queimavam constantemente e onde as imagens eram vestidas
e adornadas pelas mulheres. Flores naturais ou de papel, palhas
bentas no Domingo de Ramos, medalhas milagrosas, escapulários e
livros de oração compunham o arsenal do devoto na luta contra Satã.
Em propriedades abastadas era comum a presença de capelas ou ermidas
onde se celebravam casamentos, comunhões e batismos de senhores e
escravos, homens livres e homens forros. Santos de estimação como,
por exemplo, Santo Antônio, eram invocados para interceder em favor
do fiel em caso de escravos fugidos, cavalos extraviados ou roubos.
As solteiras costumavam invocá-lo para arranjar maridos; as casadas,
em caso de desavenças conjugais. Não atendidas, penduravam-no, de
cabeça para baixo, nos poços de água ou tiravam-lhe o menino Jesus
do colo até terem seus desejos concedidos. Orações em que se
nomeavam os santos, Jesus ou Maria eram usadas por benzedeiras e
curandeiras para aliviar as dores, feridas e maleitas dos fiéis:
“Deus eterno, por cujo amor Santa Apolônia sofreu que lhe tirassem
os dentes [...] dai-me socorro saudável contra o incêndio dos
vícios, e dai-me socorro saudável contra a dor dos dentes, por
intercessão. Amém, Jesus”.
Além
do catolicismo, a Colônia foi palco de outros credos, crenças e
práticas religiosas. Descendentes de judeus, por exemplo, buscaram
refúgio nessas terras, que lhes pareciam de promissão. O movimento
migratório começara em inícios do século XVI em função de
perseguições que lhes eram movidas na península Ibérica.
Instalados sobretudo na Bahia, em Pernambuco e no Maranhão, os
recém-chegados integraram-se rapidamente à língua, aos costumes e
à economia local, misturando-se aos cristãos, com quem dividiam
cargos administrativos e comerciais. Os cristãos-novos detinham
engenhos, escravos e terras. Para manter vivos os laços comunitários
e de identificação, realizavam clandestinamente práticas e atos
religiosos do judaísmo, ainda que sob a ameaça da Inquisição. Mas
como é que esta se fazia presente na Colônia?
A
Colônia nunca possuiu tribunal inquisitorial, ficando subordinada ao
existente em Lisboa. Bispos e até leigos – sob o título de
Familiares do Santo Ofício – podiam encaminhar denúncias contra
suspeitos de heresia. Essas acusações também ocorriam por ocasião
de visitações. Espécie de justiça ambulante, as visitas de
inquisidores – realizadas entre 1591 e 1595, 1618 e 1621 e 1627 ao
Nordeste, assim como entre 1763 e 1769 ao Grão-Pará – tinham por
objetivo combater as heresias e zelar pela fé e boa moral dos
católicos. Nesse quadro, ritos, preceitos ou cerimônias judaicas
eram alvo dos monitórios gerais, ou seja, um documento eclesiástico
com aviso aos fiéis, que descrevia minuciosamente tais ritos e era
afixado às portas das igrejas. Pequenos atos do cotidiano serviam
para indicar judaísmo. Guardar os sábados, por exemplo, revelava-se
através do hábito de vestir roupas limpas e arrumar a casa na
véspera – limpar e cozer alimentos, acender candeeiros, etc. –
para que não houvesse necessidade de trabalhar nesse dia.
Conscientes do interesse do Santo Ofício por pessoas que cometiam
essas infrações, os cristãos-novos costumavam apresentar-se às
autoridades confessando seus atos. Fernando Salazar, por exemplo,
compareceu perante o inquisidor Marcos Teixeira, em 1618, e declarou
“vestir camisa lavada aos sábados”, justificando-se a seguir:
“Por ser homem que ganha a sua vida em tratar as galinhas e
papagaios e em outras cousas da terra e vir muito suado quando vem de
fora”. Os jejuns eram outra prática constante daqueles que seguiam
às escondidas a lei de Moisés. Havia um grande jejum em setembro, o
da rainha Ester e o das segundas e quintas-feiras da semana. Nesses
dias, os israelitas evitavam alimentos durante o dia e ingeriam, só
à noite, carnes e sopas; passavam, ainda, o dia descalços, pedindo
perdão uns aos outros. Na celebração da Páscoa judaica, comiam
pães ázimos e recitavam orações judaicas, baixando e levantando a
cabeça diante da parede, adornada com cordões e fitas rituais, os
trancelins. Enterravam os mortos em mortalha nova e terra virgem,
colocando-lhes na boca um grão de aljôfar ou uma moeda de prata
para que pagassem a primeira pousada. Os meninos eram circuncidados.
Mesmo não seguindo as práticas judaicas de modo inteiramente
consciente, os cristãos-novos conservavam a essência de sua cultura
original. Repudiavam as imagens dos santos que enfeitavam os
oratórios, consideravam a religião católica uma idolatria,
esquivavam-se do sacramento da confissão, alegando que: “Era
melhor confessar a um pau ou a uma pedra do que a um outro pecador”.
Diferentemente
dos cristãos-novos, os judeus que iriam se instalar em Pernambuco
quando da invasão holandesa, de 1630 a 1654, encontraram melhores
condições para exercer sua religiosidade. Concentrados numa rua de
Recife, a Jodenstraat (rua dos Judeus), onde construíram a sinagoga
da comunidade Kahal Zur Israel: uma casa de muitas janelas, com o
térreo ocupado por duas lojas, tendo no andar de cima uma ampla sala
mobiliada para utilização religiosa. Ao rabino, ou haham, Isaac
Aboab da Fonseca devem-se as primeiras páginas literárias, em
hebraico, escritas no Brasil: um poema que descreve os sofrimentos
suportados pelos judeus em 1646, quando Recife ficou sitiado pelos
luso-brasileiros.
