Em
seu trabalho o
marxismo e a fé cristã,
o escritor J. Sturz divide
o seu estudo em três partes
importantes: os conceitos marxistas (ideologia,
dialética, a história e o homem); Marx e a religião (a irreligião
marxista, evangelho segundo Marx e diálogo marxista-cristão) e
marxismo e teologia. Nosso propósito
aqui, e
em outros posts (esperamos poder
publicar)
é refletir sobre os sub-temas do referido trabalho escrito lá
no
início dos anos 80 e que ainda julgamos relevantes para nossos dias,
obviamente com outros ingredientes complementares. O primeiro deles é
aideologia.
Como
definição de ideologia
podemos citar o que é ditoaqui,
como sendo ela
“… um
termo que possui diferentes significados e duas concepções: a
neutra…
um…
conjunto
de ideias, de pensamentos, de doutrinas
ou
de visões de mundo de um indivíduo ou de um grupo…
e
a
crítica…
que…
pode
ser considerado um instrumento de dominação que age por meio de
convencimento (persuasão
ou
dissuasão,
mas não por meio da força física) de forma prescritiva, alienandoa
consciência humana”.
Sturz
diz
que os conceitos marxistas ideologia e dialética estão
inter-relacionados e estão ligados ao saber baseados
numa auto-reflexão hegeliana. Mas sobre este último queremos falar
num outro
momento. Como fazia com outros conceitos relacionadas ao saber, Marx
tentava encaixar suas
ideias dentro
do esquema materislista, ou seja, tentava separar as
ideias da
realidade histórico-social.
Para Marx, “… a
classe dominante impõe suas ideias
através da escola, da religião, dos costumes ao ponto de que são
consideradas verdadeiras, universais quanto à humanidade. Esta
classe desenvolveu-se junto com suas ideias
dentro de um modo de produção" [1].
Para
desfazer a ideologia da classe dominante, Marx propõe uma revolução
da classe oprimida contra
a classe opressora. E a nova
classe emergente, depois
de sistematizar suas ideias, diferentes da existente e de acordo com
seus
interesses, precisam
ganhar
o apoio de toda sociedade. Sturz
cita
Marilena Chauí e
destaca que
a
ideologia marxista não
está encarregada de
“tomar o lugar” da prática, nem de “guiar” a prática e nem
tampouco de se “inutilizar enquanto teoria” para valorizar apenas
a prática (Idem,
pág.
210).
Segundo
esta linha de raciocínio marxista, as “… ideologias
podem não ser consideradas visões de mundo… porque grande parte
dos ideólogos propõe transformações sociais ao invés de uma
teoria que tente explicar a realidade”. Ou
seja, Karl Marx entende que ‘Os
filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a
questão, porém, é transformá-lo’” [2].
Mas
será que
o marxismo escapa de ser ou
ter
uma ideologia?, pergunta
Sturz. Na verdade, “… o
marxismo, longe de ser apenas uma análise de fatos concretos,
torna-se bandeira de ideias
para fazer a realidade depender delas. De símbolos estas ideias
se tornaram verdadeiros ídolos…” [3].
Ampliando
este raciocínio, vejamos o estudo da Brasil
Paralelo
sobre o assunto: “Marx
acreditava que a burguesia criava ideias ilusórias, como a religião,
para enganar as outras classes e conseguir dominá-las mais
facilmente. Ele chamava as supostas ideias falsas da burguesia de
ideologia. Contudo, as características das teorias de Marx são semelhantes às da ideologia de Destutt [4],especialmente devido as influências iluministas nas obras de ambos". A
Brasil Paralelo destaca ainda
as
característicasdeumaideologia:
Reducionismo
da realidade: os
ideólogos observam
a realidade a partir do que pensam, fechando-se a tudo o que a
realidade apresenta e que está fora da sua linha de pensamento.
Formação
de um governo extremista: “Uma
vez que a sociedade perfeita pode ser formada, o governo ideológico
se vê no direito de eliminar aqueles que atrapalhem tamanho bem
aparente, já que não existe uma punição além da terrena”.
Rechaço
contra religiões transcendentais: os
ideólogos (marxistas)
acreditam que conseguem gerar uma civilização perfeita na Terra
com seus próprios esforços, ao
contrário da
maioria das que
religiões
acreditam que a vida perfeita está para além deste mundo.
Formação
de uma religião imanentista: para
os comunistas, após viver a doutrina marxista e conseguir a
conversão de um número de pessoas adequado, a revolução seria
feita e o paraíso seria atingido.
Ao
analisarmos as características acima, podemos dizer que os
conservadores (não conservadoristas, pois assim se tornariam também
ideólogos) pensam o contrário disso. Entender o oposto do que é
ideologia pode auxiliar na melhor compreensão de seu conceito
através
da
observação da realidade. Essa observação gera a construção de
teorias e a descoberta de postulados, mas que não esgotam toda a
existência. De
forma coerente, a BP propõe os pensamentos de
Tomás
de Aquino e
de Aristóteles
como
exemplos de ideias antagonistas
das ideologias. Assim,
os
conservadores procuram
entender o conceito mas rejeitam
a qualificação de
conservadorismo como bandeira
ideológica,
evitando
assim, que
seu pensamento venha a
tornar-se num
código rígido e dogmático de pensamento politizado.
E
por
que devemos
rejeitar o marxismo? Por
conta do enfoque
idolátrico que aparece
quando procura tornar um elemento apenas natural em absoluto.
Neste
afã, Marx desenvolve “três
teorias”[5]que se tornam ídolos:
o
materialismo dialético (a evolução humana, relações sociais
determinadas pelas classes e os pensamentos
humanos representam apenas estas classes);
um
otimismo que vê solução de todos os problemas na marcha
histórica; e
um
humanismo religioso que encarrega o homem de sua própria salvação.
