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17 julho 2023

Breve análise teológica sobre Karl Marx

Por Luiz A. T. Sayão [1]

“… o marxismo é uma miscelânea de evolucionismo, hegelianismo com iluminismo humanista impregnado de fortes influências da cosmovisão judaico-cristã...”

 


O pensamento de Karl Marx, bem como o sistema filosófico conhecido como marxismo, tem sido amplamente discutido como uma teoria sociopolítico-econômica [2]. Parece difícil comprovar a eficácia das promessas marxistas na história, Quando executadas, seus resultados são poucos satisfatórios. Apesar disso, o marxismo tem sido visto, de modo geral, como um sistema filosófico e "cientifico". Nestas poucas linhas gostaríamos de comentar alguns aspectos religiosos e teológicos do marxismo que têm sido pouco enfatizados, mas que, talvez, possam explicar o relativo sucesso e popularidade das ideias do renomado filósofo judeu-alemão.

É quase universalmente conhecida a visão negativa que o pensamento de Marx sustenta com respeito à religião. A religião é o ópio do povo. Ela aliena o homem de si mesmo, proporcionando-lhe uma fuga de sua atitude transformadora da história. Assim, o marxismo é caracterizado como ateu e antirreligioso. O fato, porém, é que Marx, sendo judeu e tendo vivido na Europa Ocidental do século XIX, aproveitou muito de sua herança judaico-cristã para a elaboração de seu sistema filosófico. Invertendo o idealismo de Hegel [3], Marx considera a matéria como realidade única e entende o desenvolvimento da história de modo similar à visão cristã. A história caminha para um alvo final que é a remissão do homem de todas suas injustiças, mazelas desigualdades. O comunismo marxista implantará esta condição sem par. A visão é escatológica. Deus é substituído pelo homem, que se torna o personagem principal do cenário. As profecias bíblicas e aspirações de uma idade de ouro (recuperada ou não) são aproveitadas, mas somente se cumprirão mediante a ação humana e a execução dos princípios dos escritos de Marx e Engels, substitutos da Bíblia. Nessa estrutura Humanista também não falta um povo escolhido ou predestinado, que executará a brilhante tarefa: o proletariado. Este tem os mais ricos como gentios e deverão triunfar sobre eles. Há, então, um aspecto messiânico e soteriológico no pensamento marxista que, certamente, tem suas origens no pensamento judaico-cristão, tão fortemente criticado pelo mesmo.

Devido a estes aspectos, o marxismo já tem sido considerado até mesmo uma espécie de heresia do cristianismo. Enquanto as ideias de Marx parecem ignorar as necessidades transcendentais ou religiosas do ser humano, quando postas em prática seu sucesso parece depender diretamente destas mesmas necessidades! Parece sensato afirmar que o marxismo é uma miscelânea de evolucionismo, hegelianismo com iluminismo humanista impregnado de fortes influências da cosmovisão judaico-cristã. Ele tenta unir o agradável e desejável do pensamento cristão (promessas de um futuro perfeito, propósito específico para a história e para o homem) com as inovações da modernidade que procuraram suavizar ao homem as exigências do cristianismo histórico (humanismo; o homem é Deus, a ciência humana trará felicidade final ao homem etc.). Com esta estrutura, aliada às injustiças sociais e fracassos de diversos sistemas políticos, o marxismo tem encontrado grande espaço no século XX, visto que está mais bem elaborado para atingir e se comunicar com a grande parte dos homens este século que não quer Deus, mas que deseja seus benefícios. Além deste aspecto, deve ser lembrado que o marxismo permanece como um dos poucos sistemas filosóficos da atualidade que possui propósitos e promessas, visto que as filosofias europeias do século XX têm tentado focalizar o absurdo, o desespero e a falta de significado do ser humano (existencialismo). Tal fato deixa o marxismo com poucos concorrentes! Talvez seja possível entender as razões do crescimento do marxismo ateu neste século, cujo sucesso relativo ocorre devido às suas características transcendentais e religiosas, as quais ele tanto condena no cristianismo. Talvez isso aconteça por temor ao seu concorrente que já tem séculos de permanência e vida, enquanto o marxismo declina principalmente por contar com uma visão antropológica otimista, confiando na bondade e esforços humanos, enquanto os cristãos confiam no Deus criador e na redenção que há em Cristo Jesus.



Notas:

  • [1] Luiz Alberto Teixeira Sayão é um pastor batista, teólogo, linguista, tradutor bíblico e hebraísta brasileiro…. Atualmente apresenta alguns programas na Rádio Trans Mundial que são: Rota 66, A Verdadeira Espiritualidade, Conversando com Luiz Sayão e No Ponto (Wikipedia). Veja mais em: <https://luizsayao.com.br/about-us/>. O texto a seguir é uma contribuição à Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã (R. B.).

  • [2] Já destacamos brevemente suas ideias (econômicas e políticas) quando falamos sobre a Revolução Russa de 1917. Veja o link: <A Revolução Russa de 1917>.


Referência bibliográfica:

  • SAYÃO, Luiz Alberto Teixeira. Karl Max. In: Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. II. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág. 483 e 484.

15 julho 2023

Breve análise teológica sobre Hegel

Por Alcides Barbosa de Amorim

 

“Se Deus se revela ao homem, ele faz essencialmente ao homem como ser pensante... os animais não têm religião..."

