Continuando
nossas
reflexões sobre
o empirismo
e fé cristã,
depois
de destacarmos os
filósofos
John
Locke e George Berkeley,
veremos
agora um
pouco sobre
Hume.
Dos
filósofos empiristas listados por Brown (Nota 2), este é o que
ocupa maior espaço em seu livro.
David Hume(1711-1776) [2] foi uma mistura estranha, Um contemporâneo pensava que parecia mais um
"vereador comedor de carne de tartaruga do que um filósofo
refinado". Num obituário que escreveu para si mesmo,
descreveu-se como "homem de disposição branda, bem-humorado,
capaz de formar
afetos, mas
pouco suscetível de inimizade, e
de grande
moderação em todas as minhas
paixões. Até mesmo meu amor à fama literária, minha paixão
dominante, nunca
chegou a amargar
minha disposição, a despeito das minhas frequentes
decepções". Sem
dúvida,
ele tinha condições melhores para julgar do que nós no dia
de
hoje.
Nasceu
em Edimburgo e entrou na universidade daquela cidade com doze anos de
idade,
e deixou-a dois ou três anos mais tarde. Desfrutou de uma carreira
diversificada, que
incluiu
a tutela de um lunático, a posição de secretário de um general, e
o cargo de bibliotecário
em Edimburgo. Por algum tempo, fez parte da embaixada britânica na
França, e
ficou
sendo figura familiar no cenário parisiense. Ao voltar para Londres,
trouxe consigo Jean-Jacques
Rousseau, que lhe recompensou com acusações de que estava
pretendendo
matá-lo.
Durante
sua vida, Hume foi mais estimado como historiador do que como
filósofo Segundo
Bertrand Russell, a History
of England
de Hume, em muitos volumes, era dicada a comprovar a superioridade
dos "Tories" aos "Whigs" e dos escoceses aos
ingleses.
O seu Treatise
of Human Nature
(1739-40)84 revelou-se uma grande decepção ao
autor.
Hume tinha esperado que despertaria controvérsia. Ao invés disto,
"saiu nați-morto
do prelo." Esta obra foi seguida pelas obras famosas Enquiry
concerning Human Understanding
(1751), An
Enquiry concerning the Principles of Morals
(1752), Dialogues
Concerning Natural Religion
(escrita antes de 1752, mas publicada postumamente 1779) e The
Natural History of Religion
(1757).
Talvez
a chave a Hume seja seu ceticismo. Empregava a razão até aos
limites para demonstrar
as limitações da razão. Levou adiante a teoria
representativa do conhecimento até
às últimas
consequências. Para ele, isto significava que você nem poderia
comprovar a existência
das coisas fora de si mesmo, nem sequer dentro de si mesmo. Para ele,
a "ideia
de
uma
substância... não é nada senão uma coletânea de ideias
simples, que são unidas pela
imaginação,
e que têm um nome específico atribuído a elas, mediante o qual
podemos relembrar,
ou a nós mesmos ou a outros, aquela coletânea". Percebemos os
dados dos nossos
sentidos, mas não podemos saber que há qualquer coisa além. A
ideia
do próprio-eu
humano
era especialmente elusiva. "Da minha parte, quando entro mais
intimamente naquilo
que chamo de eu
mesmo,
sempre tropeço numa ou outra percepção específica, do calor
ou
do frio, da luz ou da sombra, do amor ou do ódio, da dor ou do
prazer. Nunca posso em
qualquer
tempo apanhar a mim
mesmo
em flagrante sem uma percepção, e nunca observar qualquer coisa
senão a percepção."
Isto
talvez pareça esmagador para o leitor não-filosófico que sempre
toma por certo que
há uma
coisa que ele mesmo é e que é mais para ele do que seu corpo. Hume,
porém,
tem
em reserva coisas ainda mais explosivas. Seu maior paradoxo, que ele
mesmo reconhece
francamente que não aceitaria se não o tivesse comprovado, foi sua
negação da causalidade.
Antes
de nos reconciliarmos com esta doutrina, quantas vezes devemos
repetir a nós mesmos, que
o conceito simples de qualquer par de objetos ou ações, por mais
que
estejam relacionados entre si, nunca poderá nos dar qualquer ideia
de poder, ou de uma conexão entre si; que
esta ideia
surge de uma repetição da sua união; que
a repetição nem descobre nem causa qualquer coisa
nos objetos, mas, sim, tem influência somente sobre a mente, por
aquela transição costumária
que produz; que
esta transição costumária é, portanto, igual
do poder e à necessidade;
e são, consequentemente,
qualidades de percepções, não
de
objetos, e são sentidas
internamente pela alma, e não percebidas externamente nos corpos?
Noutras
palavras, tudo aquilo que, segundo nosso hábito, pensamos em termos
de causa e efeito é realmente uma questão de sequência. Não é
alguma coisa que acontece entre os objetos. É realmente um hábito
mental.
