Por DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]
O plantio e o trato da cana-de-açúcar significavam a possibilidade de participar ativamente na estrutura de poder colonial. Como era, porém, a vida social dos primeiros senhores de engenho? De que era feito seu cotidiano e que tipo de problemas enfrentavam? Se aceitarmos a opinião dos letrados da época, podemos afirmar que, apesar da aparência em contrário, mesmo os fazendeiros ricos alimentavam-se mal, comendo em excesso dura carne-seca. Só uma vez ou outra degustavam frutos. Mais raramente ainda legumes. A falta de boa comida era compensada pelos excessos de doces: goiabadas, marmeladas, doces de caju e mel de engenho e cocadas. Na passagem de um padre, abriam-se, com esforço, as despensas e matavam-se os animais de criação: patos, leitões e cabritos. Em Pernambuco, conta-nos um cronista, “escravos pescadores” eram, nessas ocasiões, encarregados de buscar “todo o gênero de pescado e marisco”. A abundância registrada em alguns engenhos não era a norma. Os que se davam ao luxo de mandar vir alimentos do Reino consumiam víveres malconservados. O senhor de engenho sofria com doenças do estômago, atribuídas pelos doutores da época não à precária alimentação, mas aos “maus ares” do trópico. A saúva, as enchentes ou a seca dificultavam ainda mais o suprimento de alimentos frescos. A sífilis marcava-lhes o corpo, deixando-o vincado com as suas chagas.
A maior parte dos engenhos aninhava-se na mata, não muito distante dos centros portuários, o que se explica pela maior fertilidade dos terrenos e pela abundância de lenha, necessária às fornalhas famintas, alimentadas por um trabalho, que às vezes ocupava o dia e a noite, de oito a nove meses, normalmente de julho/agosto de um ano a abril/maio do seguinte. E não deviam se afastar muito do litoral, sob pena de, sendo único o preço dos gêneros de exportação, não poder competir com os engenhos vizinhos aos portos, cujo produto não se amesquinhava com as despesas de transporte. Em Pernambuco, instalavam-se ao longo dos rios que se concentram na vertente do Atlântico do planalto da Borborema, na Zona da Mata, em que predominam arredondados morros e colinas. O corolário da terra era a água. Se a irrigação era desnecessária graças ao rico massapé, tanto o gado quanto as pessoas precisavam de água doce. Usavam-na também nos engenhos e trapiches, nas prensas e moinhos. Não à toa, a maior parte dos engenhos localizava-se à beira de rios como o Paraguaçu, o Jaguaribe e o Sergipe, na Bahia, e o Beberibe, o Jaboatão, o Una e o Serinhaém, em Pernambuco.
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No interior das verdadeiras fortalezas de adobe e taipa, que eram as casas-grandes, vigia a simplicidade e até o desconforto. O mobiliário era pobre e escasso: camas, baús, móveis e cabides. Todas peças toscas, feitas pelo carpinteiro do engenho. Alguns preferiam a doçura das redes, solução refrescante nas noites quentes. Varandas entaladas no meio da fachada principal e pequenos alpendres davam ao senhor de engenho a vista sobre sua terra, cana e gente. Pavimentos térreos, verdadeiros depósitos fechados, iluminados por pequenas frestas nas paredes, permitiam-lhe se defender melhor do inimigo. Não faltavam, contudo, observadores de época capazes de entusiasmar-se com a imponência do conjunto: engenho de água muito adornado de edifícios, engenho com grandes edifícios e uma igreja, engenho ornado de edifícios com uma ermida mui concertada e formosos canaviais, diria o cronista e senhor de engenho português Gabriel Soares de Sousa, descrevendo-os em 1587. À rigidez da casa opunha-se, em dias de festa, o exagero das vestimentas: “vestem-se, e as mulheres e os filhos de toda a sorte de veludos, damascos e outras sedas, e nisso tem muito excesso [...] os guiões e selas dos cavalos eram das mesmas sedas que iam vestidos”, comentava um enlevado Cardim, na fase de expansão canavieira. Os casamentos festejavam-se, segundo ele, com banquetes, touradas, jogos de canas e argolinhas e vinho de Portugal. Muitos batizavam seus engenhos com o nome de santos protetores: São Francisco, São Cosme e Damião, Santo Antônio. Outros tinham nomes africanos como Maçangana. Outros ainda lhes davam nomes de frutas e árvores: Pau-de-Sangue, Cajueiro-de-Baixo, Jenipapo.