 

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich (1770-1831) [1], Filósofo alemão. Filho de um funcionário público em Stuttgart. Nada na sua juventude nem na sua escolaridade indicava a grande influência que viria a ter. Quando se formou na Universidade de Tübingen, em 1793, seu certificado recomendava seu bom caráter e conhecimento razoável de teologia e filologia, bem como seu domínio inadequado de filosofia. Depois de ter sido um tutor residente de famílias aristocráticas, Hegel aceitou um professorado na Universidade de Jena, em 1801. Ali, foi influenciado por Schelling, com quem trabalhou na redação do Critical Journal of Philosophy ("Revista Critica da Filosofia"). Foi em Jena, também, que escreveu sua primeira obra importante: The Phenomenology of Spint CA Fenomenologia do Espirito"). Infelizmente, uma batalha militar em 1807 forçou a Universidade a se fechar, e Hegel passou a trabalhar por um breve período como editor de um noticiário diário. Em 1808, tornou-se diretor de uma escola em Nuremberg, onde sua filosofia continuava a florescer num ritmo natural. Em 1816, começou a ensinar filosofia na Universidade de Heidelberg. Finalmente, em 1818 tornou-se catedrático de Filosofia na Universidade de Berlim, onde ficou famoso e influente.

Hegel foi o mais influente dos idealistas alemães. Na opinião dele, apenas a mente é real: tudo o mais é a expressão da mente. A filosofia veio a ser um tipo de teologia para Hegel, porque via toda a realidade como uma expressão do Absoluto, que é Deus Tudo quanto existe é a expressão da mente divina, de modo que o real é racional e o racional é real.

Em termos de método, Hegel procurava acentuar aquilo que considerava como contradições no pensamento das pessoas, a fim de desmascarar a fraqueza das suas opiniões. Pensava que o erro é causado polo pensamento incompleto ou pela abstração. Quando ele desmascarava as "contradições", as pessoas podiam perceber que seus pensamentos eram incompletos, sendo levadas a compreender aquilo que era especifico e real. Hegel pensava na própria História como um foro onde as contradições e as insuficiências do pensamento e ação finitos são desmascaradas, permitindo que a mente infinita do Absoluto chegue a níveis superiores da expressão cultural e espiritual.

Segundo Hegel, o Estado é a realização mais sublime do homem. Embora ele enfatizasse o amor dentro da família, considerava que o Estado era uma expressão mais sublime e universal do amor familiar. O Estado produz a concretização do ideal ético; a mente da nação é o divino, "o Deus real", que em si mesma tem conhecimento e vontade. O fato de que o Estado impõe sua vontade pela força não preocupava Hegel, que considerava benéfica a guerra. A guerra evita a estagnação na história e preserva a saúde das nações. Duas nações diferentes podiam ter razão igualmente, e as duas podiam ser expressões divinas; a guerra decide qual "direito" tem que ceder lugar ao outro.

Hegel dividia a religião em quatro etapas diferentes – quatro maneiras de obter conhecimento do Absoluto. A primeira é a religião natural, ou o animismo, em que o homem adorava as árvores, os ribeiros e os animais. A segunda etapa representa Deus de forma humana, com templos edificados e estátuas honradas. Esta etapa também envolve o desenvolvimento da autoconsciência nos seres humanos. O cristianismo histórico fornece a terceira etapa. Mediante a encarnação, Deus está presente no mundo – Deus e os homens juntos. Hegel dava valor aos ensinos éticos de Jesus, especialmente os do Sermão da Montanha. Jesus não fazia distinção entre inimigos e amigos; ele rompia as desigualdades. Com Jesus, a moralidade era uma expressão espontânea da vida – uma participação da vida divina. A quarta etapa é a mais alta; é a reformulação por Hegel das crenças cristãs em conceitos da filosofia especulativa.

Segundo Hegel, a religião (como a vida da mente em geral) aparece sobretudo na forma dos pensamentos ou conceitos humanos. Sentir é a forma inferior de consciência, enquanto que o raciocínio – que distingue o homem dos animais – é a forma mais elevado. ‘Se Deus se revela ao homem, ele faz essencialmente ao homem como ser pensante... os animais não têm religião.’ O sistema de Hegel abria espaço para os aspectos eruditos e especulativos da teologia... [2]

Hegel via Deus manifestado no mundo de muitas maneiras. A própria História é estudo da providência divina. Mediante a ação divina, "contradições entre movimentos ou culturas antitéticos são repetidas vezes resolvidas numa síntese superior. Deus Se expressou plenamente na encarnação, porque aqui Sua presença não estava restrita além do mundo. Apesar disso, na encarnação Deus ficou demasiadamente ligado a um meio ambiente especifico. É necessária uma religião filosófica mais geral. Deus é amor, e, portanto, embora a negação e a oposição sejam historicamente necessárias entre as teses e antíteses, a reconciliação e a síntese são sempre essenciais. Os movimentos dialéticos da História são expressões da providência de Deus no decurso de todo o tempo.

As interpretações de Hegel variam grandemente. Muitos consideram que seu cristianismo "filosofizado" é herético, um panteísmo levemente velado. Para outros, o sistema de Hegel é uma tentativa sincera de articular a verdade cristã na linguagem filosófica. Sua influência teve amplo alcance e se estendeu para a dialética histórica de Marx por um lado, e para a preocupação de Kierkegaard com a autoconsciência e a paixão, por outro lado.


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Veja também:

Notas:

  • [1] DEVRIES P. H.: Ph.D., Universidade de Virgínia. Professor Adjunto de Filosofia, Wheaton College, Wheaton, Illinois, EUA. O texto a seguir é uma contribuição à Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, mencionado nas Referências Bibliográficas deste artigo.

  • [2] HAGGLUND, 2003: Pág. 313.


Referências bibliográficas:

  • DEVRIES, Paul Henry. Hegel, Georg Wilhelm Friedrich (1770-1831). In: Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. II. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág. 242 e 243.

  • HAGGLUND, Bengt. História da Teologia. Porto Alegre/RS: Concórdia, 2003.

09 julho 2023

Uma República Velha?

Por  Alcides Amorim [1]


Em 1922, comentando a presença de um mendigo vivendo num matagal na capital federal, Lima Barreto observa: “Não diz a notícia dos jornais que o homem se alimentasse de caça e pesca, acabando assim o quadro de uma vida humana perfeitamente selvagem, desenvolvendo-se bem perto da avenida Central que se intitula civilizada”. Nesse trecho da crônica “Variações”, podemos perceber que as transformações indicadas nos capítulos anteriores conviveram com a permanência de tempos anteriores, de tempos quase selvagens. Constatações como esta fizeram muitos estudiosos encararem o regime criado em 1889 como uma superficial reorganização de instituições políticas, sem grandes implicações econômicas ou sociais. Mais ainda: houve quem interpretasse o novo sistema político como um “salto” para trás no tempo histórico, uma ruptura com a tendência centralizadora do Império, que deu lugar ao pleno domínio dos fazendeiros no quadro político nacional.