Como
os ídolos são espécies de deuses que ocupam o lugar do verdadeiro
Deus, as teorias marxistas tornam seus adeptos em verdadeiros
“crentes” em Marx e suas ideias. Se a ideologia, segundo Marx
“mascara
a realidade social”, e toma o “falso por verdadeiro e o injusto
por justo[6]",
podemos interpretar, à luz Bíblia
e da teologia
cristã, de forma invertida estas palavras,
isto é, afirmarmos o contrário: chamarmos de “treva” o que o
marxismo chama de “luz”; de “falso” o que é entendido como
“verdadeiro”, de “injusto” ao invés de “justo” e assim
por diante.
Embora
o marxismo
não
crê em nenhum elemento sobrenatural (metafísico), seu sistema
tornou-se um verdadeiro dogma no sentido de que suas ideias (teorias,
argumentações…) estejam colocadas acima de qualquer outro modo de
pensar. E entendido sua ideias como verdades, os comunistas/marxistas
tornam-se exclusivistas e não aceitam ser contraditados. É por isso
que Marx defendia a implantação violenta do comunismo, inclusive a
destruição do Cristianismo, esta ou qualquer outra religião é o
“ópio do povo”. Veja o vídeo sugerido abaixo.
Um
paralelo
entre Comunismo
e
Cristianismo [7]sobre
as
várias
situações da vida caracterizam
bem
as diferenças entre ambos:
Comunismo:
para o comunista...
Cristianismo:
para o cristão...
O
homem não é livre, porque a sua iniciativa vem de fora, isto é,
do Partido, que dita não somente o que ele deverá fazer, mas
também o que deverá pensar. Ele é como o leme de um navio, que
vai para onde quer que o dirija o comandante, que é o ditador do
Partido.
O
homem é livre, porque a sua iniciativa vem de dentro, a saber,
da sua alma. Ele pode ser comparado a um capitão de navio, que é
livre de traçar o seu próprio curso e de escolher o seu próprio
porto.
O
homem é um objeto. Um objeto não pode agir, mas é acionado
como um autômato social, e torna-se como o cinzel na mão de um
escultor.
O
homem é um sujeito. Um sujeito pode determinar suas ações,
como o artista pode livremente pintar quaisquer pinturas que
escolher.
Só
há uma espécie de unidade — a unidade político-econômica,
que é realizada não de dentro, por laços espirituais, mas de
fora, pela força, pelo terror e pela propaganda.
Há
duas espécies de unidade: unidade político-econômica, e
unidade orgânico-espiritual, pela qual nós somos membros uns
dos outros no Corpo Místico de Cristo.
O
homem é cidadão de um só mundo, e, desde que o Estado é tudo,
daí se segue que o homem não tem direitos salvo aqueles que o
Estado lhe deu. Por conseguinte, quando o entender, pode o Estado
tirar-lhe esses direitos.
O
homem é um cidadão de dois mundos8,
e, em virtude do segundo, ele possui certos direitos
inalienáveis, tais como a vida, a liberdade e a propriedade, dos
quais nenhum Estado pode privá-lo.
A
personalidade é relacionada ao tempo. O homem é alienado da sua
humanidade no presente, para atingir uma humanidade duvidosa num
paraíso terrestre no futuro. Tal como o expõe Lenine: “Durante
o período da ditadura em que não haveria liberdade, o povo
acostumar-se-ia às novas condições e sentir-se-ia livre numa
sociedade comunista" (O Estado e a Revolução).
O
homem existe não somente no presente, mas também no futuro. A
personalidade é independente do tempo, porque tem um valor
intrínseco em todos os tempos.
O
homem é determinado pela sociedade… e nela perde a sua
identidade como uma gota de água perde a sua identidade num copo
de vinho...
O
homem deve determinar a natureza da sociedade e ser o senhor
desta.
Portando,
quem estuda a Bíblia e à luz desta analisa o marxismo, torna-se
(espera-se) anti-comunista ou evita ser comunista. E mesmo sem a
Bíblia, na opinião de Reagan, como mencionamos na imagem acima, "Os
comunistas são as pessoas que leram Marx e Engels, os
anti-comunistas são aqueles que entenderam."
Sobre
os dogmas
marxistas,
que fazem
desta ideologia “quase” uma verdadeira religião, veja o vídeo
a seguir:
Notas:
[1] In: BROWN, Colin. Filosofia e fé cristã. São Paulo: Vida Nova: 1985, pág. 209.
[2] 000 O que é ideologia. Disponível em: <https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/o-que-e-ideologia>. Acesso em: 23/05/2024.
[3] BROWN: 1985, pág. 210.
[4] Antoine Destutt de Tracy (1754-1836), considerado o “pai” do termo ideologia. Filósofo iluminista francês, cunhou o termo no final do século XVIII para designar aquilo que ele acreditava ser a “ciência das ideias”. Disponível em: <https://www.cafehistoria.com.br/o-pai-do-termo-ideologia/>. Acesso em 24/05/2024.
O estudo sobre o marxismo e a fé cristã é um pós-escrito acrescido ao livro Filosofia e fé cristã, de Colin Brown (*). Embora escrito em 1983 e reimpresso em 1985, resolvi rever este assunto e destacar em alguns posts, os principais temas extraídos da ideias de Karl Marx, acrescentando aos mesmos outras observações...
Os professores do Campo 14 eram guardas uniformizados: tratados por Shin no desenho acima, um deles bateu em uma aluna até a morte [2].
Shin In-geun é o único prisioneiro a ter escapado do Campo 14, conhecido como o mais cruel campo de concentração da Coreia do Norte. Ele viu o irmão ser fuzilado e a mãe ser enforcada.
Com
o fim do Terceiro Reich, o suicídio de Hitler e a vitória dos
aliados na Segunda Guerra Mundial, era de se esperar que o mundo
nunca mais tolerasse as cenas chocantes e crueldades cometidas nos
campos de concentração de Auschwitz ou Buchenwald. Porém faz mais
de 50 anos que as mesmas atrocidades continuam acontecendo com o
conhecimento do mundo inteiro e que não é exagero comparar com o
pior da Alemanha nazista: os campos de prisioneiros da Coreia do
Norte, para onde são enviados os inimigos políticos da ditadura
comunista.
