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30 maio 2024

Marxismo e fé cristã: ideologia

Por Alcides Amorim


Em seu trabalho o marxismo e a fé cristã, o escritor J. Sturz divide o seu estudo em três partes importantes: os conceitos marxistas (ideologia, dialética, a história e o homem); Marx e a religião (a irreligião marxista, evangelho segundo Marx e diálogo marxista-cristão) e marxismo e teologia. Nosso propósito aqui, e em outros posts (esperamos poder publicar) é refletir sobre os sub-temas do referido trabalho escrito no início dos anos 80 e que ainda julgamos relevantes para nossos dias, obviamente com outros ingredientes complementares. O primeiro deles é a ideologia.

Como definição de ideologia podemos citar o que é dito aqui, como sendo ela “… um termo que possui diferentes significados e duas concepções: a neutraum… conjunto de ideias, de pensamentos, de doutrinas ou de visões de mundo de um indivíduo ou de um grupoe a críticaque… pode ser considerado um instrumento de dominação que age por meio de convencimento (persuasão ou dissuasão, mas não por meio da força física) de forma prescritiva, alienando a consciência humana”.

Sturz diz que os conceitos marxistas ideologia e dialética estão inter-relacionados e estão ligados ao saber baseados numa auto-reflexão hegeliana. Mas sobre este último queremos falar num outro momento. Como fazia com outros conceitos relacionadas ao saber, Marx tentava encaixar suas ideias dentro do esquema materislista, ou seja, tentava separar as ideias da realidade histórico-social. Para Marx, “… a classe dominante impõe suas ideias através da escola, da religião, dos costumes ao ponto de que são consideradas verdadeiras, universais quanto à humanidade. Esta classe desenvolveu-se junto com suas ideias dentro de um modo de produção" [1]. Para desfazer a ideologia da classe dominante, Marx propõe uma revolução da classe oprimida contra a classe opressora. E a nova classe emergente, depois de sistematizar suas ideias, diferentes da existente e de acordo com seus interesses, precisam ganhar o apoio de toda sociedade. Sturz cita Marilena Chauí e destaca que a ideologia marxista não está encarregada de “tomar o lugar” da prática, nem de “guiar” a prática e nem tampouco de se “inutilizar enquanto teoria” para valorizar apenas a prática (Idem, pág. 210). Segundo esta linha de raciocínio marxista, as “… ideologias podem não ser consideradas visões de mundo… porque grande parte dos ideólogos propõe transformações sociais ao invés de uma teoria que tente explicar a realidade”. Ou seja, Karl Marx entende que ‘Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo’” [2].

Mas será que o marxismo escapa de ser ou ter uma ideologia?, pergunta Sturz. Na verdade, “… o marxismo, longe de ser apenas uma análise de fatos concretos, torna-se bandeira de ideias para fazer a realidade depender delas. De símbolos estas ideias se tornaram verdadeiros ídolos…” [3].

Ampliando este raciocínio, vejamos o estudo da Brasil Paralelo sobre o assunto: “Marx acreditava que a burguesia criava ideias ilusórias, como a religião, para enganar as outras classes e conseguir dominá-las mais facilmente. Ele chamava as supostas ideias falsas da burguesia de ideologia. Contudo, as características das teorias de Marx são semelhantes às da ideologia de Destutt [4], especialmente devido as influências iluministas nas obras de ambos"A Brasil Paralelo destaca ainda as características de uma ideologia:

  • Reducionismo da realidade: os ideólogos observam a realidade a partir do que pensam, fechando-se a tudo o que a realidade apresenta e que está fora da sua linha de pensamento.

  • Formação de um governo extremista: “Uma vez que a sociedade perfeita pode ser formada, o governo ideológico se vê no direito de eliminar aqueles que atrapalhem tamanho bem aparente, já que não existe uma punição além da terrena”.

  • Rechaço contra religiões transcendentais: os ideólogos (marxistas) acreditam que conseguem gerar uma civilização perfeita na Terra com seus próprios esforços, ao contrário da maioria das que religiões acreditam que a vida perfeita está para além deste mundo.

  • Formação de uma religião imanentista: para os comunistas, após viver a doutrina marxista e conseguir a conversão de um número de pessoas adequado, a revolução seria feita e o paraíso seria atingido.

Ao analisarmos as características acima, podemos dizer que os conservadores (não conservadoristas, pois assim se tornariam também ideólogos) pensam o contrário disso. Entender o oposto do que é ideologia pode auxiliar na melhor compreensão de seu conceito através da observação da realidade. Essa observação gera a construção de teorias e a descoberta de postulados, mas que não esgotam toda a existência. De forma coerente, a BP propõe os pensamentos de Tomás de Aquino e de Aristóteles como exemplos de ideias antagonistas das ideologias. Assim, os conservadores procuram entender o conceito mas rejeitam a qualificação de conservadorismo como bandeira ideológica, evitando assim, que seu pensamento venha a tornar-se num código rígido e dogmático de pensamento politizado.

E por que devemos rejeitar o marxismo? Por conta do enfoque idolátrico que aparece quando procura tornar um elemento apenas natural em absoluto. Neste afã, Marx desenvolve “três teorias”[5] que se tornam ídolos:

  • o materialismo dialético (a evolução humana, relações sociais determinadas pelas classes e os pensamentos humanos representam apenas estas classes);

  • um otimismo que vê solução de todos os problemas na marcha histórica; e

  • um humanismo religioso que encarrega o homem de sua própria salvação.

Como os ídolos são espécies de deuses que ocupam o lugar do verdadeiro Deus, as teorias marxistas tornam seus adeptos em verdadeiros “crentes” em Marx e suas ideias. Se a ideologia, segundo Marx “mascara a realidade social”, e toma o “falso por verdadeiro e o injusto por justo[6]", podemos interpretar, à luz Bíblia e da teologia cristã, de forma invertida estas palavras, isto é, afirmarmos o contrário: chamarmos de “treva” o que o marxismo chama de “luz”; de “falso” o que é entendido como “verdadeiro”, de “injusto” ao invés de “justo” e assim por diante.