Da mesma forma que os temas anteriormente discutidos, essas interpretações são alvo de calorosas discussões. Um dos principais aspectos questionados é o suposto enfraquecimento do Estado. A crítica, por sinal, tem sua razão de ser, pois a fragmentação federalista, inversamente ao que ocorreu na época regencial, não fez surgir movimentos separatistas. Ao contrário, o poder central, de certa maneira, se viu fortalecido, pois a Primeira República coincide com a decadência econômica dos proprietários rurais de numerosas regiões e que, por isso, se tornam dependentes das funções, dos recursos e da proteção proporcionados pelo aparelho público federal.

Outras interpretações sublinham que a novidade republicana foi o surgimento de governos estaduais fortemente controlados por grupos oligárquicos, situação que, em razão do Poder Moderador, dificilmente ocorria na época monárquica. Assim, entre o mandão de uma cidadezinha e o presidente da República, surge uma instância intermediária, que barganha favores, empregos e verbas em troca de apoio político. Esse arranjo consiste no núcleo da Política dos Governadores, que, entre 1898 e 1930, dominou a República Velha. Campos Sales, seu idealizador, é, por isso, considerado um político sagaz e de grande imaginação. Uma análise comparativa com o que ocorria em outros países da América Latina revela, porém, que a proposta não era propriamente uma novidade; na Argentina, por exemplo, ela existia desde 1880, sob a denominação de Liga dos Governadores.

Além de disporem de toda uma rede de favores de natureza econômica, os governadores também conseguem apoio político federal para se perpetuar no poder. Isso era possível graças ao fato de os candidatos eleitos estarem sujeitos, segundo as leis eleitorais, à reconfirmação de seus respectivos mandatos pelo Congresso e pelo presidente da República. Os vitoriosos não apoiados pelo grupo dominante passavam, assim, a ser alvo do que popularmente ficou conhecido como degola. No outro extremo dessa cadeia de compromissos e barganhas, o poder estadual concedia carta-branca aos chefes locais para decidirem a respeito de todos os assuntos relativos ao município, podendo, inclusive, indicar protegidos seus para ocupar cargos estaduais.

Tal sistema, aparentemente, atendia aos interesses dos mini, médios e super coronéis. Mas isso só na aparência, pois, na prática, a política republicana contrariava muitos. O problema básico consistia na falta de regras claras a respeito da sucessão de poder, dando lugar, como no caso do gaúcho Borges de Medeiros, a grupos que por décadas se perpetuam no governo. Na ausência do imperador para dar “a última palavra”, ou ao menos para agir como um mediador consensual, são criadas condições propícias para um quadro de permanente conflito armado entre as oligarquias. No plano federal, essa situação propicia o pleno domínio de paulistas e mineiros. Em 1889, além de contar com partidos republicanos organizados há mais de uma década, há fatores econômicos e demográficos que favorecem esses estados. No caso paulista, obviamente, a supremacia econômica decorria do café. Em Minas, a vantagem advinha do fato de tratar-se do mais populoso membro da federação e, portanto, o que mais poderia influenciar nas votações presidenciais. Dessa maneira, não é de se estranhar que, entre 1894 e 1930, as oligarquias paulistas e mineiras tenham elegido nove dos doze presidentes republicanos. Tal situação, vale repetir, marginaliza numerosos grupos oligárquicos, dando origem a um quadro de conflitos e de permanente denúncia – muitas delas meramente oportunistas – contra a corrupção eleitoral e o clientelismo (na época também chamado de “filhotismo”); denúncias que acabam tornando recorrente a opinião de que a monarquia havia sido superior à república.

Em várias regiões brasileiras, violentas disputas entre os grupos oligárquicos reforçam a sensação de regressão social. Um conflito registrado em Mato Grosso, no ano de 1906, leva à deposição do governador local; outro acontecido oito anos mais tarde, no Vale do Cariri, orquestrado por coronéis cearenses – dentre eles padre Cícero –, promove um ataque à capital para depor o governador Franco Rabelo. Tais conflitos acabam exigindo a interferência de tropas federais, como os do estado de Goiás, em que lutas sucessivas entre Caiados e Wolneys desestabilizam a vida política local. Foram também múltiplas as guerras travadas no sertão baiano contra os poderosos Seabras. Em outras palavras, aos olhos de muitos, a vida política republicana havia se transformado, na maioria das vezes, em um campo de tiroteios e emboscadas, e não de diálogo e negociação.

Tais lutas eram, em certo sentido, expressão máxima do que costuma ser definido como coronelismo, forma de “mandonismo local”, particularmente mais intensa no Nordeste, que se baseava na formação de exércitos particulares de jagunços. Estes atuavam criminosamente no sertão desde os tempos coloniais, sendo eventualmente contratados para servir em guerras entre famílias rivais ou, em épocas de muita penúria econômica, para proteger o gado. A novidade da República Velha foi, por um lado, o uso político desses foras da lei, como ocorreu na mencionada revolta cearense do Vale do Cariri, que chegou a reunir bandos compostos por 5 mil jagunços. De certa maneira, a decadência da economia açucareira e do algodão contribuiu para isso, pois extinguiu boa parte dos empregos que garantiam, durante determinados meses do ano, a remuneração de inúmeras famílias sertanejas. Por outro lado, o declínio da produção de borracha nas áreas amazônicas, ocorrido no início do século XX, debilita a solução migratória como uma alternativa à miséria. A combinação entre estagnação econômica, secas e diminuição da emigração fez que aumentasse muito a população sertaneja miserável e a de pequenos proprietários que enfrentam a amarga experiência de declínio social. Por isso, essas populações se tornam facilmente recrutáveis pelos grupos oligárquicos. Não sendo raro que, após o fim dos conflitos, jagunços engrossem fileiras do cangaço “autônomo” – como foi o caso do célebre bando de Lampião –, que vivia do roubo e da extorsão. Tal situação reproduzia no Brasil um quadro não muito distante de desprezadas realidades comuns às mais pobres repúblicas latino-americanas da época.