O
protestantismo teve, no Brasil colonial, dois períodos marcantes. O
primeiro vai de 1555 a 1560, quando chega à baía de Guanabara o
vice-almirante francês Nicolau Durand de Villegaignon para fundar no
hemisfério sul uma colônia, a França Antártica, com calvinistas
(huguenotes) franceses, hostilizados em sua terra. O segundo foi o da
colonização holandesa no Nordeste. Com o auxílio de Gaspar de
Coligny, nobre protetor dos huguenotes, Villegaignon estabeleceu-se
na Guanabara com quatrocentos homens atraídos pela promessa de
liberdade religiosa. Suspeitas e insegurança, porém, logo
perturbariam o governo da França Antártica. Villegaignon
desconfiava de seus próprios homens e dos índios tamoios, seus
aliados. Os problemas ficaram maiores quando aqui chegou um
contigente de 280 religiosos calvinistas vindos de Genebra, onde
haviam sido ordenados. Ao que parece, os missionários recém-chegados
traziam cartas de recomendação de importantes líderes religiosos e
nobres, que fizeram Villegaignon temer por seu prestígio na França.
Na chegada, o líder os recebeu com gestos de obediência, passando,
logo depois, a criticá-los por não usarem pão comum e vinho não
misturado com água na celebração da Santa Ceia.
As
polêmicas se multiplicaram. Villegaignon questionava as posições
calvinistas sobre a transubstanciação, ou seja, a mudança da
hóstia em corpo de Deus, a invocação dos santos, o Purgatório.
Por fim, proibiu Pierre Richier, um dos pastores credenciados por
Calvino, de pregar. Diante de tantos conflitos, Richier partiu para a
Europa com seus auxiliares. Devido às más condições da travessia
marítima, alguns resolveram voltar. Foram recebidos por um
desconfiado Villegaignon que rejeitara publicamente o calvinismo.
Obrigados a redigir uma declaração sobre alguns pontos doutrinários
– intitulada Confessio Fluminensis –, caíram numa armadilha;
acusados de traição, foram condenados e executados. Tornaram-se os
primeiros mártires do credo protestante na América.
Enfraquecido
e já sem a proteção de Coligny, Villegaignon retornou à França
em 1558, pouco antes de os portugueses recuperarem a Guanabara. Por
tensões político-religiosas, fracassava a tentativa de implantar
uma colônia calvinista no Centro-Sul do Brasil colonial. Ela seria
repetida, igualmente sem sucesso, no começo do século XVII, em São
Luís do Maranhão, com a França Equinocial.
Conforme
mencionamos, outro período de significativa atividade protestante
foi o da colonização holandesa no Nordeste. Sob a regência de
Maurício de Nassau, o domínio holandês estendeu-se temporariamente
do Maranhão até abaixo do rio São Francisco. Nesse governo, a
liberdade religiosa era para todos. Católicos eram livres para
exercer seu culto e manter relações com a sede episcopal da Bahia.
Sinagogas e escolas hebraicas funcionavam no Recife e foram as
primeiras da América. O protestantismo, considerado a verdadeira
religião, lutava para instalar-se no Brasil. A chave para sua
compreensão era a subordinação de todos os aspectos da vida aos
sagrados mandamentos. A formação de paróquias protestantes
estendeu-se pelas conquistas territoriais, com a catequese e o ensino
ocupando muitos pregadores.
Os
africanos também trouxeram seus credos para a América portuguesa.
Com eles, cerimônias religiosas como o acotundá e o calundu, além
de cultos envolvendo os mortos, que eram corriqueiramente praticados.
Em casas humildes, cobertas de capim, de paredes de barro,
preferencialmente à beira de um córrego ou fonte, celebrava-se a
dança de tunda, ou acotundá. Altares com banquetas de ferro onde se
misturavam ordenadamente cabaças, panelas e recipientes variados de
barro e imagens antropomorfas sinalizavam o espaço sagrado. O som de
tambores e atabaques, cantos no dialeto courá, da Costa da Mina,
enchiam a noite. Vindas das camarinhas, mulheres vestidas com panos
brancos, que com frequência lhes cobriam a cabeça, dançavam e
cantavam, por vezes misturando palavras extraídas de textos
católicos e africanos. Muitos dos elementos rituais que se encontram
hoje no candomblé baiano e xangôs do Nordeste já estavam presentes
nesses rituais: o emprego de galos e galinhas nos sacrifícios de
animais, a predominância feminina, o destaque de uma das dançantes
identificada ao líder cerimonial, a possessão e o transe ao som de
atabaques.
Havia
ainda outras formas de religiosidade africana na Colônia. Vindas do
Daomé, atual Benin, na costa ocidental da África, rituais de origem
jeje conhecidos como calundus eram conduzidos por um vodunô, líder
espiritual, com o auxílio de vodúnsis, membros do culto; o ritual
consistia em danças e cantos na língua jeje, ao som de ferrinhos
(agogôs e gans) e atabaques. O centro do cerimonial abrigava ervas,
búzios e aguardente. Folhas de diversas plantas serviam na
preparação de alimentos oferecidos às divindades, os ebós, mas
também em ritos de iniciação e limpeza do corpo. Um sentido para a
vida, segurança e proteção contra um mundo hostil, espaço para
sociabilidades e solidariedades eram as funções desses rituais
religiosos. Dessa maneira, a Colônia crescia à sombra da cruz e de
vários credos que ainda hoje hidratam nossa cultura.
Fonte
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