Embora o marxismo não crê em nenhum elemento sobrenatural (metafísico), seu sistema tornou-se um verdadeiro dogma no sentido de que suas ideias (teorias, argumentações…) estejam colocadas acima de qualquer outro modo de pensar. E entendido sua ideias como verdades, os comunistas/marxistas tornam-se exclusivistas e não aceitam ser contraditados. É por isso que Marx defendia a implantação violenta do comunismo, inclusive a destruição do Cristianismo, esta ou qualquer outra religião é o “ópio do povo”. Veja o vídeo sugerido abaixo.

Um paralelo entre Comunismo e Cristianismo [7] sobre as várias situações da vida caracterizam bem as diferenças entre ambos:


    Comunismo: para o comunista...

    Cristianismo: para o cristão...

  • O homem não é livre, porque a sua iniciativa vem de fora, isto é, do Partido, que dita não somente o que ele deverá fazer, mas também o que deverá pensar. Ele é como o leme de um navio, que vai para onde quer que o dirija o comandante, que é o ditador do Partido.

  • O homem é livre, porque a sua iniciativa vem de dentro, a saber, da sua alma. Ele pode ser comparado a um capitão de navio, que é livre de traçar o seu próprio curso e de escolher o seu próprio porto.

  • O homem é um objeto. Um objeto não pode agir, mas é acionado como um autômato social, e torna-se como o cinzel na mão de um escultor.

  • O homem é um sujeito. Um sujeito pode determinar suas ações, como o artista pode livremente pintar quaisquer pinturas que escolher.

  • Só há uma espécie de unidade — a unidade político-econômica, que é realizada não de dentro, por laços espirituais, mas de fora, pela força, pelo terror e pela propaganda.

  • Há duas espécies de unidade: unidade político-econômica, e unidade orgânico-espiritual, pela qual nós somos membros uns dos outros no Corpo Místico de Cristo.

  • O homem é cidadão de um só mundo, e, desde que o Estado é tudo, daí se segue que o homem não tem direitos salvo aqueles que o Estado lhe deu. Por conseguinte, quando o entender, pode o Estado tirar-lhe esses direitos.

  • O homem é um cidadão de dois mundos8, e, em virtude do segundo, ele possui certos direitos inalienáveis, tais como a vida, a liberdade e a propriedade, dos quais nenhum Estado pode privá-lo.

  • A personalidade é relacionada ao tempo. O homem é alienado da sua humanidade no presente, para atingir uma humanidade duvidosa num paraíso terrestre no futuro. Tal como o expõe Lenine: “Durante o período da ditadura em que não haveria liberdade, o povo acostumar-se-ia às novas condições e sentir-se-ia livre numa sociedade comunista" (O Estado e a Revolução).

  • O homem existe não somente no presente, mas também no futuro. A personalidade é independente do tempo, porque tem um valor intrínseco em todos os tempos.

  • O homem é determinado pela sociedade… e nela perde a sua identidade como uma gota de água perde a sua identidade num copo de vinho...

  • O homem deve determinar a natureza da sociedade e ser o senhor desta.

Portando, quem estuda a Bíblia e à luz desta analisa o marxismo, torna-se (espera-se) anti-comunista ou evita ser comunista. E mesmo sem a Bíblia, na opinião de Reagan, como mencionamos na imagem acima, "Os comunistas são as pessoas que leram Marx e Engels, os anti-comunistas são aqueles que entenderam."

Veja mais:

Sobre os dogmas marxistas, que fazem desta ideologia “quase” uma verdadeira religião, veja o vídeo a seguir:



Notas:

  • [1] In: BROWN, Colin. Filosofia e fé cristã. São Paulo: Vida Nova: 1985, pág. 209.
  • [2] 000 O que é ideologia. Disponível em: <https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/o-que-e-ideologia>. Acesso em: 23/05/2024.
  • [3BROWN: 1985, pág. 210.
  • [4Antoine Destutt de Tracy (1754-1836), considerado o “pai” do termo ideologiaFilósofo iluminista francês, cunhou o termo no final do século XVIII para designar aquilo que ele acreditava ser a “ciência das ideias”. Disponível em: <https://www.cafehistoria.com.br/o-pai-do-termo-ideologia/>. Acesso em 24/05/2024.
  • [5Idem, pág. 210.
  • [6In: Nota 2. 
  • [8] Sugiro a leitura e o vídeo sobre A aposta de Pascal...aqui.

21 maio 2024

Marxismo e fé cristã: considerações gerais

 

O estudo sobre o marxismo e a fé cristã é um pós-escrito acrescido ao livro Filosofia e fé cristã, de Colin Brown (*). Embora escrito em 1983 e reimpresso em 1985, resolvi rever este assunto e destacar em alguns posts, os principais temas extraídos da ideias de Karl Marx, acrescentando aos mesmos outras observações...

O estudo-base está gravado em PDF, disponível em:  

O marxismo e a fé cristã, por Richard J. Sturz

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(*) BROWN, Colin. Filosofia e fé cristã. São Paulo: Vida Nova: 1985, pág. 207 a 221 (Texto adaptado por Alcides Amorim).

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Já falamos em alguns posts, além do referido acima, sobre a relação do marxismo com o cristianismo, por exemplo:

16 maio 2024

Campo 14 – bebês mortos a pauladas, fome e execuções: a vida em um campo de concentração norte-coreano

Por Jones Rossi [1]

Uma aula no Campo 14
 

Os professores do Campo 14 eram guardas uniformizados: tratados por Shin no desenho acima, um deles bateu em uma aluna até a morte [2].