O coronelismo e o cangaço eram, dessa maneira, um lado sombrio de nossa belle époque e indicam o caráter excepcional das transformações registradas no meio urbano, que, aliás, até a década de 1920 concentra apenas 20% da população brasileira. Trata-se de fato de uma ironia da história: na maioria das regiões brasileiras, o regime nascido em 1889 inverte, em vez de acentuar, a tendência europeizante da segunda metade do século XIX. Não é, portanto, de estranhar que a República Velha, mesmo quando “nova”, tenha gerado inúmeros críticos, a começar pela instituição que lhe deu origem: o Exército.

Conforme já observamos, a partir de 1898, os militares afastam-se da vida política. Tal retraimento, em parte decorrente das desastrosas campanhas de Canudos, também foi conseguida graças à concessão de cargos públicos a oficiais; prática que criou raízes e silenciou as casernas. Em 1910, porém, é dada ao Exército a possibilidade de voltar à cena. Eclode no Rio de Janeiro um levante de marinheiros. Liderados por João Cândido Felisberto, filho de ex-escravos, os revoltosos, em 23 de novembro, apoderam-se de embarcações de guerra e bombardeiam a capital federal. O principal objetivo da revolta revela a ambiguidade republicana, ou, melhor dizendo, a incapacidade de o novo regime romper com o passado: os amotinados exigem a abolição da chibata como castigo; aliás, o uso da chibata já era, de há muito, legalmente proibido. A reclamação estava longe de ser retórica: no dia da eclosão da revolta, um marinheiro carioca havia sido condenado ao nada agradável castigo de 250 chibatadas.

Apesar de a rebelião ter chegado ao fim através de um acordo negociado, o Exército se firma como uma instituição fiadora da ordem. Nesse ano, a campanha do marechal Hermes da Fonseca relança em palanque a defesa do soldo cidadão, salvador da pátria. Uma vez eleito, o marechal não altera em muito – ou melhor, não altera em nada – o quadro republicano. Em 1915, uma revolta de sargentos do Rio de Janeiro indica que o descontentamento havia alcançado a baixa oficialidade. Na década seguinte, outros levantes revelam novas insatisfações. O movimento dos 18 do Forte de Copacabana, de 1922, foi um deles. A revolta origina-se de cartas (falsas, por sinal), atribuídas a Artur Bernardes, nas quais supostamente fazia críticas severas ao Exército. O objetivo dos revoltosos não era nada modesto: depor o presidente. Dois anos mais tarde, novo levante, agora em razão das duras punições destinadas aos amotinados de Copacabana. Conhecidas como revoltas tenentistas, tais movimentos ganham ainda maior destaque com a Coluna Prestes, que, entre 1924 e 1927, cruza o país até se dispersar na Bolívia.

Talvez bem mais importante do que seus épicos desempenhos em batalhas, tenha sido o fato de esses oficiais reformadores passarem a atuar politicamente fora das vias institucionais, recolocando na ordem do dia o golpe militar como um meio de transformar a sociedade, mudança que ajuda a compreender a eclosão da Revolução de 1930. No meio civil, por sua vez, não faltam denúncias contra o sistema político da República Velha. Em 1910, a campanha eleitoral de Rui Barbosa, embora apoiada pela máquina eleitoral da oligarquia paulista, denuncia, em praças e comícios públicos, as constantes fraudes e a corrupção do sistema eleitoral. Escritores em nada conservadores, como Euclides da Cunha e Lima Barreto, alistam-se entre esses críticos à república, o mesmo ocorrendo entre intelectuais vinculados à Semana de Arte Moderna de 1922. Até nas oligarquias dominantes, como as de São Paulo, havia dissidências, conforme ficou registrado em 1926, quando da criação do Partido Democrático.

Em outras palavras, o sistema político dos anos 1920 é um caldeirão prestes a entrar em ebulição. O que falta é um estopim, e Washington Luís o fornece. Ao contrário do que era esperado para as eleições de 1930, o então presidente não indica um mineiro para sucedê-lo, mas sim seu conterrâneo Júlio Prestes. Agindo dessa maneira, o representante da oligarquia paulista acirra os ânimos dos grupos dominantes mineiros. Esses últimos conseguem selar um acordo com segmentos políticos importantes do Rio Grande do Sul e da Paraíba para lançar um candidato próprio à sucessão presidencial, marcada para 1º de março de 1930. Na costura da então denominada Aliança Liberal, os gaúchos consagram um candidato: Getúlio Vargas.

Como se previa, tendo em vista o quadro de fraude eleitoral, os aliancistas são derrotados. Além disso, a maioria dos deputados federais eleitos, que faziam parte da coligação oposicionista, não tem seus mandatos reconhecidos pelo Congresso. Para complicar ainda mais a situação, João Pessoa, um importante membro da Aliança Liberal e governador da Paraíba, é assassinado por motivos políticos. Apoiadas em setores descontentes do Exército, as oligarquias dissidentes dão início ao movimento pela deposição do presidente. Entre 3 e 24 de outubro ocorre a Revolução de 30, que, uma vez vitoriosa, sugere uma indagação: em que o novo regime será diferente do anterior?

Lista dos presidentes deste período [2]:

  • Marechal Deodoro da Fonseca (1889-1891).

  • Floriano Peixoto (1891-1894).

  • Prudentes de Morais (1894-1898).

  • Campos Salles (1898-1902).

  • Rodrigues Alves (1902-1906).

  • Afonso Pena (1906-1909).