Hume
nunca foi pessoa de se deixar sobrecarregar com uma ansiedade pela
consistência. A própria razão de ser de muita coisa que estava
dizendo era que a pessoa simplesmente não pode ser racionalmente
consistente. Quando se voltava ao argumento cosmológico, aceitava o
conceito da causalidade imposto pelo bom senso, mas depois negava que
pudesse ter utilidade na prova racional da existência de Deus. Tinha
dúvidas, com razão, se era possível “para uma causa ser
conhecida somente pelo seu efeito”. E, conforme vimos ao discutir
Aquino, Hume indicou que não temos o direito de atribuir a uma causa
quaisquer capacidades senão aquelas que eram necessárias para
produzir o respectivo efeito. Noutras palavras, não temos o direito
de dizer que a causa ulterior de uma coisa é a mesma que a doutra
coisa. Não temos o direito de dizer que ela é a mesma que o Deus
dos cristãos. E não temos o direito de atribuir a uma causa prima
(ainda que pudesse ser comprovada tal coisa) atributos morais. Hume
estava fazendo uma consideração válida quando disse que a ideia
de uma causa prima era “inútil, porque, visto que nosso
conhecimento desta causa é derivado inteiramente do decurso da
natureza, nunca poderemos, segundo as regras do raciocínio correto,
voltar da causa com qualquer nova inferência, ou, fazendo acréscimo
ao decurso comum e experimentado da natureza, estabelecer quaisquer
princípios novos da conduta e do comportamento”. Mas, como também
já vimos, ele estava em terreno menos firme quando ridicularizava a
noção de desígnio no universo.
Hume
também era cético no que dizia respeito aos milagres. Poderíamos
ter pensado que a pessoa que negava a racionalidade da causalidade e,
desta forma, subvertia a base da lei científica, dificilmente
tivesse a presunção de invocar a lei científica como aliada. No
seu ataque clássico contra milagres na Seção X da sua Enquiry,
argumentava que os milagres contradiziam as leis da natureza, sendo,
portanto, improváveis. A crença
deve ser proporcionada pela evidência. Cem ocorrências do
acontecimento contrário criavam a pressuposição de que o caso
isolado estava dalguma forma errado. Concluiu: "O milagre é uma
violação das leis da natureza e, já que a experiência firme e
inalterável estabeleceu estas leis, a prova contra o milagre, pela
própria natureza dos fatos, é tão integral quanto qualquer
argumento tirado da experiência que é possível de imaginar.
Voltando-se
(de modo um pouco generalizado) às evidências em prol dos milagres,
Hume as pronunciou fracas. Havia uma falta geral de testemunhas
discernentes e competentes com bom-senso suficiente para não serem
logradas pela fraude. Além disto, devemos levar em conta a notória
propensidade da natureza humana para exagerar, a qual forçosamente
abala nossa confiança em muitas das histórias. Devemos perguntar,
também, por que os milagres não acontecem em nossos próprios dias.
Finalmente, devemos lembrar-nos de que todas as religiões alegam
milagres, mas nem todos eles podem ser verdadeiros. Destarte, nunca
se pode apelar a milagres como o fundamento de uma religião. Nunca
podem ser usados para estabelecer a fé. Somente aqueles que já têm
fé suficiente podem aceitá-los sem suspeitas.
Hume
ainda não tinha acabado seu ataque contra a religião. Em The
Natural History of Religion
voltou a pegar em armas para atacar o ponto de vista de que a
religião original da humanidade era um monoteísmo racional e moral.
Hume não tinha mais conhecimento da antropologia do que seus
oponentes. O que fez foi sugerir um tipo de hipótese evolucionária.
Por meio de fazer uso do seu conhecimento dos clássicos, argumentava
que os deuses e deusas do politeísmo (que eram simplesmente seres
humanos aumentados) eram progressivamente
creditados
com diferentes atributos até que finalmente fossem ajuntados
num só, e creditados com a infinidade. Lado a lado com este processo
havia um aumento
de
fanatismo. Quanto mais único e sem igual Deus ficou sendo, tanto
mais intolerantes
ficavam
Seus devotos (sejam maometanos, sejam cristãos).
Comentando
Hume de modo geral, Bertrand Russell observa que "a filosofia de
Hume seja verdadeira, seja falsa, representa a falência da
razoabilidade do século XVIII. Subverte todo o pensamento racional,
embora Hume, depois de assim ter feito, passou a
empregar
a razão para ridicularizar outros. De acordo com as premissas dele,
ele não tem o
direito de dizer que o fogo aquece, nem que a água refrigera. Talvez
se trate de uma questão da crença, mas não da razão. Para quem é
cético acerca da causalidade, não pode
haver base racional para fazer um pronunciamento acerca de coisa
alguma.
O
próprio Hume tinha seus métodos particulares para tratar das suas
dúvidas. Citando as palavras dele mesmo: “Muito felizmente
acontece que, visto que a razão é incapaz de dissipar estas nuvens,
a própria Natureza basta para este propósito, e me cura desta
melancolia e delírio filosófico, ou por meio de relaxar esta
tendência mental, ou por meio dalguma distração e viva impressão
dos meus sentidos, que oblitera
todas estas quimeras. Janto, jogo uma partida de gamão, converso, e
me divirto com meus amigos e quando depois de três ou quatro horas
de entretenimento, quero voltar a estas especulações, parecem tão
frias, forçadas e ridículas, que não sinto no meu coração o
ânimo de adentrar nelas mais profundamente.”