Ao
contrário do que seria de se esperar, a pressão mundial para fechar
esses centros de torturas e assassinatos é praticamente nula. Pouco
se fala sobre o assunto, porque são poucos os prisioneiros que
conseguem escapar dos campos de concentração. Do pior deles, o
Campo 14, somente uma pessoa conseguiu escapar: Shin In-geun, de 37
anos, que foi concebido, criado e viveu até o início da vida adulta
neste teatro dos horrores, com breves períodos em outros campos
menos severos.
Shin
In-geun, depois de fugir para a China, foi para a Coreia do Sul e
atualmente vive na Califórnia. Mudou seu nome para Shin Dong-hyuk e
hoje é um ativista dos direitos humanos. Ele contou sua história ao
jornalista americano Blaine Harden, que trabalhava como
correspondente em Seul para o jornal The Washington Post e publicou
tudo no livro ‘Fuga
do Campo 14’,
publicado no Brasil pela Editora Intrínseca. Shin mudou detalhes de
sua história várias vezes, o que muitos apoiadores do cruel regime
comunista da Coreia do Norte usaram para tentar desacreditar todo o
seu relato.
A
principal das mudanças é especialmente compreensível. Na primeira
versão de sua história, Shin omitiu o fato de que ele foi o
responsável pela morte de sua mãe e de seu irmão mais velho. Eles
pretendiam fugir. Shin ouviu a conversa e contou a um guarda do
campo. Seu irmão foi fuzilado e sua mãe enforcada.
Criado
em um ambiente de brutalidade e desconfiança, Shin nunca desenvolveu
laços de amor com sua família. Estimulado pelo Estado a delatar os
outros desde pequeno, lhe pareceu que a coisa certa a fazer era
denunciar os planos da mãe e do irmão. Somente anos depois, já
livre, tomou consciência da maldade de seus próprios atos. Então,
em seus primeiros relatos, omitiu os fatos que o retratariam como um
monstro. Um monstro criado pelo Estado norte-coreano, ainda assim um
monstro.
No
livro, Harden deixa claro que, apesar dos desertores serem a única
fonte de informações sobre os campos, “suas
motivações e seu grau de credibilidade não são imaculados. Na
Coreia do Sul e em outros lugares, eles se encontram muitas vezes
desesperados para ganhar a vida, dispostos a confirmar as ideias
preconcebidas dos ativistas dos direitos humanos, dos missionários
anticomunistas e dos ideólogos de direita. Alguns sobreviventes de
campos recusam-se a falar sem receber dinheiro vivo antecipadamente.
Outros repetem episódios impressionantes de que ouviram falar, mas
que não testemunharam em primeira mão.”
Essas
incongruências foram exaustivamente usadas pelos apologistas do
regime norte-coreano e pelo próprio governo, que levou o pai de Shin
à TV estatal para desmentir o filho. Mas desertores, incluindo
ex-guardas que trabalharam nos campos, confirmam os fatos. Imagens de
satélite não deixam dúvidas sobre a existência desses lugares
funestos.
Infelizmente
as atrocidades do Campo 14 não fazem parte do passado. Neste
momento, milhares de pessoas estão passando por isso ali e em outras
instalações do regime norte-coreano: um mundo de fome, maus tratos
e execuções. A história de Shin Dong-hyuk é escabrosa. A fome nos
campos é tamanha que Shin cresceu vendo a mãe e o irmão não como
familiares, mas sim competidores pela escassa comida disponível. As
únicas refeições dadas aos prisioneiros eram sopa de repolho,
repolho na salmoura ou mingau de milho. Quando conseguia, Shin
furtava a comida de sua mãe, que o surrava com uma enxada ou uma pá.
A única carne disponível era a dos ratos, muitas vezes capturados
nas latrinas do campo. Os prisioneiros que cometiam alguma falta aos
olhos dos guardas eram punidos recebendo ainda menos alimento. A
estes restava vasculhar até o estrume das vacas para tentar
encontrar algum grão comestível.
A
população que vive fora dos campos também passa fome. Dois terços
das crianças norte-coreanas foram consideradas abaixo do peso por um
levantamento feito pelo Programa Mundial de Alimentos das Nações
Unidas, que só foi permitido em troca da doação de alimentos ao
país. Esse número é o dobro do que o registrado na época em
Angola, que estava saindo de uma guerra civil.
Homens
e mulheres não viviam juntos no Campo 14 e o contato físico era
proibido sem autorização prévia. Prisioneiros que fossem
obedientes e cumprissem com sucesso sua cota de trabalho forçado às
vezes recebiam autorização para se casar. O mesmo valia caso
delatassem alguém. Mesmo assim, só podiam casar com outros
prisioneiros que fossem escolhidos pelo Estado. Era possível recusar
parceiros muito velhos ou muito feios, mas perdiam a chance de se
casar para sempre. Foi assim que os pais de Shin se conheceram. Seu
pai recebeu Jang Hye-gyung como “presente” por seu trabalho na
oficina mecânica.
Fora
desses casamentos arranjados, a gravidez era terminantemente
proibida. Isso não quer dizer que elas não ocorressem. Os guardas
abusavam das prisioneiras, que se submetiam em troca de apanhar menos
nas fábricas ou receber mais comida. Mas se engravidassem, tanto
elas como os filhos eram mortos. De acordo com o relato de An Myeong
Chul, que trabalhou como guarda de vários campos (não do Campo 14),
os guardas eram ensinados a tratar os prisioneiros sem qualquer
humanidade, pensando neles como se fossem “cães ou porcos”. Ele
viu mais de uma vez recém-nascidos serem mortos a golpes de pesadas
barras de ferros.