Shin In-geun é o único prisioneiro a ter escapado do Campo 14, conhecido como o mais cruel campo de concentração da Coreia do Norte. Ele viu o irmão ser fuzilado e a mãe ser enforcada.


Com o fim do Terceiro Reich, o suicídio de Hitler e a vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial, era de se esperar que o mundo nunca mais tolerasse as cenas chocantes e crueldades cometidas nos campos de concentração de Auschwitz ou Buchenwald. Porém faz mais de 50 anos que as mesmas atrocidades continuam acontecendo com o conhecimento do mundo inteiro e que não é exagero comparar com o pior da Alemanha nazista: os campos de prisioneiros da Coreia do Norte, para onde são enviados os inimigos políticos da ditadura comunista.

Ao contrário do que seria de se esperar, a pressão mundial para fechar esses centros de torturas e assassinatos é praticamente nula. Pouco se fala sobre o assunto, porque são poucos os prisioneiros que conseguem escapar dos campos de concentração. Do pior deles, o Campo 14, somente uma pessoa conseguiu escapar: Shin In-geun, de 37 anos, que foi concebido, criado e viveu até o início da vida adulta neste teatro dos horrores, com breves períodos em outros campos menos severos.

Shin In-geun, depois de fugir para a China, foi para a Coreia do Sul e atualmente vive na Califórnia. Mudou seu nome para Shin Dong-hyuk e hoje é um ativista dos direitos humanos. Ele contou sua história ao jornalista americano Blaine Harden, que trabalhava como correspondente em Seul para o jornal The Washington Post e publicou tudo no livro ‘Fuga do Campo 14’, publicado no Brasil pela Editora Intrínseca. Shin mudou detalhes de sua história várias vezes, o que muitos apoiadores do cruel regime comunista da Coreia do Norte usaram para tentar desacreditar todo o seu relato.

A principal das mudanças é especialmente compreensível. Na primeira versão de sua história, Shin omitiu o fato de que ele foi o responsável pela morte de sua mãe e de seu irmão mais velho. Eles pretendiam fugir. Shin ouviu a conversa e contou a um guarda do campo. Seu irmão foi fuzilado e sua mãe enforcada.

Criado em um ambiente de brutalidade e desconfiança, Shin nunca desenvolveu laços de amor com sua família. Estimulado pelo Estado a delatar os outros desde pequeno, lhe pareceu que a coisa certa a fazer era denunciar os planos da mãe e do irmão. Somente anos depois, já livre, tomou consciência da maldade de seus próprios atos. Então, em seus primeiros relatos, omitiu os fatos que o retratariam como um monstro. Um monstro criado pelo Estado norte-coreano, ainda assim um monstro.

No livro, Harden deixa claro que, apesar dos desertores serem a única fonte de informações sobre os campos, “suas motivações e seu grau de credibilidade não são imaculados. Na Coreia do Sul e em outros lugares, eles se encontram muitas vezes desesperados para ganhar a vida, dispostos a confirmar as ideias preconcebidas dos ativistas dos direitos humanos, dos missionários anticomunistas e dos ideólogos de direita. Alguns sobreviventes de campos recusam-se a falar sem receber dinheiro vivo antecipadamente. Outros repetem episódios impressionantes de que ouviram falar, mas que não testemunharam em primeira mão.”

Essas incongruências foram exaustivamente usadas pelos apologistas do regime norte-coreano e pelo próprio governo, que levou o pai de Shin à TV estatal para desmentir o filho. Mas desertores, incluindo ex-guardas que trabalharam nos campos, confirmam os fatos. Imagens de satélite não deixam dúvidas sobre a existência desses lugares funestos.

Infelizmente as atrocidades do Campo 14 não fazem parte do passado. Neste momento, milhares de pessoas estão passando por isso ali e em outras instalações do regime norte-coreano: um mundo de fome, maus tratos e execuções. A história de Shin Dong-hyuk é escabrosa. A fome nos campos é tamanha que Shin cresceu vendo a mãe e o irmão não como familiares, mas sim competidores pela escassa comida disponível. As únicas refeições dadas aos prisioneiros eram sopa de repolho, repolho na salmoura ou mingau de milho. Quando conseguia, Shin furtava a comida de sua mãe, que o surrava com uma enxada ou uma pá. A única carne disponível era a dos ratos, muitas vezes capturados nas latrinas do campo. Os prisioneiros que cometiam alguma falta aos olhos dos guardas eram punidos recebendo ainda menos alimento. A estes restava vasculhar até o estrume das vacas para tentar encontrar algum grão comestível.

A população que vive fora dos campos também passa fome. Dois terços das crianças norte-coreanas foram consideradas abaixo do peso por um levantamento feito pelo Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas, que só foi permitido em troca da doação de alimentos ao país. Esse número é o dobro do que o registrado na época em Angola, que estava saindo de uma guerra civil.

Homens e mulheres não viviam juntos no Campo 14 e o contato físico era proibido sem autorização prévia. Prisioneiros que fossem obedientes e cumprissem com sucesso sua cota de trabalho forçado às vezes recebiam autorização para se casar. O mesmo valia caso delatassem alguém. Mesmo assim, só podiam casar com outros prisioneiros que fossem escolhidos pelo Estado. Era possível recusar parceiros muito velhos ou muito feios, mas perdiam a chance de se casar para sempre. Foi assim que os pais de Shin se conheceram. Seu pai recebeu Jang Hye-gyung como “presente” por seu trabalho na oficina mecânica.

Fora desses casamentos arranjados, a gravidez era terminantemente proibida. Isso não quer dizer que elas não ocorressem. Os guardas abusavam das prisioneiras, que se submetiam em troca de apanhar menos nas fábricas ou receber mais comida. Mas se engravidassem, tanto elas como os filhos eram mortos. De acordo com o relato de An Myeong Chul, que trabalhou como guarda de vários campos (não do Campo 14), os guardas eram ensinados a tratar os prisioneiros sem qualquer humanidade, pensando neles como se fossem “cães ou porcos”. Ele viu mais de uma vez recém-nascidos serem mortos a golpes de pesadas barras de ferros.