  • Hermes da Fonseca (1910-1914).

  • Venceslau Brás (1914-1918).

  • Epitácio Pessoa (1918-1922).

  • Arthur Bernardes (1922-1926)

  • Washington Luís (1926-1930).

Veja também:

Notas:

  • [1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 175 a 179, Capítulo 26. Para a lista dos presidente, veja Nota 2.

  • [2] In: BEZERRA, Juliana . República Velha. O.C..


Fonte / Referências bibliográficas:

  • BEZERRA, Juliana. República Velha. Disponível em: <https://www.todamateria.com.br/republica-velha/>. Acesso em: 09/07/2023.

  • DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

20 junho 2023

A Revolução Russa de 1917

A Revolução Russa de 1917 foi uma série de eventos políticos na Rússia, que, após a eliminação da autocracia russa e depois do Governo Provisório (Duma), resultou no estabelecimento do poder soviético sob o controle do partido bolchevique. O resultado desse processo foi a criação da União Soviética, que durou até 1991.

No começo do século XX, a Rússia era um país de economia atrasada e dependente da agricultura, pois 80% de sua economia estava concentrada no campo (produção de gêneros agrícolas).


Rússia Czarista

Os trabalhadores rurais viviam em extrema miséria e pobreza, pagando altos impostos para manter a base do sistema czarista de Nicolau II. O czar governava a Rússia de forma absolutista, ou seja, concentrava poderes em suas mãos não abrindo espaço para a democracia. Mesmo os trabalhadores urbanos, que desfrutavam os poucos empregos da fraca indústria russa, viviam descontentes com o governo do czar.

No ano de 1905, Nicolau II mostra a cara violenta e repressiva de seu governo. No conhecido Domingo Sangrento, manda seu exército fuzilar milhares de manifestantes. Marinheiros do encouraçado Potenkim também foram reprimidos pelo czar.

Começava então a formação dos sovietes (organização de trabalhadores russos) sob a liderança de Lênin. Os bolcheviques começavam a preparar a revolução socialista na Rússia e a queda da monarquia.


A Revolução compreendeu duas fases distintas:

  • A Revolução de Fevereiro de 1917 (março de 1917, pelo calendário ocidental), que derrubou a autocracia do Czar Nicolau II da Rússia, o último Czar a governar, e procurou estabelecer em seu lugar uma república de cunho liberal.

Czar da Rússia Nicolau II

  • A Revolução de Outubro (novembro de 1917, pelo calendário ocidental), na qual o Partido Bolchevique, liderado por Vladimir Lênin, derrubou o governo provisório e impôs o governo socialista soviético.

1º presidente do Partido Bolchevique e líder da
 União Soviética Vladmir Ilitch Ulianov Lênin


O Governo Provisório e o Soviete de Petrogrado

O Governo Provisório iniciou de imediato diversas reformas liberalizantes, inclusive a abolição da corporação policial e sua substituição por uma milícia popular. Mas os líderes bolcheviques, entre os quais estava Lenin, formaram os Sovietes (Conselhos) em Petrogrado e outras cidades, estabelecendo o que a historiografia, posteriormente, registraria como ‘duplo poder’: o Governo Provisório e os Sovietes.

Lenin foi o primeiro dirigente da URRS. Liderou os bolcheviques quando estes tomaram o poder do governo provisório russo, após a Revolução de Outubro de 1917 (esta sublevação ocorreu em 6 e 7 de novembro, segundo o calendário adotado em 1918; em conformidade com o calendário juliano, adotado na Rússia naquela época, a revolução eclodiu em outubro). Lenin acreditava que a revolução provocaria rebeliões socialistas em outros países do Ocidente.

Ao expor as chamadas Teses de abril, Lenin declarou que os bolcheviques não apoiariam o Governo Provisório, e pediu a união dos soldados numa frente que viesse pôr fim à guerra imperialista (I Guerra Mundial) e iniciasse a revolução proletária, em escala internacional, ideia que seria fortalecida com a propaganda de Leon Trotski. Enquanto isso, Alexandr Kerenski buscava fortalecer a moral das tropas.

No Congresso de Sovietes de toda a Rússia, realizado em 16 de junho, foi criado um órgão central para a organização dos Sovietes: o Comitê Executivo Central dos Sovietes que organizou, em Petrogrado, uma enorme manifestação, como demonstração de força.


O aumento do poder dos Bolcheviques

Avisado que seria acusado pelo Governo de ser um agente a serviço da Alemanha, Lenin fugiu para a Finlândia. Em Petrogrado, os bolcheviques enfrentavam uma imprensa hostil e a opinião pública, que os acusava de traição ao exército e de organização de um golpe de Estado. A 20 de julho, o general Lavr Kornilov tentou implantar uma ditadura militar, através de um fracassado golpe de Estado.

Da Finlândia, Lenin começou a preparar uma rebelião armada. Havia chegado o momento em que o Soviete enfrentaria o poder. Foi Trotski, então presidente do Soviete de Petrogrado, quem encontrou a solução: depois de formar um Comitê Militar Revolucionário, convenceu Lenin de que a rebelião deveria coincidir com o II Congresso dos Sovietes, convocado para 7 de novembro, ocasião em que seria declarado que o poder estava sob o domínio dos Sovietes.

Na noite de 6 de novembro a Guarda Vermelha ocupou as principais praças da capital, invadiu o Palácio de Inverno, prendendo os ministros do Governo Provisório, mas Kerenski conseguiu escapar. No dia seguinte, Teotski anunciou, conforme o previsto, a transferência do poder aos Sovietes.


O novo governo

O poder supremo, na nova estrutura governamental, ficou reservado ao Congresso dos Sovietes de toda a Rússia. O cumprimento das decisões aprovadas no Congresso ficou a cargo do Soviete dos Comissários do Povo, primeiro Governo Operário e Camponês, que teria caráter temporário, até a convocação de uma Assembleia Constituinte. Lênin foi eleito presidente do Soviete, onde Trotski era comissário do povo e ministro das Relações Exteriores e, Stalin, das Nacionalidades.