As
aulas dentro do campo eram apenas uma maneira de doutrinar as
crianças desde cedo. Shin lembra de uma vez que uma colega de classe
foi pega, durante uma revista surpresa feita pelo professor, com
cinco grãos de milho no bolso. A xingou, mandou que ela se
ajoelhasse e começou a bater em sua cabeça várias vezes. Harden
escreve: “Enquanto
Shin e os colegas observavam em silêncio, protuberâncias
brotaram-lhe no crânio. Sangue escorria-lhe do nariz. Ela tombou no
piso de concreto. Shin e vários outros colegas a levantaram e a
levaram para casa, uma fazenda de porcos que não ficava longe da
escola. Mais tarde naquela noite, a menina morreu.”
Mais “sorte” teve outro aluno que desobedeceu o professor. Foi
amarrado a uma árvore e uma fila de estudantes se formou para lhe
dar murros no rosto.
Com
dez anos de idade, as crianças eram encaminhadas para trabalhos
insalubres, como empurrar minério em gôndolas sobre trilhos. Uma
amiga de Shin se desequilibrou e teve o pé esmagado pela roda de aço
de uma gôndola. Levada ao hospital do campo, teve o dedo amputado
sem anestesia e tratado apenas com água salgada. Em outra ocasião,
durante a construção de uma represa, um muro de concreto caiu perto
de Shin, matando oito trabalhadores, cinco deles crianças de 15 anos
de idade. Foram esmagados a ponto de ficarem irreconhecíveis. Todos
continuaram trabalhando como se nada tivesse acontecido.
Neste
ambiente de absoluto desespero, o suicídio era muitas vezes a única
saída que alguns prisioneiros enxergavam. Mas os governantes viam o
suicídio como uma tentativa de escapar ao domínio do partido. Como
escreveu Kang Cholhwan no livro sobre seu período como prisioneiro
do Campo 15, “se
o indivíduo que tentara o ardil não estava por perto para pagar por
isso, alguém mais precisava pagar no lugar dele.”
Todos os prisioneiros são avisados de que, caso optem por esse
caminho, seus familiares serão punidos com sentenças e punições
ainda maiores.
A
situação nos campos, porém, era mais difícil de ser suportada por
aqueles que tinham uma vida pregressa. A diferença entre a vida
levada antes de serem presos era um fardo pesado demais. Para pessoas
como Shin, no entanto, que não conheciam outra vida, o desespero,
por incrível que pareça, era menor.
[1] ROSSI,
Jones
“... é editor de Ideias na Gazeta do Povo e co-autor do livro Guia
Politicamente Incorreto do Futebol
(Ed. Leya), com Leonardo Mendes Júnior. Foi editor de ciência e
saúde do site de VEJA, editor da revista Galileu e repórter do G1 e
do extinto Jornal da Tarde”
In:<https://www.gazetadopovo.com.br/autor/jones-rossi/>.
Acesso
em: 02/08/2022.
ROSSI,
Jones.
Campo 14 – Bebês
mortos a pauladas, fome e execuções: a vida em um campo de
concentração norte-coreano. In:
As
atrocidades do comunismo que você não aprendeu na escola
– Ebook, pp.
60-67.
Gazeta
do Povo. Acesso
em: 02/08/2022.
Seguindo
nossa
proposta de estudo dos bispos romanos listados porEusébio
de Cesareia,
no seu livro História
Eclesiástica [2],
já
vimos, até
aqui os bisposLino,
Anacleto,
Clemente
de Roma, Evaristo e
Alexandre I.
Conforme
escreve Eusébio (4, IV) [3],
no
terceiro ano do reinado de
Adriano – “sob
o mesmo imperador”,
conforme
capítulo III
–,
morreu
Alexandre,
bispo de Roma, depois de cumpridos dez anos
de governo, e foi
sucedido por Sixto. Em
que ano? Na versão da H. E. de Eusébio, publicada pela CPAD e usada
aqui (Nota 2), há uma tabela cronológica e o início do bispado de
Xisto aparece no ano 117.
Sobre
o sucessor de Alexandre I, o Bispo Xisto
ou Sixto
I,
não
há muito o que dizer. Mas
baseado
nestas fontes católicas,
aqui[4],
etambém aqui[5], podemos
destacar:
Xisto
ou
Sisto
I, foi
um dos cinco
papas na
história da Igreja
com o nome de Xisto. Seu
nome verdadeiro, "Xystus", provavelmente de origem grega,
pode ter sido confundido com sexto, erroneamente avaliado, também
porque foi o sétimo Papa, ou seja, o sexto depois de São Pedro.
Era
romano, filho de certo Pastore (ou
um casal de pastores).
Proibiu
aos leigos tocarem nos vasos sagrados, mas convidou os fiéis a
cantarem ou rezarem o sanctus
junto
com o celebrante. Ao que parece, também a fórmula final do "Ite
Missa est", embora não seja confirmada historicamente.
Não
se sabe precisamente se foi mártir.
Foram-lhe
atribuídas duas Cartas de cunho doutrinário: uma, sobre a
Santíssima Trindade; a outra, sobre a Primazia do Bispo de Roma,
que alguns, todavia, consideram apócrifa.
Durante
seu pontificado, tiveram início, provavelmente, as primeiras
divergências com as Igrejas Orientais, enquanto parece ter sido ele
a enviar os primeiros missionários para evangelizar a Gália, entre
os quais São Peregrino.
Faleceu,
por volta do ano 125, provavelmente decapitado.
Bem,
esta
fonte
afirma que provavelmente, São Sixto I exerceu seu pontificado entre
115-129, enquanto
esta
afirma que ele faleceu
por volta do ano 125. Eusébio
(4,
V)
diz que ele foi sucedido por Telésforo,
“… no
décimo segundo reinado de Adriano… e… no ano que completara o
décimo ano de seu episcopado”.
Se Adriano, segundo
esta fonte[6],
exerceu seu reinado entre 117 e 138, deduzimos que Sixto terminou seu
episcopado em 127.