No centro de sua família, o senhor de engenho devia irradiar autoridade, respeito e ação. Sob seu comando dobravam-se filhos, parentes pobres, irmãos, bastardos, afilhados, agregados e escravos. Uma esposa, às vezes bem mais jovem, movia-se a sua sombra. Ela vivia para gerar filhos, desenvolvendo também uma atividade doméstica – costura, doçaria, bordados – alternada com práticas de devoção piedosa. Na ausência do senhor, contudo, assumia as responsabilidades de trabalho com vigor igual ao do marido. Sua família era a formulação exterior de uma sociedade, mas não o domínio do prazer sexual. A possibilidade de se servirem de escravas criou no mundo dos senhores uma divisão racial do sexo. A esposa branca era a dona de casa, a mãe dos filhos. A indígena, e depois a negra e a mulata, o território do prazer.
Disputas pelo acesso à terra também marcaram a ocupação das terras açucareiras e não faltavam os que “infiltravam-se manhosa e furtivamente” – no entender de um observador, em 1635 – em terras virgens, na esperança de enriquecer graças à instalação de engenhos. O engenho de açúcar correspondia a uma estrutura extremamente complexa. Estrutura, diga-se, que se expandiu no Nordeste do Brasil na sua forma clássica, ou seja, associada às grandes plantações e ao trabalho escravo, nos séculos XVI e XVII, aproximadamente. Apesar de assentada em capitais de vulto, capazes de garantir a produção em larga escala, a empresa do açúcar contava igualmente com pequenos empreendedores que abasteciam o engenho com suas canas. Um relatório holandês de 1640 informa que somente 40% dos engenhos de Pernambuco moíam canas próprias, e os demais dependiam da matéria-prima fornecida por tais lavradores.
A empresa do açúcar não envolvia só senhores e escravos. Ela abrigava um grupo diversificado de trabalhadores especializados e agregados, que orbitavam em suas franjas, prestando serviços ao senhor de terras. Eram mestres de açúcar, purgadores, caixeiros, calafates, caldeireiros, carpinteiros, pedreiros, barqueiros, entre outros. A eles juntavam-se outros grupos a animar a vida econômica e social das áreas litorâneas: mercadores, roceiros, artesãos, lavradores de roças de subsistência e até mesmo desocupados e moradores de favor compunham uma complexa fragmentação de pequenos ou grandes proprietários. O número de escravos que possuíam (de apenas um a dezenas) permite inferir a diversidade de origens sociais e de situações econômicas. No século XVIII, com o declínio da atividade e o aumento das alforrias, alguns libertos tornaram-se, também, proprietários de partidos de cana.
No que exatamente consistia o engenho? Em outras coisas mais além das gigantescas rodas, movidas a água ou a tração animal, com que são representados nas gravuras dos viajantes. A preocupação com a técnica, por exemplo, era fundamental. A fase agrícola não exigia maiores investimentos pela excelência das terras nordestinas – o massapé –, evitando-se até o uso de arado e adubos. Uma vez plantada, a cana do tipo crioula é colhida após um ano e meio. A colheita se fazia rudimentarmente, com facão e foice. Respeitava-se, todavia, segundo conta o bandeirante João Peixoto Viegas, as “luas próprias”. A força da moenda determinava a produtividade na extração do caldo. Para fazê-la girar, água, bois e cavalos alternavam-se na preferência dos senhores de engenho. Herdadas dos mouros, as rodas d’água chegaram ao Brasil pela mão de habilidosos artesãos. Sempre na vertical, tinha o diâmetro de aproximadamente sete metros. Acoplada ao mesmo eixo da roda d’água havia uma outra roda menor, dentada, chamada rodete, que transmitia o movimento a uma roda maior, esta horizontal e com o mesmo diâmetro da roda d’água, que se chamava bolandeira. O eixo da bolandeira, revestido de um cilindro dentado e reforçado com aros de ferro, transmitia o movimento a dois outros cilindros paralelos, também dentados e reforçados. Era entre eles que se passava a cana.