As aulas dentro do campo eram apenas uma maneira de doutrinar as crianças desde cedo. Shin lembra de uma vez que uma colega de classe foi pega, durante uma revista surpresa feita pelo professor, com cinco grãos de milho no bolso. A xingou, mandou que ela se ajoelhasse e começou a bater em sua cabeça várias vezes. Harden escreve: “Enquanto Shin e os colegas observavam em silêncio, protuberâncias brotaram-lhe no crânio. Sangue escorria-lhe do nariz. Ela tombou no piso de concreto. Shin e vários outros colegas a levantaram e a levaram para casa, uma fazenda de porcos que não ficava longe da escola. Mais tarde naquela noite, a menina morreu.” Mais “sorte” teve outro aluno que desobedeceu o professor. Foi amarrado a uma árvore e uma fila de estudantes se formou para lhe dar murros no rosto.

Com dez anos de idade, as crianças eram encaminhadas para trabalhos insalubres, como empurrar minério em gôndolas sobre trilhos. Uma amiga de Shin se desequilibrou e teve o pé esmagado pela roda de aço de uma gôndola. Levada ao hospital do campo, teve o dedo amputado sem anestesia e tratado apenas com água salgada. Em outra ocasião, durante a construção de uma represa, um muro de concreto caiu perto de Shin, matando oito trabalhadores, cinco deles crianças de 15 anos de idade. Foram esmagados a ponto de ficarem irreconhecíveis. Todos continuaram trabalhando como se nada tivesse acontecido.

Neste ambiente de absoluto desespero, o suicídio era muitas vezes a única saída que alguns prisioneiros enxergavam. Mas os governantes viam o suicídio como uma tentativa de escapar ao domínio do partido. Como escreveu Kang Cholhwan no livro sobre seu período como prisioneiro do Campo 15, “se o indivíduo que tentara o ardil não estava por perto para pagar por isso, alguém mais precisava pagar no lugar dele.” Todos os prisioneiros são avisados de que, caso optem por esse caminho, seus familiares serão punidos com sentenças e punições ainda maiores.

A situação nos campos, porém, era mais difícil de ser suportada por aqueles que tinham uma vida pregressa. A diferença entre a vida levada antes de serem presos era um fardo pesado demais. Para pessoas como Shin, no entanto, que não conheciam outra vida, o desespero, por incrível que pareça, era menor.


Veja também:


Notas:

  • [1ROSSI, Jones “... é editor de Ideias na Gazeta do Povo e co-autor do livro Guia Politicamente Incorreto do Futebol (Ed. Leya), com Leonardo Mendes Júnior. Foi editor de ciência e saúde do site de VEJA, editor da revista Galileu e repórter do G1 e do extinto Jornal da Tarde” In:<https://www.gazetadopovo.com.br/autor/jones-rossi/>. Acesso em: 02/08/2022.


Referência bibliográfica:

  • ROSSI, Jones. Campo 14 – Bebês mortos a pauladas, fome e execuções: a vida em um campo de concentração norte-coreano. In: As atrocidades do comunismo que você não aprendeu na escola – Ebook, pp. 60-67. Gazeta do Povo. Acesso em: 02/08/2022.

10 maio 2024

Bispos e Papas: (6) Sixto

 Por: Alcides Barbosa de Amorim

Bispo Sixto I [1]


Seguindo nossa proposta de estudo dos bispos romanos listados por Eusébio de Cesareia, no seu livro História Eclesiástica [2], já vimos, até aqui os bispos Lino, Anacleto, Clemente de Roma, Evaristo e Alexandre I.

Conforme escreve Eusébio (4, IV) [3], no terceiro ano do reinado de Adriano – “sob o mesmo imperador, conforme capítulo III, morreu Alexandre, bispo de Roma, depois de cumpridos dez anos de governo, e foi sucedido por Sixto. Em que ano? Na versão da H. E. de Eusébio, publicada pela CPAD e usada aqui (Nota 2), há uma tabela cronológica e o início do bispado de Xisto aparece no ano 117.

Sobre o sucessor de Alexandre I, o Bispo Xisto ou Sixto I, não há muito o que dizer. Mas baseado nestas fontes católicas, aqui[4], e também aqui[5], podemos destacar:

  • Xisto ou Sisto I, foi um dos cinco papas na história da Igreja com o nome de Xisto. Seu nome verdadeiro, "Xystus", provavelmente de origem grega, pode ter sido confundido com sexto, erroneamente avaliado, também porque foi o sétimo Papa, ou seja, o sexto depois de São Pedro.

  • Era romano, filho de certo Pastore (ou um casal de pastores).

  • Proibiu aos leigos tocarem nos vasos sagrados, mas convidou os fiéis a cantarem ou rezarem o sanctus junto com o celebrante. Ao que parece, também a fórmula final do "Ite Missa est", embora não seja confirmada historicamente.

  • Não se sabe precisamente se foi mártir.

  • Foram-lhe atribuídas duas Cartas de cunho doutrinário: uma, sobre a Santíssima Trindade; a outra, sobre a Primazia do Bispo de Roma, que alguns, todavia, consideram apócrifa.

  • Durante seu pontificado, tiveram início, provavelmente, as primeiras divergências com as Igrejas Orientais, enquanto parece ter sido ele a enviar os primeiros missionários para evangelizar a Gália, entre os quais São Peregrino.

  • Faleceu, por volta do ano 125, provavelmente decapitado.

Bem, esta fonte afirma que provavelmente, São Sixto I exerceu seu pontificado entre 115-129, enquanto esta afirma que ele faleceu por volta do ano 125. Eusébio (4, V) diz que ele foi sucedido por Telésforo, “… no décimo segundo reinado de Adriano… e… no ano que completara o décimo ano de seu episcopado”. Se Adriano, segundo esta fonte[6], exerceu seu reinado entre 117 e 138, deduzimos que Sixto terminou seu episcopado em 127.