Notas / Referências bibliográficas:
[1] Imagem
meramente ilustrativa, adaptada e disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Papa_Sisto_I>. Acesso em
08/05/2024.
[2] Na
versão publicada pela CPAD em 1995, nas páginas 409/410, a editora
fez uma lista de 29 bispos de Roma citados por Eusébio, e Xisto ou
Sisto é o número 6 da lista...
[3] Isto
é, Livro 4, Capítulo IV da História
Eclesiástica
de Eusébio (Nota 2).
Os
anos se passaram. As estações chegavam e partiam e as vidas curtas
dos animais passavam voando. Chegou o tempo em que mais ninguém se
lembrava dos velhos tempos antes da Revolução, exceto Esperança,
Benjamim, Moisés, o corvo, e alguns dos porcos.
Muriel
tinha morrido; Mimi, Lulu e Pipa tinham morrido. Jones também estava
morto – ele havia morrido em um lar para alcoólatras em outro
canto do país. O Bola de Neve foi esquecido. Golias foi esquecido,
exceto pelos poucos que o conheceram. Esperança era agora uma égua
velha e robusta, com articulações rígidas e com uma tendência a
ter remelas nos olhos. Ela já tinha passado dois anos da idade de
aposentadoria, mas na verdade nenhum animal jamais chegou a se
aposentar. A conversa de reservar um canto do pasto para animais
velhos já havia sido abandonada há muito tempo. Napoleão era agora
um javali maduro de cento e cinquenta quilos. O Berro estava tão
gordo que mal conseguia enxergar através do espaço que suas
bochechas deixavam para os olhos. Apenas o velho Benjamin era quase o
mesmo de sempre, exceto por ter mais pelos cinzas ao redor do focinho
e, desde a morte de Golias, ter ficado mais rabugento e casmurro do
que nunca.
Agora
a fazenda tinha bem mais criaturas, embora o aumento não tenha sido
tão grande como se esperava em anos anteriores. Para muitos dos
animais jovens, a Revolução não passava de uma tradição confusa,
transmitida de boca a boca, enquanto outros animais comprados nunca
tinham ouvido falar sobre a Revolução antes de chegarem lá. A
fazenda possuía agora três cavalos além da Esperança. Eram
animais de bem, trabalhadores dispostos e bons camaradas, mas muito
estúpidos. Nenhum deles se mostrou capaz de aprender o alfabeto além
da letra B. Eles aceitaram tudo o que lhes foi dito sobre a Revolução
e os princípios do animalismo, especialmente pela Esperança, por
quem tinham um respeito quase filial; mas ninguém sabia ao certo se
tinham entendido bem.
A
fazenda era agora mais próspera e organizada: tinha até sido
ampliada com compra de dois campos do Sr. Pilkington. O moinho tinha
sido finalmente concluído com sucesso, e a fazenda possuía uma
debulhadora e um elevador de feno, e várias novas construções
tinham sido acrescentadas a ele. Whymper tinha comprado uma pequena
carruagem para si mesmo. O moinho de vento, entretanto, não havia
sido usado para gerar energia elétrica no fim das contas. Ele era
usado para moer milho, o que trazia um belo lucro em dinheiro. Os
animais estavam trabalhando duro na construção de mais um moinho de
vento; quando este estivesse terminado, assim se dizia, os dínamos
seriam instalados. Mas os luxos mencionados por Bola de Neve, que
deixou os animais sonhando com baias com luz elétrica, água quente
e fria e semanas com apenas três dias de trabalho não eram mais
mencionados. Napoleão havia denunciado tais ideias como contrárias
ao espírito do animalismo. A felicidade mais verdadeira, disse ele,
estava em trabalhar duro e viver frugalmente.
De
alguma forma, parecia que a fazenda tinha ficado mais rica sem tornar
os próprios animais mais ricos – exceto, é claro, os porcos e os
cães. Talvez isto se deva em parte ao fato de haver tantos porcos e
cães. Não que essas criaturas não trabalhassem, dentro de suas
possibilidades. Havia, como Berro nunca se cansava de explicar, uma
quantidade interminável de trabalho na supervisão e organização
da fazenda. Muito desse trabalho era do tipo que os outros animais
eram ignorantes demais para entender. Por exemplo, Berro lhes disse
que os porcos despendiam horas de trabalho diário em coisas
misteriosas chamadas “arquivos”, “relatórios”, “atas” e
“memorandos”. Estas eram grandes folhas de papel que tinham que
ser cobertas de escrita, e assim que eram cobertas, eram queimadas na
fornalha. Isto era da maior importância para o bem-estar da fazenda,
disse Berro. Mas, mesmo assim, nem os porcos nem os cães produziam
qualquer alimento com seu próprio trabalho; e eles eram muitos, e
seus apetites eram sempre imensos.
Quanto
aos outros, suas vidas eram, até onde sabiam, como sempre foram.
Geralmente tinham fome, dormiam na palha, bebiam dos bebedouros,
trabalhavam nos campos; no inverno, eram perturbados pelo frio, e no
verão, pelas moscas. Às vezes, os mais velhos entre eles guardavam
suas lembranças sombrias e tentavam determinar se nos primeiros dias
da Revolução, quando a expulsão de Jones ainda era recente, as
coisas eram melhores ou piores do que agora. Mas eles não conseguiam
se lembrar. Não havia nada com que pudessem comparar suas vidas
atuais: eles não tinham nada para se basear, exceto as listas de
dados de Berro, que demonstravam invariavelmente que tudo estava
ficando cada vez melhor. Os animais achavam o problema insolúvel; em
todo caso, eles tinham pouco tempo para especular sobre tais coisas
agora. Somente o velho Benjamin professou recordar cada detalhe de
sua longa vida e saber que as coisas nunca haviam sido, nem poderiam
ser, muito melhores ou muito piores – a fome, as dificuldades e o
desapontamento sendo, assim disse, a lei inalterável da vida.