O cozimento do caldo extraído na moenda era realizado em tachos de cobre pousados sobre um fogo de lenha. O calor no interior das casas de caldeira era vulcânico. Por isso escolhiam-se para esta tarefa escravos fortes e robustos: eram os caldeireiros e tacheiros. A cota diária dos primeiros era de processar três caldeiras e meio de caldos; a dos últimos, a quantidade necessária para preencher, ao fim da jornada de trabalho, de quatro a cinco formas de melado. Muito valorizado era o mestre de açúcar, cujo mister era “dar ponto às meladuras” ou “achar o pulso aos açúcares”. O cronista Fernão Cardim, em 1583, sobre ele escreveu: “tem necessidade cada engenho de feitor, carpinteiro, mestre de açúcar com outros oficiais que servem de o purificar; os mestres do açúcar são os senhores de engenhos, porque em sua mão está o rendimento e ter o engenho fama, pelo que são tratados com muitos mimos, e os senhores lhes dão mesa e cem mil-réis e outros mais, cada ano”. Muitos deles foram levados para as Antilhas, por holandeses, franceses e ingleses, quando esses instalaram ali seus engenhos. A purga ou purificação consistia em acondicionar o caldo cozido em formas cônicas de barro com um furo através do qual o melado escorria durante alguns dias. Tais formas assentavam-se sobre estrados de madeira, com orifícios próprios para acomodá-las. No interior desses pães – nome dado às formas –, o açúcar se depositava de acordo com o valor comercial. Na parte superior, o branco, mais caro e fino; na inferior, o mascavo. Para a fabricação de pães de açúcar, havia olarias nos engenhos. Depois de secos, os diferentes tipos de açúcares eram embalados para comercialização. Levados em caixas por transporte fluvial ou lombo de animais e carros de boi, chegavam até os portos de embarque. Muitos engenhos possuíam ainda destilarias para a produção de aguardente utilizada no escambo de escravos e banguês para a fabricação de rapadura. Seguiam-se oficinas, estrebarias e armazéns.
Quem plantava, colhia, botava a cana para moer, acondicionava e transportava o açúcar até o mar? O escravo: de início o indígena e depois o africano. Deve-se lembrar que desde o século XV, no Sul de Portugal e posteriormente nas ilhas do Norte da África, a escravidão de negros em associação com engenhos de açúcar era comum. Intensificou-se ao longo dos séculos XVI e XVII, graças ao tráfico para o Brasil. A importação de africanos cobria a falta de mão de obra, uma vez que as epidemias e a mortalidade ligadas ao trabalho forçado, associadas à fuga de tribos inteiras para o interior, acabaram por inviabilizar o trabalho cativo dos índios. Dizia o padre Anchieta que “os portugueses não têm índios amigos que os ajudem porque os destruíram todos”. Se, por um lado, a escravidão indígena durou até o século XVIII, no planalto paulistano, absorvido pela pequena produção de trigo para consumo interno, a percentagem de escravos índios envolvidos na produção do açúcar foi, por outro lado, baixando à medida que os senhores enriqueciam e podiam importar africanos. Isso começou a acontecer, principalmente na Bahia e em Pernambuco, a partir da segunda metade do século XVI.