Notas / Referências bibliográficas:

  • [1Imagem meramente ilustrativa, adaptada e disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Papa_Sisto_I>. Acesso em 08/05/2024.

  • [2Na versão publicada pela CPAD em 1995, nas páginas 409/410, a editora fez uma lista de 29 bispos de Roma citados por Eusébio, e Xisto ou Sisto é o número 6 da lista... 

  • [3]  Isto é, Livro 4, Capítulo IV da História Eclesiástica de Eusébio (Nota 2).

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28 abril 2024

Revolução dos Bichos (X)

Por: George Orwell [1]

In: Gazeta do Povo [2]

    Capítulo X [3]

Os anos se passaram. As estações chegavam e partiam e as vidas curtas dos animais passavam voando. Chegou o tempo em que mais ninguém se lembrava dos velhos tempos antes da Revolução, exceto Esperança, Benjamim, Moisés, o corvo, e alguns dos porcos.

Muriel tinha morrido; Mimi, Lulu e Pipa tinham morrido. Jones também estava morto – ele havia morrido em um lar para alcoólatras em outro canto do país. O Bola de Neve foi esquecido. Golias foi esquecido, exceto pelos poucos que o conheceram. Esperança era agora uma égua velha e robusta, com articulações rígidas e com uma tendência a ter remelas nos olhos. Ela já tinha passado dois anos da idade de aposentadoria, mas na verdade nenhum animal jamais chegou a se aposentar. A conversa de reservar um canto do pasto para animais velhos já havia sido abandonada há muito tempo. Napoleão era agora um javali maduro de cento e cinquenta quilos. O Berro estava tão gordo que mal conseguia enxergar através do espaço que suas bochechas deixavam para os olhos. Apenas o velho Benjamin era quase o mesmo de sempre, exceto por ter mais pelos cinzas ao redor do focinho e, desde a morte de Golias, ter ficado mais rabugento e casmurro do que nunca.

Agora a fazenda tinha bem mais criaturas, embora o aumento não tenha sido tão grande como se esperava em anos anteriores. Para muitos dos animais jovens, a Revolução não passava de uma tradição confusa, transmitida de boca a boca, enquanto outros animais comprados nunca tinham ouvido falar sobre a Revolução antes de chegarem lá. A fazenda possuía agora três cavalos além da Esperança. Eram animais de bem, trabalhadores dispostos e bons camaradas, mas muito estúpidos. Nenhum deles se mostrou capaz de aprender o alfabeto além da letra B. Eles aceitaram tudo o que lhes foi dito sobre a Revolução e os princípios do animalismo, especialmente pela Esperança, por quem tinham um respeito quase filial; mas ninguém sabia ao certo se tinham entendido bem.

A fazenda era agora mais próspera e organizada: tinha até sido ampliada com compra de dois campos do Sr. Pilkington. O moinho tinha sido finalmente concluído com sucesso, e a fazenda possuía uma debulhadora e um elevador de feno, e várias novas construções tinham sido acrescentadas a ele. Whymper tinha comprado uma pequena carruagem para si mesmo. O moinho de vento, entretanto, não havia sido usado para gerar energia elétrica no fim das contas. Ele era usado para moer milho, o que trazia um belo lucro em dinheiro. Os animais estavam trabalhando duro na construção de mais um moinho de vento; quando este estivesse terminado, assim se dizia, os dínamos seriam instalados. Mas os luxos mencionados por Bola de Neve, que deixou os animais sonhando com baias com luz elétrica, água quente e fria e semanas com apenas três dias de trabalho não eram mais mencionados. Napoleão havia denunciado tais ideias como contrárias ao espírito do animalismo. A felicidade mais verdadeira, disse ele, estava em trabalhar duro e viver frugalmente.

De alguma forma, parecia que a fazenda tinha ficado mais rica sem tornar os próprios animais mais ricos – exceto, é claro, os porcos e os cães. Talvez isto se deva em parte ao fato de haver tantos porcos e cães. Não que essas criaturas não trabalhassem, dentro de suas possibilidades. Havia, como Berro nunca se cansava de explicar, uma quantidade interminável de trabalho na supervisão e organização da fazenda. Muito desse trabalho era do tipo que os outros animais eram ignorantes demais para entender. Por exemplo, Berro lhes disse que os porcos despendiam horas de trabalho diário em coisas misteriosas chamadas “arquivos”, “relatórios”, “atas” e “memorandos”. Estas eram grandes folhas de papel que tinham que ser cobertas de escrita, e assim que eram cobertas, eram queimadas na fornalha. Isto era da maior importância para o bem-estar da fazenda, disse Berro. Mas, mesmo assim, nem os porcos nem os cães produziam qualquer alimento com seu próprio trabalho; e eles eram muitos, e seus apetites eram sempre imensos.

Quanto aos outros, suas vidas eram, até onde sabiam, como sempre foram. Geralmente tinham fome, dormiam na palha, bebiam dos bebedouros, trabalhavam nos campos; no inverno, eram perturbados pelo frio, e no verão, pelas moscas. Às vezes, os mais velhos entre eles guardavam suas lembranças sombrias e tentavam determinar se nos primeiros dias da Revolução, quando a expulsão de Jones ainda era recente, as coisas eram melhores ou piores do que agora. Mas eles não conseguiam se lembrar. Não havia nada com que pudessem comparar suas vidas atuais: eles não tinham nada para se basear, exceto as listas de dados de Berro, que demonstravam invariavelmente que tudo estava ficando cada vez melhor. Os animais achavam o problema insolúvel; em todo caso, eles tinham pouco tempo para especular sobre tais coisas agora. Somente o velho Benjamin professou recordar cada detalhe de sua longa vida e saber que as coisas nunca haviam sido, nem poderiam ser, muito melhores ou muito piores – a fome, as dificuldades e o desapontamento sendo, assim disse, a lei inalterável da vida.