E,
no entanto, os animais nunca perderam a esperança. Mais ainda, eles
nunca perderam, mesmo por um instante, seu senso de honra e
privilégio de serem membros da Fazenda dos Animais. Eles ainda eram
a única fazenda em todo o condado – em toda a Inglaterra! –
possuída e operada por animais. Nenhum deles, nem mesmo os mais
jovens, nem mesmo os recém-chegados que haviam sido trazidos de
fazendas a dez ou vinte milhas de distância, jamais deixaram de se
maravilhar com isso. E quando eles ouviam a arma disparar e viam a
bandeira verde tremulando no mastro, seus corações se enchiam de
orgulho irrevogável, e a conversa voltava-se sempre para os velhos
dias heroicos, a expulsão de Jones, a escrita dos Sete Mandamentos,
as grandes batalhas nas quais os invasores humanos haviam sido
derrotados. Nenhum dos velhos sonhos havia sido abandonado. A
República dos Animais que o Major havia predito, quando os campos
verdes da Inglaterra deveriam ser libertos de pés humanos, ainda era
um sonho. O dia estava chegando: poderia não estar em breve, poderia
não acontecer com os animais vivos agora, mas ainda assim estava
chegando. Até mesmo a melodia de “Animais da Inglaterra” era
cantarolada secretamente aqui e ali: de qualquer forma, era algo que
todos os animais da fazenda conheciam, embora ninguém ousasse
cantá-la em voz alta. Talvez suas vidas fossem difíceis e nem todas
as suas expectativas tivessem sido cumpridas; mas eles estavam
conscientes de que não eram como os outros animais. Se passavam
fome, não era para alimentar seres humanos tirânicos; se
trabalhavam duro, pelo menos trabalhavam para si mesmos. Nenhuma
criatura entre eles tinha duas pernas. Nenhuma criatura chamava
qualquer outra criatura de “Mestre”. Todos os animais eram
iguais.
Um
dia, no início do verão, Berro ordenou que as ovelhas o seguissem,
e as levou para um terreno baldio tomado por mudas de bétula no
outro extremo da fazenda. As ovelhas passaram o dia inteiro lá sob a
supervisão do Berro. À noite, ele voltou para a fazenda mas, como
estava quente, disse às ovelhas para ficarem onde estavam. No fim,
elas ficaram lá uma semana inteira, sem contato nenhum com os outros
animais. O Berro ficava com elas durante a maior parte do dia. Disse
que estava lhes ensinando uma nova canção e precisa de privacidade.
Em
uma noite agradável logo após o retorno das ovelhas, quando os
animais tinham terminado o trabalho e estavam voltando para as
instalações da fazenda, o relincho aterrorizado de um cavalo soou
do pátio. Assustados, os animais pararam em seus lugares. Era a voz
da Esperança. Ela relinchou novamente, e todos os animais arrombaram
em galope e correram para o pátio. Então todos viram o que ela
tinha visto.
Era
um porco andando sobre suas patas traseiras.
Sim,
era o Berro. Um pouco desajeitado, como se não estivesse acostumado
a suportar sua considerável massa naquela posição, mas com
perfeito equilíbrio, ele estava passeando pelo pátio. E no momento
seguinte, da porta da casa, saiu uma longa fila de porcos, todos
andando sobre suas patas traseiras. Alguns o faziam melhor do que
outros, um ou dois estavam até um pouco instáveis e pareciam
precisar do apoio de uma vara, mas cada um deles conseguiu dar uma
volta inteira no quintal com sucesso. Finalmente, os cães ladraram e
a gata preta deu um miado estridente, então veio o próprio
Napoleão, majestosamente erguido, lançando olhares altivos de um
lado para o outro, com seus cães empolgados à sua volta.
Ele
carregava um chicote em sua pata.
Havia
um silêncio mortal. Espantados, aterrorizados e amontoados, os
animais observavam a longa fila de porcos marchando lentamente ao
redor do pátio. Era como se o mundo tivesse virado de cabeça para
baixo. Depois veio um momento em que o primeiro choque havia passado
e quando, apesar de tudo – apesar do terror dos cães e do hábito,
desenvolvido durante longos anos de nunca reclamar, nunca criticar,
não importando o que acontecesse – eles poderiam ter proferido
alguma palavra de protesto. Mas naquele momento, como se fosse um
sinal, todas as ovelhas explodiram em um tremendo balido de…
“Quatro
pernas bom, duas pernas melhor! Quatro patas bom, duas patas melhor!
Quatro
patas bom, duas patas melhor!”
Isso
continuou por cinco minutos sem parar. E, quando as ovelhas se
acalmaram, a chance de protestar já havia passado, pois os porcos
haviam voltado para a casa.
Benjamin
sentiu um nariz zumbindo em seu ombro. Ele olhou em volta. Era
Esperança. Seus olhos velhos pareciam mais escuros do que nunca. Sem
dizer nada, ela o puxou suavemente pela crina e o levou até o final
do grande celeiro, onde os Sete Mandamentos foram escritos. Durante
um ou dois minutos eles ficaram olhando a parede marcada com as
letras brancas.
“Minha
visão está falhando”, disse ela finalmente. “Mesmo quando eu
era jovem, não conseguia ler o que estava escrito ali. Mas me parece
que aquele muro está diferente. Os Sete Mandamentos são os mesmos
que eram antes, Benjamin?”
Por
uma vez Benjamin consentiu em quebrar sua própria regra, e leu para
ela o que estava escrito na parede. Agora não havia nada lá, exceto
um único Mandamento:
Todos os animais são iguais
Mas alguns animais são mais iguais
do que outros
Depois
disso, não pareceu estranho quando no dia seguinte os porcos que
estavam supervisionando o trabalho da fazenda carregavam todos
chicotes em suas patas. Não pareceu estranho saber que os porcos
tinham comprado um rádio, estavam organizando a instalação de um
telefone e tinham feito assinaturas das revistas “John Bull” e
“Tit-Bits”, e do jornal “Daily Mirror”. Não parecia estranho
quando Napoleão foi visto passeando no jardim da fazenda com um
cachimbo na boca – não, nem mesmo quando os porcos tiraram as
roupas do Sr. Jones do guarda-roupa e as vestiram, o próprio
Napoleão aparecendo com um casaco preto, calças bufantes com botas
de couro, enquanto sua porca favorita apareceu com o vestido leve de
seda que a Sra. Jones costumava vestir aos domingos.