Nas áreas rurais, as plantações drenavam escravos sem cessar. Submetidos a senhores e administradores, os cativos tinham que se integrar a uma divisão de trabalho bastante sofisticada. Na lista do engenho baiano Freguesia, encontramos escravos exercendo as funções de oficiais da casa de caldeira, purgadores, no serviço de enxada, como trabalhadores da casa de caldeira, do serviço de moenda ou da horta, como carreiros, carapinas, pedreiros, condutores de saveiros, costureiras, bordadeiras, lavadeiras, entre outros. Tratá-los como “coisa” era natural, regra, aliás, seguida pela Igreja Católica, que os possuía às centenas em seus conventos e propriedades. O castigo físico exagerado era, contudo, condenado. Todo o cuidado que lhes era dispensado devia ser entendido como zelo pelo capital que representavam. O jesuíta Antonil advertia os senhores de engenho: “Aos feitores, de nenhuma maneira se deve consentir o dar couces, principalmente nas barrigas das mulheres que andam pejadas [ou seja, grávidas], nem dar com paus nos escravos porque na cólera não se medem os golpes, e pode ferir na cabeça um escravo de muito préstimo, que vale muito dinheiro, e perdê-lo”. Mais eficiente seria dar “algumas varadas com cipó às costas”. Rações de farinha de mandioca ou milho, coquinhos chamados aquês, feijões e hortaliças compunham o cardápio alimentar dos moradores do engenho, e, por extensão, em maior ou menor quantidade, também, dos escravos. Carne de galinha era excepcionalmente servida aos doentes. Por outro lado, a aguardente, consumida como fonte de calorias, causava graves problemas de saúde. Junto à cachaça, a maconha, à época denominada fumo de Angola ou pango e trazida clandestinamente nos navios do tráfico, era utilizada para aliviar os sofrimentos do cativeiro. As roupas, por sua vez, eram raras. Não foram poucos os cronistas e viajantes a observar que os escravos cobriam-se, geralmente, com muito pouco. A Igreja admoestava os senhores para que evitassem trazê-los “indecentemente vestidos”, como se queixava o jesuíta Jorge Benci. As mulheres vestiam saia e blusa feitas com panos de Surrate ou baeta, e os homens usavam apenas calça, permanecendo sem camisa.
Os escravos distinguiam-se em boçais – como eram chamados os recém chegados da África – e ladinos, os já aculturados e que entendiam o português. Ambos os grupos de estrangeiros opunham-se aos crioulos, aqueles nascidos no Brasil. Havia distinções entre as nações africanas e, dada a miscigenação, a cor mais clara da pele era também fator de diferenciação. Aos crioulos e mulatos reservavam-se as tarefas domésticas, artesanais e de supervisão. Aos africanos, dava-se o trabalho mais árduo. Em contrapartida, muitos recebiam em usufruto parcelas de terra onde podiam cultivar, nos fins de semana e feriados, produtos agrícolas mais tarde revendidos. Tal comércio, por pequeno que fosse, permitiu a alguns comprar a própria liberdade. Não é raro se encontrar nos registros deixados por senhores de engenho as formas de pagamento utilizadas por seus escravos por conta de sua liberdade: ouro, prata e efeitos. Estes podiam ser valores negociáveis (créditos, por exemplo) advindos desse pequeno comércio. A liberdade também podia ser obtida graças às alforrias de pia concedidas em dias de batismo, ou outras, formalizadas nos testamentos do senhor. As tensões entre os grupos de homens de cor não eram pequenas. Não poucas vezes, os crioulos e mulatos antagonizavam com os negros africanos, a ponto de pedir a seus senhores que estes lhes passassem as piores tarefas. Em 1789, por exemplo, os escravos do senhor de engenho baiano Manuel da Silva Ferreira exigiam-lhe, durante um levante: “Para seu sustento, tenha lancha de pescarias e quando quiser comer mariscos, mande seus pretos Minas”.