E, no entanto, os animais nunca perderam a esperança. Mais ainda, eles nunca perderam, mesmo por um instante, seu senso de honra e privilégio de serem membros da Fazenda dos Animais. Eles ainda eram a única fazenda em todo o condado – em toda a Inglaterra! – possuída e operada por animais. Nenhum deles, nem mesmo os mais jovens, nem mesmo os recém-chegados que haviam sido trazidos de fazendas a dez ou vinte milhas de distância, jamais deixaram de se maravilhar com isso. E quando eles ouviam a arma disparar e viam a bandeira verde tremulando no mastro, seus corações se enchiam de orgulho irrevogável, e a conversa voltava-se sempre para os velhos dias heroicos, a expulsão de Jones, a escrita dos Sete Mandamentos, as grandes batalhas nas quais os invasores humanos haviam sido derrotados. Nenhum dos velhos sonhos havia sido abandonado. A República dos Animais que o Major havia predito, quando os campos verdes da Inglaterra deveriam ser libertos de pés humanos, ainda era um sonho. O dia estava chegando: poderia não estar em breve, poderia não acontecer com os animais vivos agora, mas ainda assim estava chegando. Até mesmo a melodia de “Animais da Inglaterra” era cantarolada secretamente aqui e ali: de qualquer forma, era algo que todos os animais da fazenda conheciam, embora ninguém ousasse cantá-la em voz alta. Talvez suas vidas fossem difíceis e nem todas as suas expectativas tivessem sido cumpridas; mas eles estavam conscientes de que não eram como os outros animais. Se passavam fome, não era para alimentar seres humanos tirânicos; se trabalhavam duro, pelo menos trabalhavam para si mesmos. Nenhuma criatura entre eles tinha duas pernas. Nenhuma criatura chamava qualquer outra criatura de “Mestre”. Todos os animais eram iguais.

Um dia, no início do verão, Berro ordenou que as ovelhas o seguissem, e as levou para um terreno baldio tomado por mudas de bétula no outro extremo da fazenda. As ovelhas passaram o dia inteiro lá sob a supervisão do Berro. À noite, ele voltou para a fazenda mas, como estava quente, disse às ovelhas para ficarem onde estavam. No fim, elas ficaram lá uma semana inteira, sem contato nenhum com os outros animais. O Berro ficava com elas durante a maior parte do dia. Disse que estava lhes ensinando uma nova canção e precisa de privacidade.

Em uma noite agradável logo após o retorno das ovelhas, quando os animais tinham terminado o trabalho e estavam voltando para as instalações da fazenda, o relincho aterrorizado de um cavalo soou do pátio. Assustados, os animais pararam em seus lugares. Era a voz da Esperança. Ela relinchou novamente, e todos os animais arrombaram em galope e correram para o pátio. Então todos viram o que ela tinha visto.

Era um porco andando sobre suas patas traseiras.

Sim, era o Berro. Um pouco desajeitado, como se não estivesse acostumado a suportar sua considerável massa naquela posição, mas com perfeito equilíbrio, ele estava passeando pelo pátio. E no momento seguinte, da porta da casa, saiu uma longa fila de porcos, todos andando sobre suas patas traseiras. Alguns o faziam melhor do que outros, um ou dois estavam até um pouco instáveis e pareciam precisar do apoio de uma vara, mas cada um deles conseguiu dar uma volta inteira no quintal com sucesso. Finalmente, os cães ladraram e a gata preta deu um miado estridente, então veio o próprio Napoleão, majestosamente erguido, lançando olhares altivos de um lado para o outro, com seus cães empolgados à sua volta.

Ele carregava um chicote em sua pata.

Havia um silêncio mortal. Espantados, aterrorizados e amontoados, os animais observavam a longa fila de porcos marchando lentamente ao redor do pátio. Era como se o mundo tivesse virado de cabeça para baixo. Depois veio um momento em que o primeiro choque havia passado e quando, apesar de tudo – apesar do terror dos cães e do hábito, desenvolvido durante longos anos de nunca reclamar, nunca criticar, não importando o que acontecesse – eles poderiam ter proferido alguma palavra de protesto. Mas naquele momento, como se fosse um sinal, todas as ovelhas explodiram em um tremendo balido de…

“Quatro pernas bom, duas pernas melhor! Quatro patas bom, duas patas melhor!

Quatro patas bom, duas patas melhor!”

Isso continuou por cinco minutos sem parar. E, quando as ovelhas se acalmaram, a chance de protestar já havia passado, pois os porcos haviam voltado para a casa.

Benjamin sentiu um nariz zumbindo em seu ombro. Ele olhou em volta. Era Esperança. Seus olhos velhos pareciam mais escuros do que nunca. Sem dizer nada, ela o puxou suavemente pela crina e o levou até o final do grande celeiro, onde os Sete Mandamentos foram escritos. Durante um ou dois minutos eles ficaram olhando a parede marcada com as letras brancas.

“Minha visão está falhando”, disse ela finalmente. “Mesmo quando eu era jovem, não conseguia ler o que estava escrito ali. Mas me parece que aquele muro está diferente. Os Sete Mandamentos são os mesmos que eram antes, Benjamin?”

Por uma vez Benjamin consentiu em quebrar sua própria regra, e leu para ela o que estava escrito na parede. Agora não havia nada lá, exceto um único Mandamento:

Todos os animais são iguais

Mas alguns animais são mais iguais do que outros

Depois disso, não pareceu estranho quando no dia seguinte os porcos que estavam supervisionando o trabalho da fazenda carregavam todos chicotes em suas patas. Não pareceu estranho saber que os porcos tinham comprado um rádio, estavam organizando a instalação de um telefone e tinham feito assinaturas das revistas “John Bull” e “Tit-Bits”, e do jornal “Daily Mirror”. Não parecia estranho quando Napoleão foi visto passeando no jardim da fazenda com um cachimbo na boca – não, nem mesmo quando os porcos tiraram as roupas do Sr. Jones do guarda-roupa e as vestiram, o próprio Napoleão aparecendo com um casaco preto, calças bufantes com botas de couro, enquanto sua porca favorita apareceu com o vestido leve de seda que a Sra. Jones costumava vestir aos domingos.