Uma
semana depois, à tarde, uma série de carroças foi até a fazenda.
Uma delegação de fazendeiros vizinhos havia sido convidada para
fazer uma excursão de inspeção. Eles foram levados para todos os
cantos da fazenda, e expressaram grande admiração por tudo o que
viram, especialmente o moinho de vento. Os animais estavam
trabalhando no campo de nabos. Eles trabalhavam diligentemente, mal
levantando o rosto do chão, sem saber se deviam ter mais medo dos
porcos ou dos visitantes humanos.
Naquela
noite, gargalhadas e cantorias vieram da casa. E, de repente, ao som
das vozes misturadas, os animais foram acometidos de curiosidade. O
que poderia estar acontecendo ali, agora que pela primeira vez
animais e seres humanos estavam se encontrando em termos de
igualdade? Em comum acordo, eles começaram a rastejar o mais
silenciosamente possível para o jardim da fazenda.
Eles
pararam no portão, meio assustados para continuar, mas a Esperança
liderou o caminho para dentro. Eles se inclinaram para a casa, e os
animais que eram suficientemente altos se espreitaram na janela da
sala de jantar. Lá, ao redor da longa mesa, sentavam-se meia dúzia
de agricultores e meia dúzia dos porcos mais eminentes, o próprio
Napoleão ocupando o assento de honra à frente da mesa. Os porcos
pareciam completamente à vontade em suas cadeiras. A companhia vinha
desfrutando de um jogo de cartas, mas havia feito uma pausa,
evidentemente para fazer um brinde. Um grande jarro estava
circulando, e as canecas estavam sendo reabastecidas com cerveja.
Ninguém notou as faces curiosas dos animais que olhavam para dentro
da janela.
O
Sr. Pilkington, de Foxwood, havia se levantado com sua caneca na mão.
Ele logo pediria, disse, que todos fizessem um brinde. Mas antes de
fazer isso, havia algumas palavras que ele sentia que lhe competia
dizer.
Foi
uma fonte de grande satisfação para ele, disse – e, estava certo,
para todos os outros presentes também – sentir que um longo
período de desconfiança e mal-entendidos havia chegado ao fim.
Houve um tempo – não que ele, ou qualquer um dos fazendeiros
presentes, tivesse compartilhado tais sentimentos – mas houve um
tempo em que os respeitados proprietários da Fazenda dos Animais
foram considerados, não com hostilidade, mas talvez com uma certa
dose de apreensão, por seus vizinhos humanos. Ocorreram infelizes
incidentes, ideias equivocadas tinham corrido por aí. Tinha-se
sentido que a existência de uma fazenda de propriedade de porcos e
operada por porcos era de alguma forma anormal e poderia ter um
efeito perturbador na vizinhança. Muitos agricultores haviam
assumido, sem a devida investigação, que em tal fazenda
prevaleceria um espírito de preguiça e indisciplina. Eles estavam
nervosos com os efeitos sobre seus próprios animais e até mesmo
sobre seus empregados humanos. Mas todas essas dúvidas foram agora
dissipadas. Hoje ele e seus amigos haviam visitado a Fazenda dos
Animais e inspecionado cada centímetro dela com seus próprios
olhos, e o que encontraram? Não apenas os métodos mais atualizados,
mas uma disciplina e uma ordenação que deveria ser um exemplo para
todos os fazendeiros em todos os lugares. Ele acreditava estar certo
ao dizer que os animais ali trabalhavam mais e recebiam menos comida
do que os animais em qualquer outra fazenda do condado. De fato, hoje
ele e seus colegas visitantes haviam observado muitas características
que pretendiam introduzir imediatamente em suas próprias fazendas.
Ele
terminaria suas observações, disse ele, enfatizando mais uma vez os
sentimentos amigáveis que subsistiam, e deveriam subsistir, entre a
Fazenda dos Animais e seus vizinhos. Entre porcos e seres humanos não
havia, e não precisava haver, nenhum conflito de interesses, seja
qual fosse. Suas lutas e suas dificuldades eram uma só. O problema
do trabalho não era o mesmo em todos os lugares? Então ficou
evidente que o Sr. Pilkington estava prestes a fazer alguma graça
cuidadosamente preparada, mas ele ficou tão impactado pelo seu
próprio humor que foi incapaz de contar a piada em voz alta. Depois
de muita asfixia, durante a qual seus vários queixos ficaram roxos,
ele conseguiu: “Se vocês têm que lidar com animais inferiores”,
disse ele, “nós temos que lidar com nossas classes inferiores”!
Esta tirada fez com que toda a mesa fosse tomada por risos; e o Sr.
Pilkington mais uma vez parabenizou os porcos pelo baixo consumo de
ração, pelas longas horas de trabalho e pela ausência geral de
mimos que ele havia observado na Fazenda dos Animais.
E
agora, disse finalmente, pediria a todos que se levantassem e se
certificassem de que seus copos estavam cheios. “Cavalheiros”,
concluiu o Sr. Pilkington, “cavalheiros, eu lhes faço um brinde: À
prosperidade da Fazenda dos Animais”!
Houve
uma ovação entusiasmada e um bater de pés. Napoleão ficou tão
grato que saiu de seu lugar e deu a volta na mesa para brindar com o
Sr. Pilkington, dando uma batidinha leve entre as canecas antes de
esvaziar a sua. Quando os aplausos se extinguiram, Napoleão, que
havia ficado de pé, insinuou que ele também tinha algumas palavras
a dizer.