Líder da União Soviética
Josef Stalin


Josef Stalin foi o dirigente máximo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) de 1929 a 1953. Governou por meio do terror, embora também tenha convertido a URSS em uma das principais potências mundiais.

A 15 de novembro, o Soviete ou Conselho dos Comissários do Povo estabeleceu o direito de autodeterminação dos povos da Rússia. Os bancos foram nacionalizados e o controle da produção entregue aos trabalhadores. A Assembleia Constituinte foi dissolvida pelo novo governo por representar a fase burguesa da revolução, já que fora convocada pelo Governo Provisório. Em seu lugar foi reunido o III Congresso de Sovietes de toda a Rússia. O Congresso aprovou a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado como introdução à Constituição, pela qual era criada a República Soviética Federativa Socialista da Rússia (RSFSR).


As ideias de Marx e Engels


As ideias que inspiraram os líderes da Revolução Russa basearam-se em grande parte nas obras do filósofo alemão Karl Marx (1818-1883) e de seu colaborador Friedrich Engels(1820-1895). A obra fundamental de Marx é O capital, mas uma pequena obra publicada em 1848, em conjunto com Engels, teve grande influência nos anos seguintes: trata-se de O manifesto comunista.
Nessa obra, que teria muita influência na Revolução Russa, Marx e Engels diziam que a sociedade capitalista estava dividida basicamente em duas classes sociais: a burguesia, formada pelos proprietários de fábricas, terras, bancos etc., e o proletariado, formado pelos trabalhadores em geral, sobretudo das indústrias. Eles acreditavam que, por meio de uma revolução, o poder político passaria às mãos dos trabalhadores (a ditadura do proletariado), eliminando as enormes desigualdades sociais.
Marx passou boa parte da vida em Londres escrevendo O capital, uma análise da economia capitalista, fundamental para definir as bases da futura sociedade socialista. Em 1888, cinco anos depois da morte de Karl Marx, uma cópia de O capital chegou às mãos de um jovem russo, estudante de direito, que pouco antes havia sido expulso da Universidade de Kazan devido a suas atividades revolucionárias. O nome do rapaz era Vladimir Ilitch Ulianov, e a obra de Marx o impressionou muito. Ele passaria à história com o nome de Lenin, que usava para despistar a polícia do czar (PILETTI: 2003, Pág. 113).

A guerra civil

O novo governo pôs fim à participação da Rússia na I Guerra Mundial, através do acordo de Paz de Brest-Litovsk assinado em 3 de março de 1918. O acordo provocou novas rebeliões internas que terminariam em 1920, quando o Exército Vermelho derrotou o desorganizado e impopular Exército Branco antibolchevique.

Lenin e o Partido Comunista Russo (nome dado, em 1918, à formação política integrada pelos bolcheviques do antigo POSDR) assumiram o controle do país. A 30 de dezembro de 1922, foi oficialmente constituída a União de Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). A ela se uniriam os territórios étnicos do antigo Império russo.


Significado da palavra czar

A palavra czar, que se pronuncia-se “tzar”, tem suas origens no título de césar, que era concedido aos imperadores romanos, na Idade Antiga.

Na Idade Média, o título de czar era ostentado também por soberanos búlgaros e sérvios.

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Veja também:

<Revolução Vermelha – Episódio I: Rússia – Família Te Atualizei> (Para assinantes do canal).

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Referências bibliográficas:

  • PILETTI, Nelson & Claudino. História: EJA - Ensino Fundamental - 4º Ciclo. São Paulo: Ática, 2003.

19 junho 2023

Os fazendeiros industriais

Por
DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]


“No final do século XIX, foram instaladas as primeiras indústrias em São Paulo. O dinheiro que movia o café financiou máquinas mais modernas e importou mão-de-obra especializada. Durante essa fase de transição entre os dois séculos, a cidade de São Paulo iniciou seu processo de modernização e foi o principal centro industrial do Brasil, atraindo a alta sociedade advinda do café. Em um primeiro momento, os senhores do café construíram suas casas no centro da cidade, mas a cidade não parou de crescer. Com o aumento das atividades comerciais e sociais, o centro começou a desenvolver e se tornar um pólo comercial. Buscando um novo lugar onde pudessem construir suas mansões em “paz” e longe de toda a agitação das movimentadas vias do centro de São Paulo, foi construída a Avenida Paulista” [2]... 

“… Empresas aqui instaladas nos anos 1920, data, aliás, em que São Paulo desponta como principal centro industrial, relegando o Rio de Janeiro ao segundo lugar…” (O. C.).

Um dos assuntos mais polêmicos da história brasileira diz respeito à industrialização. Rios de tinta foram gastos em vários escritos a respeito do tema e verdadeiras montanhas de estatísticas digladiam-se, de um texto a outro, com o objetivo de demonstrar diferentes hipóteses. Em um aspecto, porém, a maioria dos pesquisadores parece concordar: ao contrário da evolução ocorrida no mundo europeu, a indústria brasileira não resultou de um lento e progressivo desenvolvimento do artesanato e da pequena manufatura, mas já nasceu grande, na forma de fábricas modernas.

Paradoxalmente, tal situação foi possível graças ao atraso econômico nacional. Na década de 1880, quando aqui começaram a ser implantadas as primeiras indústrias, a maquinaria fabril europeia já contava com cem anos de desenvolvimento técnico, e foi justamente com essa tecnologia importada que teve início nossa industrialização. Contudo, a aparente vantagem apresentava um gravíssimo inconveniente que deixa traços até os nossos dias: ela não estimulou o desenvolvimento de tecnologia industrial própria, muito necessária quando se quer construir máquinas que fazem máquinas ou simplesmente ajustar a produtividade aos padrões internacionais. Dessa maneira, fortes laços de dependência internacional foram gerados, seja pelo fato de as novas técnicas serem caríssimas, seja por serem alvo de monopólios zelosamente protegidos pelas grandes indústrias estrangeiras.