Uma semana depois, à tarde, uma série de carroças foi até a fazenda. Uma delegação de fazendeiros vizinhos havia sido convidada para fazer uma excursão de inspeção. Eles foram levados para todos os cantos da fazenda, e expressaram grande admiração por tudo o que viram, especialmente o moinho de vento. Os animais estavam trabalhando no campo de nabos. Eles trabalhavam diligentemente, mal levantando o rosto do chão, sem saber se deviam ter mais medo dos porcos ou dos visitantes humanos.

Naquela noite, gargalhadas e cantorias vieram da casa. E, de repente, ao som das vozes misturadas, os animais foram acometidos de curiosidade. O que poderia estar acontecendo ali, agora que pela primeira vez animais e seres humanos estavam se encontrando em termos de igualdade? Em comum acordo, eles começaram a rastejar o mais silenciosamente possível para o jardim da fazenda.

Eles pararam no portão, meio assustados para continuar, mas a Esperança liderou o caminho para dentro. Eles se inclinaram para a casa, e os animais que eram suficientemente altos se espreitaram na janela da sala de jantar. Lá, ao redor da longa mesa, sentavam-se meia dúzia de agricultores e meia dúzia dos porcos mais eminentes, o próprio Napoleão ocupando o assento de honra à frente da mesa. Os porcos pareciam completamente à vontade em suas cadeiras. A companhia vinha desfrutando de um jogo de cartas, mas havia feito uma pausa, evidentemente para fazer um brinde. Um grande jarro estava circulando, e as canecas estavam sendo reabastecidas com cerveja. Ninguém notou as faces curiosas dos animais que olhavam para dentro da janela.

O Sr. Pilkington, de Foxwood, havia se levantado com sua caneca na mão. Ele logo pediria, disse, que todos fizessem um brinde. Mas antes de fazer isso, havia algumas palavras que ele sentia que lhe competia dizer.

Foi uma fonte de grande satisfação para ele, disse – e, estava certo, para todos os outros presentes também – sentir que um longo período de desconfiança e mal-entendidos havia chegado ao fim. Houve um tempo – não que ele, ou qualquer um dos fazendeiros presentes, tivesse compartilhado tais sentimentos – mas houve um tempo em que os respeitados proprietários da Fazenda dos Animais foram considerados, não com hostilidade, mas talvez com uma certa dose de apreensão, por seus vizinhos humanos. Ocorreram infelizes incidentes, ideias equivocadas tinham corrido por aí. Tinha-se sentido que a existência de uma fazenda de propriedade de porcos e operada por porcos era de alguma forma anormal e poderia ter um efeito perturbador na vizinhança. Muitos agricultores haviam assumido, sem a devida investigação, que em tal fazenda prevaleceria um espírito de preguiça e indisciplina. Eles estavam nervosos com os efeitos sobre seus próprios animais e até mesmo sobre seus empregados humanos. Mas todas essas dúvidas foram agora dissipadas. Hoje ele e seus amigos haviam visitado a Fazenda dos Animais e inspecionado cada centímetro dela com seus próprios olhos, e o que encontraram? Não apenas os métodos mais atualizados, mas uma disciplina e uma ordenação que deveria ser um exemplo para todos os fazendeiros em todos os lugares. Ele acreditava estar certo ao dizer que os animais ali trabalhavam mais e recebiam menos comida do que os animais em qualquer outra fazenda do condado. De fato, hoje ele e seus colegas visitantes haviam observado muitas características que pretendiam introduzir imediatamente em suas próprias fazendas.

Ele terminaria suas observações, disse ele, enfatizando mais uma vez os sentimentos amigáveis que subsistiam, e deveriam subsistir, entre a Fazenda dos Animais e seus vizinhos. Entre porcos e seres humanos não havia, e não precisava haver, nenhum conflito de interesses, seja qual fosse. Suas lutas e suas dificuldades eram uma só. O problema do trabalho não era o mesmo em todos os lugares? Então ficou evidente que o Sr. Pilkington estava prestes a fazer alguma graça cuidadosamente preparada, mas ele ficou tão impactado pelo seu próprio humor que foi incapaz de contar a piada em voz alta. Depois de muita asfixia, durante a qual seus vários queixos ficaram roxos, ele conseguiu: “Se vocês têm que lidar com animais inferiores”, disse ele, “nós temos que lidar com nossas classes inferiores”! Esta tirada fez com que toda a mesa fosse tomada por risos; e o Sr. Pilkington mais uma vez parabenizou os porcos pelo baixo consumo de ração, pelas longas horas de trabalho e pela ausência geral de mimos que ele havia observado na Fazenda dos Animais.

E agora, disse finalmente, pediria a todos que se levantassem e se certificassem de que seus copos estavam cheios. “Cavalheiros”, concluiu o Sr. Pilkington, “cavalheiros, eu lhes faço um brinde: À prosperidade da Fazenda dos Animais”!

Houve uma ovação entusiasmada e um bater de pés. Napoleão ficou tão grato que saiu de seu lugar e deu a volta na mesa para brindar com o Sr. Pilkington, dando uma batidinha leve entre as canecas antes de esvaziar a sua. Quando os aplausos se extinguiram, Napoleão, que havia ficado de pé, insinuou que ele também tinha algumas palavras a dizer.