Como
todos os discursos de Napoleão, esse também foi curto e direto ao
ponto. Ele também, disse, estava feliz pelo fim do período de
mal-entendidos. Durante muito tempo houve rumores – circulados,
tinha motivos para pensar, por algum inimigo maligno – que havia
algo subversivo e até revolucionário na visão dele e de seus
colegas. Acreditavam que eles tentavam provocar a rebelião de
animais em fazendas vizinhas. Nada poderia estar mais longe da
verdade! Seu único desejo, agora e no passado, era viver em paz e
ter relações comerciais normais com seus vizinhos. Esta fazenda,
que ele teve a honra de controlar, acrescentou, era uma empresa
cooperativa. Os títulos de propriedade, que estavam em seu próprio
poder, eram de propriedade conjunta dos porcos.
Ele
não acreditava, disse ele, que qualquer uma das antigas suspeitas
ainda persistisse, mas certas mudanças haviam sido feitas
recentemente na rotina da fazenda, o que deveria ter o efeito de
promover ainda mais a confiança. Até então, os animais da fazenda
tinham um costume bastante tolo de se tratarem uns aos outros como
“camarada”. Isso seria suprimido. Havia também um costume muito
estranho, cuja origem era desconhecida, de marchar todos os domingos
de manhã passando pelo crânio de um javali que era pregado em um
poste no jardim. Isto também seria suprimido e o crânio já havia
sido enterrado. Seus visitantes também poderiam ter observado a
bandeira verde que voava do mastro. Se assim fosse, eles talvez
tivessem notado que o casco branco e o chifre com os quais ela havia
sido marcada anteriormente tinham sido removidos. A partir de agora,
seria uma bandeira verde simples.
Ele
tinha apenas uma crítica, disse ele, a fazer ao excelente discurso
do Sr. Pilkington. O Sr. Pilkington havia se referido a “Fazenda
dos Animais”. É claro que ele não podia saber – pois ele,
Napoleão, estava anunciando isso pela primeira vez – mas o nome
“Fazenda dos Animais” havia sido abolido. Daí em diante a
fazenda seria conhecida como “Fazenda Solar” – que, ele
acreditava, era seu nome correto e original.
“Cavalheiros”,
concluiu Napoleão, “Eu farei o mesmo brinde de antes, mas de uma
forma diferente. Encham seus copos até a borda. Meus senhores, aqui
está meu brinde: À prosperidade da Fazenda Solar”!
Houve
o mesmo aplauso de antes, e as canecas foram esvaziadas até o fundo.
Mas enquanto os animais do lado de fora olhavam para o local, parecia
que alguma coisa estranha estava acontecendo. O que foi que havia
mudado no rosto dos porcos? Os velhos olhos escuros de Esperança iam
de um rosto para o outro. Alguns deles tinham cinco queixos, outros
quatro, outros três. Mas o que foi que parecia estar fundindo e
mudando? Então, os aplausos chegaram ao fim, a companhia pegou suas
cartas e continuou o jogo que havia sido interrompido, e os animais
saíram se arrastando silenciosamente.
Ainda
não tinham se afastado mais de 20 metros quando pararam. Um alvoroço
de vozes vinha da casa da fazenda. Eles correram de volta e olharam
pela janela novamente. Sim, uma violenta briga estava em andamento.
Havia gritos, pancadas sobre a mesa, olhares suspeitos, negações
furiosas. A fonte do problema parecia ser que Napoleão e o Sr.
Pilkington tinham jogado um ás de espadas simultaneamente.
Doze
vozes gritavam raivosas e iguais. Agora não havia mais dúvidas
sobre o que havia acontecido com os rostos dos porcos. As criaturas
lá fora olhavam de porco para o homem, e de homem para porco, e de
porco para homem novamente; mas já era impossível dizer quem era
quem.
[1]George Orwell: “...escritor nascido em uma colônia inglesa na Índia, é considerado um dos mais importantes romancistas da vertente distópica da literatura mundial, caracterizada pela narração de enredos em que os personagens vivenciam situações em espaço e tempo futuros, nos quais não há possibilidade para a utopia, ou seja, para o sonho e para a esperança. Nessa linha, destacam-se suas duas obras-primas, traduzidas para vários idiomas e transpostas para as telas do cinema mais de uma vez: o romance A revolução dos bichos, publicado em 1945, e o romance 1984, publicado em 1949.” Veja mais aqui.
[2] O que diz o livro Revolução dos Bichos? “O conhecido livro do inglês George Orwell, A Revolução dos Bichos (1945), é um dos legados atemporais mais importantes que escritores do século passado nos deixaram. Na obra, Orwell faz uma crítica ao stalinismo. Então socialista, o inglês – nascido na Índia durante o domínio britânico – se desilude com a ideologia ao ver o totalitarismo soviético e satiriza o sucessor de Lênin. Na alegoria, o autor apresenta uma revolução idealizada por um porco, o Major (que pode representar tanto Marx como Lênin), que convoca os bichos da granja em que vive a expulsar seu proprietário, o humano Sr. Jones (que seria Nicolau II, imperador do Czar). Porco Major morre em seguida e dois outros suínos tomam a frente: Napoleão (representando Stálin) e Bola de Neve (que seria Trotski).A estória segue o roteiro soviético… Napoleão expurga Bola de Neve, deturpa as leis a seu favor e se torna um ditador. Os demais bichos (galinhas, gado, cavalo…) se rendem à autocracia sem questionar, de forma passiva. Cada vez trabalham mais, exaustivamente e com alimento controlado; enquanto isso, Napoleão toma posse das dependências do Sr. Jones, agindo, portanto, de forma mais exploradora e cruel que o antigo chefe. A ironia está no fato de que a máxima da revolução era ‘duas pernas/patas mau’ – referindo-se a seres humanos”. Leia mais em: Rodrigo Constantino – Gazeta do Povo.com.
[3] ORWELL, George. Revolução dos Bichos. Gazeta do Povo. Capítulo X, pág. 147 a 163. Veja o livro completo aqui.