Além disso, a importação de tecnologia serviu de desestímulo ao desenvolvimento educacional. Aliás, não deixa de ser interessante observar que, no Brasil, o inventor, o gênio que da garagem da casa revoluciona o mundo, verdadeiro herói da era industrial, nunca foi um personagem socialmente muito importante. Não que faltasse gente talentosa e criativa, mas sim – vale repetir – pelo fato de aqui, ao contrário do mundo europeu, a industrialização não ter sido resultado de uma lenta incorporação de avanços técnicos à pequena produção manufatureira.

Qual seria então a proveniência dos capitais iniciais das indústrias brasileiras? Quem foram os nossos primeiros empresários? Ora, mais uma vez cabe sublinhar que várias pesquisas convergem para um mesmo ponto: nossa primeira industrialização, 1880-1930, grosso modo, originou-se da importação de máquinas modernas custeadas pelo mundo agrário tradicional. Quanto a isso, o caso paulista, região que se tornaria principal polo industrial do país, é exemplar.

Ao contrário do que se imagina, São Paulo nem sempre foi a região brasileira mais industrializada; até o início do século XX, a região ocupava uma situação relativamente modesta. E em 1907, por exemplo, o censo industrial indicou que a capital federal tinha duas vezes mais fábricas do que os vizinhos do Sul; Minas Gerais, por sua vez, vinha nessa listagem em segundo lugar, cabendo a São Paulo uma modesta terceira colocação, seguida então pelo Rio Grande do Sul. Em relação ao capital investido e à produção por fábrica ou ao número de operários por estabelecimento, a situação não era melhor: os paulistas perdiam em todos esses itens para os pernambucanos, que, por sua vez, ocupavam o sexto lugar na listagem de número total de indústrias brasileiras. Ainda com base nos dados de 1907, é bastante esclarecedor o fato de praticamente 85% da produção industrial nacional estar localizada fora das fronteiras paulistas. Ao contrário do que sugere o divulgado mito de “locomotiva do Brasil”, os habitantes da antiga terra dos bandeirantes não lideraram nosso primeiro processo de industrialização.

Tal qual ocorria em vários lugares, os fazendeiros paulistas investiam os recursos extras da lavoura de exportação na compra de máquinas. Muitos viam nesse investimento uma forma de complementar as atividades agrícolas. Desse modo, não era raro fazendeiros de algodão inaugurarem fábricas de fiação e tecelagem, pecuaristas fundarem fabriquetas de couro e cafeicultores voltarem-se para a produção de vagões e de máquinas que beneficiavam café. Havia ainda aqueles simplesmente interessados em diversificar os investimentos, ampliando assim as fontes de renda familiar; homens como Antônio da Silva Prado e Antônio Álvares Penteado que, entre fins do século XIX e início do XX, foram prósperos fazendeiros de café e, ao mesmo tempo, fundaram vidraria e fábrica de aniagem.

O que, porém, teria levado São Paulo a se tornar o principal polo industrial e quando isso ocorreu? Ora, uma vez mais adentramos em um campo de infindáveis polêmicas, cabendo aqui sintetizar a explicação mais recorrente. Primeiramente, cabe ressaltar que os paulistas possuíam a mais próspera atividade agrícola do país. Desde a década de 1830, o café havia se tornado o principal item da economia brasileira. No ano de 1900, o produto rendia, em exportações, dez vezes mais do que o açúcar, vinte vezes mais do que o algodão e quase trinta vezes mais do que o tabaco; somente a borracha – que estava vivendo seu período áureo – podia rivalizar com o café; mesmo assim, o fruto do extrativismo nos seringais da Amazônia contribuía, no quadro das exportações, com um quarto do que representava a matéria-prima da popular bebida matinal. 

Alimentada por férteis terras e por estradas de ferro que viabilizavam a expansão da fronteira agrícola em regiões bastante afastadas do litoral, a lavoura cafeeira paulista, entre 1886 e 1910, aumentou sua participação na produção nacional de 42% para 70%, deixando muito para trás seus vizinhos fluminenses. Números ainda mais impressionantes quando recordamos que, na última data mencionada, o Brasil controlava cerca de 75% da produção mundial, o que significava dizer que os paulistas produziam aproximadamente metade do café comercializado no mundo; produção que, em 1906, implicava a exportação de algo não muito distante de um bilhão de quilos!

Ora, tal situação garantia o ingresso de polpudas rendas para a economia local, ampliando o mercado consumidor e as fontes de renda para o investimento fabril. Além de contar com recursos abundantes que podiam ser canalizados para a indústria, os paulistas dispunham ainda de outras vantagens que os capacitavam a superar industrialmente as demais regiões brasileiras. Uma delas foi a de ter recebido milhões de imigrantes europeus, que competiam com os ex-escravos no mercado de trabalho, fazendo com que, até aproximadamente a década de 1920, os salários localmente pagos fossem inferiores aos despendidos por empresários cariocas e gaúchos; havendo casos, como o das indústrias de vestuário e de calçado, em que tais vencimentos eram até inferiores à média nacional, incluindo aí as regiões nordestinas atrasadas.

Transformações políticas também contribuíram para a prosperidade econômica paulista. Conforme mencionamos em outro capítulo, durante o Império, a província de São Paulo contribuía muito mais em impostos do que recebia em benefícios e investimentos públicos. Ora, a República, ao inaugurar o federalismo fiscal, em muito ampliou as verbas orçamentárias de prefeituras e do governo estadual, dando origem localmente ao que denominamos anteriormente de belle époque: um período de grandes obras públicas e de ampliação dos espaços urbanos. Obras e reformas que geravam milhares de empregos, incentivando o crescimento das cidades – sendo o exemplo mais impressionante o da capital paulistana, cuja população, entre 1872 e 1914, aumentou de 23 mil para 400 mil habitantes – e multiplicando o mercado consumidor de produtos industriais, como o de calçados, vestuário, bebidas, etc.