Como se vê, a empresa do açúcar era complexa e envolvia terras, técnicas e homens. No século XVII, ia de vento em popa. Isso tudo era alvo de grande cobiça por parte dos holandeses. Sobretudo porque, durante a Unificação Ibérica (1580–1640), encontravam-se interditados de realizar negócios no Brasil. Afinal, a luta pela independência das Províncias Unidas era uma luta contra os Felipes espanhóis, o que, automaticamente, tornava os flamengos inimigos dos portugueses. Felipe II dera ordens expressas a respeito deste particular: “Nenhuma nau, nem navio estrangeiro” poderia comerciar em portos do Reino ou das Conquistas sem licença expressa e assinada pelo rei. Se, durante anos, holandeses comerciaram em nosso litoral, alguns deles tendo se tornado até senhores de engenhos – é o caso de Erasmo Schetz, que comprou em 1540, de Martim Afonso de Souza, um engenho em São Vicente –, agora viam a possibilidade de tomar conta da empresa do açúcar como um todo. E isso sem ter que pagar tarifas ou licenças à Coroa portuguesa (ou espanhola, a partir de 1580) e passando, além do mais, a controlar o refino e o comércio colonial do produto. A política restritiva da Coroa espanhola estimulava, portanto, uma reação, cristalizada na invasão de Olinda e Recife entre fevereiro e março de 1630. Começava aí uma contenda bélica entre duas potências europeias que eram também potências coloniais. A vantagem, segundo o relatório de um funcionário do Brasil holandês, é que não existia no Novo Mundo região mais fácil para conquistar do que a América portuguesa, bastando para isso ocupar dois ou três portos; na América espanhola seria indispensável ocupar extensas áreas.
Entre 1630 e 1632, os flamengos ficaram à mercê da guerra lenta: uma guerra feita de emboscadas e assaltos, levados a termo por esquadrões compostos por negros, índios e soldados da terra, que os mantinham nas praças fortes do litoral, mas que deixavam os engenhos e a produção de açúcar fora de seu alcance. Em 1635, a ajuda na forma de uma armada de socorro enviada pela Coroa foi desbaratada. Caiu a fortaleza de Nazaré, no cabo Santo Agostinho, e rendeu-se o arraial de Bom Jesus. Sobrou apenas uma pequena resistência em Porto Calvo, reunindo as colunas do índio Felipe Camarão e do negro Henrique Dias sob o comando do napolitano Bagnuolo. Soldado experiente, Bagnuolo mostrou-se sempre pessimista sobre o papel dos ataques volantes, chegando a queixar-se a Felipe IV: “não defender as praças e retirar-se para os matos é contra a reputação das armas de Vossa Majestade”. Temia ainda a precária ação dos soldados recrutados na Paraíba e em Pernambuco, que, uma vez tendo recebido o soldo, desapareciam nos matos. Previa, assim, o desfecho que teria essa primeira fase das guerras do açúcar. Enfraquecida pela Guerra de Trinta Anos (1618-48), que travava contra os protestantes, a Espanha, por meio do protegido de Felipe IV, o conde duque de Olivares enviou para a colônia minguados reforços. Lisboa pouco podia interferir, fazendo-se a resistência à custa e nas costas dos luso-brasileiros. Um mercenário inglês, Cuthbert Pudsey, assim resumiu a primeira fase da ocupação: “no começo, esta guerra no mato era algo estranho para nossos homens, devido às emboscadas que o inimigo propositadamente nos armava nas matas, invenção assassina que nos matava muitos soldados [...] tendo pago um alto preço, reforçamos nossas companhias com espingardas, tornando nossos homens peritos no uso delas, de modo que em breve tempo nos podemos vingar do inimigo, dispondo ademais de negros que conheciam bem o interior e que guiavam nossos passos”.