Sem
dúvida Hume tinha razão em dizer: “Nada há entre qualquer
objeto, considerado por si mesmo, que pode nos fornecer uma razão
para tirar uma conclusão além dele.” Mas quando (por exemplo)
temos encontrado o fogo tantas vezes, sendo que nos queima cada vez
que tocamos nele, temos o direito racional de dizer mais do que
simplesmente que a queimadura segue o contato com o fogo. O fogo
realmente causa a queimadura.
Hume
dá a impressão de ser franco ao ponto de aplacar os ânimos quando
reconhece que “A natureza sempre é forte demais para o princípio.”
No seu sentido literal é uma advertência salutar tanto aos
edificadores de sistemas quanto aos destruidores de sistemas no
sentido de não terem certeza arrogante nas suas afirmações globais
nem nas suas negações globais. Mas a observação de Hume aqui é
uma alegação implícita de que sua abordagem (por difícil que
seja) é a única que é válida. Na realidade, o ceticismo de Hume
está sujeito à suspeita em quase todos os pontos principais.
Já
sugerimos que há uma alternativa melhor à teoria representativa da
percepção, cuja conclusão lógica é o solipsismo.
Quando Hume protestou que nunca poderia observar a si mesmo, estava
pressupondo que o próprio-eu fosse um objeto que pudesse ser
observado da mesma maneira que se percebe os objetos materiais. Mas,
na realidade, denunciou seu segredo mediante o uso repetido da
palavra "eu". O fato de que ele é um sujeito consciente,
capaz da reflexão introspectiva deveria ter-lhe levado a
acautelar-se contra uma negação arbitrária do próprio-eu.
No
seu tratamento de milagres, Hume tinha razão em insistir que a
crença deva ser proporcional à evidência. O problema não é que
Hume era demasiado empírico; não era suficientemente empírico. A
primeira vista, seu ensaio é muito plausível. Mas sua técnica é
mais um caso de demolição através do blefe e da insinuação do
que um caso de argumento exato. Certamente, deve-se prestar atenção
às suas advertências contra a credulidade. Mesmo assim, devemos
guardar-nos da mesma forma contra uma aceitação acrítica da linha
de raciocínio de Hume. Não devemos deixar passar desapercebido que
Hume habitualmente evita a discussão de qualquer caso de prova,
como, por exemplo, a ressurreição de Jesus, com a qual o
cristianismo fica em pé ou cai. Ao invés disto, fala em termos
gerais, sempre aumentando a impressão de que nenhuma pessoa
inteligente com respeito-próprio poderia levar os milagres a sério.
Ao
fazer assim, Hume começou uma tendência que virtualmente se
estabeleceu como ortodoxia intelectual, e assim alivia as pessoas da
necessidade de pensar por si mesmas acerca dos milagres. Locke tinha
argumentado que os milagres fornecem evidências para a fé. Hume
inverteu o processo. Os milagres são tão prepósteros que somente
aqueles que já têm fé podem aceitá-los. Esta linha de pensamento
tem sido aceita não somente pelos agnósticos como também por
muitos alegados defensores da fé cristã
até ao dia de hoje. Mas não era o ponto de vista dos primeiros
cristãos, que estariam de acordo com Locke quanto a isto. Ao tratar
de um alegado milagre como a ressurreição de Jesus, o que é
necessário não é generalizações mas, sim, um exame concreto das
evidências históricas e das teorias alternativas. Se abordarmos o
assunto com ideias
preconcebidas (conforme Hume virtualmente confessa ao inculcar a
lição que os milagres violam as leis da natureza), então nenhuma
quantidade de evidências históricas prevalecerá. Se, porém,
estivermos dispostos a levar a sério as evidências, o resultado
será muito diferente.
Os
milagres, no entanto, não são o único item a respeito de que
muitos pensadores aceitaram as deixas de Hume. Meramente faz parte
integrante da sua aversão ao sobrenatural, da sua insistência
desafiadora de que nossos pensamentos não devessem desgarrar além
do âmbito físico. David Hume quase ficou sendo o santo padroeiro
dos filósofos agnósticos contemporâneos. Numa das suas passagens
mais violentas, que veio a ser uma das prediletas entre os empiristas
modernos, perguntou: “Quando passamos pelas bibliotecas,
persuadidos por estes princípios, quanta devastação devemos fazer?
Se tomarmos na mão qualquer volume de teologia ou de metafísica
escolástica, por exemplo, perguntemos: Contém
qualquer raciocínio abstrato a respeito da quantidade ou do número?
Não. Contém
qualquer raciocínio experimental a respeito de questões de fatos e
de existência?
Não. Entregue-o às chamas, portanto: pois nada mais pode conter
senão sofismas e ilusões.” O jovem A.J. Ayer já via nestas
palavras um esboço do programa do Positivismo Lógico… Basta dizer
por enquanto que Hume é importante, não tanto por causa de
quaisquer conclusões às quais tenha chegado, mas, sim, por causa da
sua relevância histórica como patriarca do ceticismo moderno.
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