Por outro lado, São Paulo soube reagir com criatividade às crises econômicas. Como ocorria desde o período colonial, a expansão local da lavoura de exportação acabou gerando problemas de superprodução. As curiosamente denominadas safras-monstros levavam a drásticas variações de preço do café. Assim, ao compararmos os anos de 1890 e 1906, constataremos que, em libras esterlinas – moeda de referência da época –, houve uma queda pela metade no preço internacional do produto-rei da economia brasileira. Os paulistas, após amargarem por mais de uma década, reagiram à crise promovendo, em 1906, o que ficou conhecido como Convênio de Taubaté, reunião dos produtores brasileiros com o objetivo de lançar uma política de valorização do café. Tal política consistia na compra, estocagem e até destruição da mercadoria, com o objetivo de manter ou recuperar seu preço internacional. Embora produtores mineiros e fluminenses tenham sido reticentes a medidas tão radicais, elas, com o apoio do governo federal e de empréstimos internacionais, acabaram sendo implantadas. Contrariando as expectativas liberais da época, a valorização obteve êxito: entre 1907 e 1915, o preço internacional do café praticamente dobrou. O alívio foi tal que as safras-monstros de 1917 e 1921 acabaram – com sucesso, diga-se de passagem – sendo enfrentadas da mesma maneira. Em 1925, a defesa do café torna-se permanente. Essa política, se não salvou a economia paulista da crise de 1929, pelo menos em muito diminuiu seus efeitos, preparando, já no início da década de 1930, uma retomada local do crescimento econômico.

A prosperidade da economia paulista, por sua vez, abriu caminho para que muitos imigrantes ascendessem socialmente. No entanto, raros foram os casos como o do sapateiro português Antônio Pereira Ignacio, fundador das fábricas Votorantim, que, começando a trabalhar aos 11 anos de idade, criou um império. Na maioria das vezes, os imigrantes empresários já chegavam com algum recurso ou eram originários da classe média e traziam consigo um importante capital: o capital cultural, ou seja, vinham qualificados do ponto de vista da educação formal. Esses foram os casos de Alexandre Siciliano, Antônio de Camillis ou, para citar o mais famoso deles, Francisco Matarazzo. Além disso, tais imigrantes nem sempre se dedicavam imediatamente à atividade industrial. Muitos atuaram primeiramente na agricultura de exportação ou no comércio interno de alimentos, reproduzindo assim uma trajetória social típica dos fazendeiros industriais.

Porém, durante a belle époque, a expansão econômica paulista esteve longe de ser uma marcha triunfal rumo à modernidade. Havia aspectos nefastos na política de valorização. Um deles dizia respeito ao estímulo para que surgissem novos países produtores. O aumento da oferta fazia com que os mercados internacionais ficassem cada vez mais exigentes em relação ao produto, levando à progressiva marginalização das regiões com cafezais antigos. Por outro lado, a estocagem era um recurso que não podia ser utilizado indefinidamente, o que levava, em alguns períodos, à destruição do produto, conforme observou Blaise Cendrars: “De 1929 a 1934, durante os anos cruciais da crise financeira mundial o IDC [Instituto de Defesa do Café] destruiu 36 milhões de sacos de café. Cargas de café foram atiradas ao mar. Queimou-se café nas caldeiras das locomotivas. Em Santos, uma montanha de sacos de café empilhados uns sobre os outros ardeu dia e noite durante todos os anos da crise e talvez até a declaração de guerra. Digamos uns 50 milhões de sacos... Era um absurdo”.

Além de “queimar” recursos que poderiam ter sido utilizados nas indústrias, a defesa do café tinha ainda outros efeitos negativos. Ela criava fortíssimas pressões pela desvalorização da moeda da época, mil-réis, encarecendo a importação de maquinário industrial. Pressões, aliás, nada desprezíveis, pois, ao receberem o pagamento pela venda do café em libras esterlinas, os fazendeiros lucravam muito com a desvalorização da moeda nacional. Tendo em vista essa relação, ao mesmo tempo complementar e contraditória, entre lavoura exportadora e indústria, compreende-se por que não houve uma veloz revolução industrial paulista, mas sim um processo de transformação econômica lento e cheio de percalços. A mesma afirmação é, com certeza, válida para o resto do Brasil, que somente em meados da década de 1940 assistiu à indústria superar a agropecuária no conjunto das riquezas nacionais.

Outro aspecto importante para explicar nossa industrialização tardia diz respeito à oposição intelectual feita a ela. Não foram poucos os que a encaravam como uma “criação artificial” da sociedade brasileira. Posição partilhada por conservadores, opositores a todo e qualquer tipo de indústria e à própria vida urbana a ela associada, assim como por liberais ortodoxos, que defendiam o emprego dos capitais nacionais na agricultura, deixando a importação ou a produção de artigos industriais a cargo de companhias estrangeiras.

Uma vez que essa posição encontrava numerosos adeptos entre políticos e ministros, não é de se estranhar a boa acolhida dada ao capital internacional. Embora em uma escala bem menor do que a registrada na década de 1950, esses investimentos atingiram, durante a República Velha, numerosos e diversificados setores de nossa economia. Entre estes, incluíam-se ramos tradicionais, como os das estradas de ferro e de bondes, ou ramos vinculados à energia, como os investimentos da Light e da General Electric, ou à indústria farmacêutica, com os investimentos da Rhodia e da Bayer, ou ainda atividades vinculadas à fabricação de carros e pneus, com a instalação da fábrica da Ford e da Goodyear. Empresas aqui instaladas nos anos 1920, data, aliás, em que São Paulo desponta como principal centro industrial, relegando o Rio de Janeiro ao segundo lugar.


Veja também:


Notas:

  • [1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 170 a 174, Capítulo 25.

  • [2Imagem e texto (“…”) disponíveis em: <A avenida Paulista>. Acesso em: 19/06/2023.


Fonte / Referência bibliográfica: 

  • DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.