Preocupados em consolidar o domínio da terra e reconstruir a economia, os dirigentes da Companhia das Índias Ocidentais enviam para cá João Maurício, conde de Nassau-Siegen, com o título de governador-geral do Brasil. Ele chegou a Recife a 23 de janeiro de 1637, apressando-se em esmagar os últimos focos de resistência. Nassau veio com uma verdadeira corte, onde conviviam pintores como Franz Post e Albert Eckhout e sábios como George Markgraf e Wilhem Piso. Empenhou-se em transformar a vila, mandando construir dois palácios: o de Vrijburg, para a sede do governo, e o outro, o de Boa Vista, para sua residência. Entre os dois, ergueu a cidade nova de Maurícia, adornada com um jardim botânico e um museu, à época denominado gabinete de curiosidades. No Recife, a pequena aglomeração de 250 casas passou para aproximadamente 2 mil; aos antigos moradores misturaram-se os recém-chegados holandeses, comerciantes franceses, escoceses, dinamarqueses e ingleses que ali se estabeleceram. Na Paraíba, segundo o cronista holandês Gaspar Barléu, Nassau foi saudado por uma comitiva tapuia que lhe ofertou arcos, flechas e penas de ema, em sinal de paz e cortesia. Retribuiu-lhes com vestimentas de linho, camisas de mulher, facas, miçanga e anzóis. Mas, se as coisas pareciam ir bem com os indígenas, não o foram com os colonos. Dos engenhos existentes nas capitanias de Itamaracá, Paraíba e Rio Grande do Norte, quase a metade foi abandonada pelos proprietários, confiscada ou vendida pelo governo holandês entre 1637 e 1638. Os vazios criados pelo abandono dos engenhos foram preenchidos por holandeses, judeus e luso-brasileiros, graças ao financiamento providenciado pela Companhia. Criou-se, assim, um grupo de novos proprietários interessados no sucesso da empreitada flamenga. E entre os senhores que preferiram abandonar suas terras, os chamados retirados de Pernambuco, a maioria instalou-se entre a Bahia e o Rio de Janeiro, arrendando engenhos e dedicando-se às atividades agrícolas. Outros optaram por casar-se dentro de famílias abastadas, ingressando na burocracia ou na carreira militar. Houve, também, quem vivesse do aluguel dos seus muitos escravos, levados consigo na fuga.
Nuvens sombrias na economia anunciavam, contudo, uma mudança. O colapso do preço do açúcar na bolsa de mercadorias de Amsterdã entre 1642 e 1644 destruiu o otimismo que Nassau encorajara em sua verdejante Maurícia. Enquanto o recém-instalado governador-geral incentivava o financiamento e a melhoria dos engenhos, estimulando, entre outros aspectos, a implementação de uma política de livre comércio na qual a Companhia ficava restrita ao monopólio do pau-brasil, de escravos e de munição, na Europa, o açúcar se desvalorizava. Endividados com a compra de escravos, ferramentas e cobres, os senhores de engenho começaram a atrasar os pagamentos à Companhia. Na Metrópole, em resposta, comerciantes passaram a exigir de seus representantes e comissários importantes somas em pagamento do que lhes fora fornecido, provocando escassez de numerário. Para satisfazer o comércio da Metrópole, os negociantes recifenses passaram, por sua vez, a exigir satisfação dos mercadores do interior, que, por seu turno, executaram seus devedores luso-brasileiros. Com essa infernal cadeia de mazelas, seguiu-se a bancarrota. Em 1642, com Nassau ainda no comando, começaram a chover notícias sobre a ruína de comerciantes do Recife, ruína que empurrara para a falência grandes mercadores flamengos. O preço dos imóveis começou a cair, seguido da contração da venda de escravos e do tráfico marítimo. Para culminar, as ações da Companhia despencaram.
No plano político, outra cadeia, esta de fatos, ajudaria a precipitar a restauração de Pernambuco. Não nos esqueçamos de que, em 1640, d. João IV assumira o trono e que, com a perda dos territórios no Oriente, o Brasil ganhava importância. Enquanto isso, na Holanda, insatisfeitos com as despesas e prejuízos, os diretores da Companhia exigiram o retorno de Nassau. Ele regressou em 1644. No mesmo ano, uma conjura de pernambucanos foi abortada, mas nem por isso cessou a agitação contra o invasor. Forças luso-brasileiras fustigavam as fronteiras do território ocupado pelos holandeses, encorajando pequenas revoltas e guerrilhas. No ano seguinte, o Maranhão seria abandonado, e no Ceará a guarnição flamenga acabaria massacrada por índios bravios. Em 1645, rebentava a revolta de Pernambuco, que ganhou o conjunto dos territórios outrora ocupados pelos holandeses. As tropas de Hendrick van Haus foram batidas e os flamengos voltaram a refugiar-se nos portos.