Como todos os discursos de Napoleão, esse também foi curto e direto ao ponto. Ele também, disse, estava feliz pelo fim do período de mal-entendidos. Durante muito tempo houve rumores – circulados, tinha motivos para pensar, por algum inimigo maligno – que havia algo subversivo e até revolucionário na visão dele e de seus colegas. Acreditavam que eles tentavam provocar a rebelião de animais em fazendas vizinhas. Nada poderia estar mais longe da verdade! Seu único desejo, agora e no passado, era viver em paz e ter relações comerciais normais com seus vizinhos. Esta fazenda, que ele teve a honra de controlar, acrescentou, era uma empresa cooperativa. Os títulos de propriedade, que estavam em seu próprio poder, eram de propriedade conjunta dos porcos.

Ele não acreditava, disse ele, que qualquer uma das antigas suspeitas ainda persistisse, mas certas mudanças haviam sido feitas recentemente na rotina da fazenda, o que deveria ter o efeito de promover ainda mais a confiança. Até então, os animais da fazenda tinham um costume bastante tolo de se tratarem uns aos outros como “camarada”. Isso seria suprimido. Havia também um costume muito estranho, cuja origem era desconhecida, de marchar todos os domingos de manhã passando pelo crânio de um javali que era pregado em um poste no jardim. Isto também seria suprimido e o crânio já havia sido enterrado. Seus visitantes também poderiam ter observado a bandeira verde que voava do mastro. Se assim fosse, eles talvez tivessem notado que o casco branco e o chifre com os quais ela havia sido marcada anteriormente tinham sido removidos. A partir de agora, seria uma bandeira verde simples.

Ele tinha apenas uma crítica, disse ele, a fazer ao excelente discurso do Sr. Pilkington. O Sr. Pilkington havia se referido a “Fazenda dos Animais”. É claro que ele não podia saber – pois ele, Napoleão, estava anunciando isso pela primeira vez – mas o nome “Fazenda dos Animais” havia sido abolido. Daí em diante a fazenda seria conhecida como “Fazenda Solar” – que, ele acreditava, era seu nome correto e original.

“Cavalheiros”, concluiu Napoleão, “Eu farei o mesmo brinde de antes, mas de uma forma diferente. Encham seus copos até a borda. Meus senhores, aqui está meu brinde: À prosperidade da Fazenda Solar”!

Houve o mesmo aplauso de antes, e as canecas foram esvaziadas até o fundo. Mas enquanto os animais do lado de fora olhavam para o local, parecia que alguma coisa estranha estava acontecendo. O que foi que havia mudado no rosto dos porcos? Os velhos olhos escuros de Esperança iam de um rosto para o outro. Alguns deles tinham cinco queixos, outros quatro, outros três. Mas o que foi que parecia estar fundindo e mudando? Então, os aplausos chegaram ao fim, a companhia pegou suas cartas e continuou o jogo que havia sido interrompido, e os animais saíram se arrastando silenciosamente.

Ainda não tinham se afastado mais de 20 metros quando pararam. Um alvoroço de vozes vinha da casa da fazenda. Eles correram de volta e olharam pela janela novamente. Sim, uma violenta briga estava em andamento. Havia gritos, pancadas sobre a mesa, olhares suspeitos, negações furiosas. A fonte do problema parecia ser que Napoleão e o Sr. Pilkington tinham jogado um ás de espadas simultaneamente.

Doze vozes gritavam raivosas e iguais. Agora não havia mais dúvidas sobre o que havia acontecido com os rostos dos porcos. As criaturas lá fora olhavam de porco para o homem, e de homem para porco, e de porco para homem novamente; mas já era impossível dizer quem era quem.

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Agora, veja o Capítulo X e último, em audiolivro:



Notas:

  • [1] George Orwell: “...escritor nascido em uma colônia inglesa na Índia, é considerado um dos mais importantes romancistas da vertente distópica da literatura mundial, caracterizada pela narração de enredos em que os personagens vivenciam situações em espaço e tempo futuros, nos quais não há possibilidade para a utopia, ou seja, para o sonho e para a esperança. Nessa linha, destacam-se suas duas obras-primas, traduzidas para vários idiomas e transpostas para as telas do cinema mais de uma vez: o romance A revolução dos bichos, publicado em 1945, e o romance 1984, publicado em 1949.” Veja mais aqui.
  • [2O que diz o livro Revolução dos Bichos? “O conhecido livro do inglês George Orwell, A Revolução dos Bichos (1945), é um dos legados atemporais mais importantes que escritores do século passado nos deixaram. Na obra, Orwell faz uma crítica ao stalinismo. Então socialista, o inglês – nascido na Índia durante o domínio britânico – se desilude com a ideologia ao ver o totalitarismo soviético e satiriza o sucessor de Lênin. Na alegoria, o autor apresenta uma revolução idealizada por um porco, o Major (que pode representar tanto Marx como Lênin), que convoca os bichos da granja em que vive a expulsar seu proprietário, o humano Sr. Jones (que seria Nicolau II, imperador do Czar). Porco Major morre em seguida e dois outros suínos tomam a frente: Napoleão (representando Stálin) e Bola de Neve (que seria Trotski). A estória segue o roteiro soviético… Napoleão expurga Bola de Neve, deturpa as leis a seu favor e se torna um ditador. Os demais bichos (galinhas, gado, cavalo…) se rendem à autocracia sem questionar, de forma passiva. Cada vez trabalham mais, exaustivamente e com alimento controlado; enquanto isso, Napoleão toma posse das dependências do Sr. Jones, agindo, portanto, de forma mais exploradora e cruel que o antigo chefe. A ironia está no fato de que a máxima da revolução era ‘duas pernas/patas mau’ – referindo-se a seres humanos”. Leia mais em: Rodrigo Constantino – Gazeta do Povo.com.
  • [3] ORWELL, George. Revolução dos Bichos. Gazeta do Povo. Capítulo X, pág. 147 a 163. Veja o livro completo aqui.