A operação montada para apoiar os revoltosos foi comandada por um rico agricultor mulato, inicialmente aliado dos holandeses, mas desde 1644 bandeado para o lado luso-brasileiro. Tratava-se de João Fernandes Vieira. Essa revolta foi a de devedores que tinham dois objetivos: alegando sua participação na luta contra os flamengos, pretendiam livrar-se das dívidas que tinham acumulado e garantir a posse de engenhos cujos antigos senhores tinham se “retirado”. Engenhosos, não? Tropas regulares sob o comando do governador da Bahia, Antônio Telles da Silva, invadiram os territórios antes ocupados, somando aos seus os exércitos comandados por Felipe Camarão e Henrique Dias. Encontraram pela frente soldados enfraquecidos pela partida de seu chefe militar, Nassau, e desestimulados pelo atraso no pagamento de soldos. Multiplicavam-se as deserções. A guerra foi declarada em 1646. Duas batalhas campais, em Guararapes, selaram, entre 1648 e 1649, o destino dos holandeses.
Portugal resolveu intervir num momento em que os holandeses confrontavam a Inglaterra de Cromwell. Uma guerra iniciada em 1652 absorveria todas as forças, armas e esquadras das Províncias Unidas. Lá, não apenas discordâncias haviam enfraquecido a Companhia como um grupo de burgueses interessados na via pacífica ocupava o governo. E percebera-se, com rapidez, que o Brasil ocupado era pior negócio do que enquanto colônia portuguesa. Através do comércio com Portugal, muito ainda se poderia lucrar em terras de açúcar, pau-brasil e outros produtos. A Companhia do Brasil, recém-criada em Lisboa, armou uma esquadra que zarpou para o Recife. Em 26 de janeiro de 1654, pressionados por terra e mar, renderam-se os poucos pontos que os holandeses ainda mantinham no litoral. Em poucos dias, recuperou-se o Recife.
A resolução do conflito passou por interferência inglesa. Recém-reconduzido ao trono, em 1660, Carlos II Stuart casou-se com Catarina de Bragança. O tratado de paz firmado com a Holanda, em Breda, deixava a totalidade do Brasil a Portugal, mediante largas concessões no Oriente, uma importante indenização e a possibilidade para os flamengos de seguir fazendo comércio nas costas brasileiras. As Províncias Unidas, por sua vez, renunciavam a qualquer ambição territorial. As guerras do açúcar tiveram sérias consequências para o Nordeste. Em curto prazo, deixaram ruínas. Colheitas destruídas, gado capturado, escravos aquilombados. Foram necessárias dezenas de anos para que Pernambuco voltasse a integrar a empresa do açúcar. Em longo prazo, comerciantes judeus e agricultores holandeses transferiram para as Antilhas o conhecimento de técnicas agrícolas aprendidas no Brasil. A tendência foi acompanhada por franceses e ingleses, e a presença de um maior número de produtores no mercado mundial empurrou a economia da Colônia para uma grande crise, da qual só sairia com a descoberta de ouro em Minas Gerais.
Veja também:
- Sobre o papel da Igreja no período colonial, veja o capítulo 4 do meu trabalho: Fundamentalismo Protestante...
Fonte / Referência bibliográfica:
DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.
Notas:
[1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010,pp., 33 a 41.
[2] Em geral “Os engenhos coloniais possuíam uma grande estrutura, dividida em:
- Plantações: além da cana-de-açúcar, haviam plantações (verduras, legumes e frutas) de outros produtos;
- Casa Grande: era o local em que concentrava o poder dos engenhos…
- Senzala: eram locais com péssimas condições que tinham como objetivo, abrigar pessoas escravizadas;
- Capela: construída para representar a crença dos moradores do engenho, principalmente, dos portugueses. Local em que as missas e demais celebrações religiosas eram realizadas;
- Casas de Trabalhadores Livres: locais em que os trabalhadores livres habitavam;
- Curral: local que abrigava os animais;
- Canavial: local em que era cultivada a cana-de-açúcar;
- Moenda: local em que a cana-de-açúcar era moída pela tração animal, força humana ou moinho;
- Casa das Caldeiras: local em que o produto era aquecido;
- Casa das Fornalhas: local em que a cana era aquecida e transformada em melaço;
- Casa de Purgar: local responsável por refinar o produto, o transformando em açúcar”. Texto e Imagem disponíveis em: <Engenho de Açúcar no Brasil Colonial >. Acesso em 22/09/2022.