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09 abril 2023

Emancipacionistas, abolicionistas e escravistas

Por

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]

O fim da “escravidão”, em 13 de maio de 1888 foi pacífico como sugere o cartaz ao lado? Na verdade, “… para compreendermos com mais clareza essa questão, devemos atentar para a existência de três grupos que na época a debateram: os emancipacionistas, os abolicionistas e os escravistas... [2].

Uma questão que sempre intrigou os historiadores foi a de saber os principais motivos que levaram à libertação dos escravos em 1888. A Lei Áurea teria sido obra de cativos revoltados, resultado do radicalismo abolicionista ou, ao contrário, decorreu de uma política reformista implementada pelos dirigentes do Império?

Graças ao abolicionismo, a mobilização popular tornou-se um elemento de transformação consciente da realidade. A revolta agora não era circunstancial, contra o aumento dos preços de alimentos ou contra alguma medida que prejudicava os interesses populares, mas sim efetiva, pois tinha por objetivo alterar a estrutura da sociedade. Os abolicionistas também inovaram na forma de organização. Em vez de reuniões secretas, como ocorria na maçonaria, que tanto envolveu os políticos do Império, eles formavam clubes abertos a quem quisesse participar, lançavam jornais, assim como organizavam palestras em teatros e comícios nas ruas. Representavam, por assim dizer, uma nova forma de fazer política, uma forma que fugia às rédeas dos oligarcas e poderosos rurais. Foi por esse movimento que surgiram modernas lideranças negras, como André Rebouças e José do Patrocínio, cuja atuação teve repercussão nacional. Não por acaso, os abolicionistas também foram os primeiros a defender a distribuição de terras entre os ex-escravos e a criação de escola pública para os filhos dos futuros libertos.

O resultado de várias pesquisas permite, hoje, uma visão matizada a respeito do tema, que leva em conta tanto a rebeldia dos escravos quanto a ação reformista da elite. Para compreendermos com mais clareza essa questão, devemos atentar para a existência de três grupos que na época a debateram: os emancipacionistas, partidários da extinção lenta e gradual da escravidão; os abolicionistas, que propunham a libertação imediata dos escravizados; e, por fim, como seria de esperar, os escravistas, defensores do sistema ou, pelo menos, da indenização dos proprietários caso a abolição fosse sancionada.

Os conflitos entre essas três correntes definiram o ritmo da extinção da escravatura. A primeira delas tinha uma longa tradição. Conforme vários folhetos e livros da época da abolição registraram, a experiência metropolitana era um exemplo bem-sucedido de política emancipacionista. Em Portugal, os escravos constituíam pequena parcela da população, nunca chegando a ser a principal força de trabalho da economia. Mesmo assim, a escravidão portuguesa não foi abolida de uma só vez, mas sim por intermédio de leis que gradualmente a extinguiram. A primeira delas, sancionada em 1761, declarou livres todos os negros e mulatos oriundos da América, África e Ásia que desembarcassem em portos do reino. Em 1773, outra lei decretou, sob determinadas circunstâncias, a “liberdade do ventre”, ou seja, a liberdade das crianças escravas.

Quando foi sancionada a primeira lei emancipacionista, existiam em Portugal milhares de cativos domésticos; cinquenta anos mais tarde quase não havia mais traços dessa forma de exploração do trabalho. A legislação portuguesa impediu a reposição dos escravos. Com o passar do tempo, o sistema acabou extinguindo-se por si mesmo, quer devido ao falecimento dos escravos existentes, quer pela libertação de seus filhos ao nascer. A experiência portuguesa não passou despercebida entre as elites brasileiras. Tratava-se de um exemplo bastante atraente, pois dispensava a abolição formal, medida que, para muitos, consistia em um confisco da propriedade alheia.

Não por acaso, José Bonifácio, em 1823, propôs, conforme mencionamos anteriormente, o fim gradual da escravidão. Embora tenha sido derrotado nessa ocasião, as ideias do Patriarca da Independência tiveram reflexos em 1850, nos debates que levaram ao final do tráfico internacional de escravos, e na Lei do Ventre Livre, sancionada em 1871.

Os emancipacionistas tinham, portanto, uma posição moderada. Eles podiam ser identificados nas fileiras dos conservadores, embora fossem mais numerosos entre os liberais. Entre os seus partidários, estava nada menos do que o imperador, que, na Fala do Trono de 1867, libertou os cativos que pertenciam ao Estado e defendeu a emancipação progressiva dos demais escravos brasileiros. A bandeira que os unia era a de que o sistema escravista inviabilizava a constituição de uma nação civilizada, mas, por outro lado, que a abolição não podia ser pretexto para a desorganização da agricultura, base econômica de sustentação do Império. Daí o gradualismo dos membros desse grupo, que previa a extinção lenta e pacífica do sistema escravista até, no máximo, os últimos dias do século XIX, quando os escravos representariam menos de 1% da população brasileira.

Vejamos agora a corrente abolicionista. Conforme mencionamos em outro capítulo, na Europa, particularmente na Inglaterra, o abolicionismo existia desde 1780. No caso brasileiro, esse movimento surge somente em 1870. A queda do preço dos escravos, em fins do século XVIII e início do XIX – devido ao fim do tráfico norte-americano e a movimentos revolucionários, como o do Haiti –, contribuiu para esse atraso. Tal situação permitiu que, de norte a sul, no campo e nas cidades brasileiras, mais e mais pessoas, até libertos, ascendessem à condição senhorial. Apesar de desumana, a escravidão, na época da independência, tornou-se, por assim dizer, uma instituição “popular”. No meio rural, ela era tanto a base das plantations quanto a solução para os problemas dos pequenos proprietários, cujos filhos iam ocupar áreas da fronteira agrícola, inviabilizando a mão de obra familiar. Na cidade, a escravidão miúda também garantia a sobrevivência de muitos, havendo aqueles que economizavam durante a vida toda para, na velhice, adquirir um ou dois escravos e viver de seu “ganho” ou aluguel.

Ora, a partir da década de 1830, o processo de popularização do escravismo começou a ser revertido. A conjunção entre a pressão inglesa e a expansão do café no Vale do Paraíba fluminense levou a um aumento vertiginoso no preço dos escravos. O fim do tráfico internacional em 1850 intensificou ainda mais essa tendência. Os pequenos proprietários, tanto os do campo quanto os da cidade, não conseguiram mais repor a escravaria. O mesmo ocorreu nas áreas em crise, como no caso do Nordeste açucareiro. Mais ainda: em razão da subida dos preços dos escravos, a tentação de vendê-los aumentou. O resultado disso foi o surgimento do tráfico interno, através do qual o sistema escravista se concentrou nas regiões Centro-Sul dominadas pela economia cafeeira ou vinculadas ao abastecimento desses territórios, como foi o caso de Minas Gerais.

Observa-se assim, na segunda metade do século XIX, a multiplicação de regiões e de grupos sociais sem interesse direto no escravismo. Para vários historiadores, o abolicionismo tornou-se possível justamente nesse momento, sendo particularmente mais ativo e organizado nas cidades que estavam deixando de ser escravistas. O movimento, em certo sentido, traduziria o ressentimento das populações urbanas contra o governo imperial, dominado por interesses agrários.

O surgimento desse movimento representou ainda outra mudança importante: pela primeira vez, o escravismo não opunha somente escravos a livres, mas também encontrava divisões no interior da própria população livre. Se no período colonial a rebeldia escrava ocorria na forma de fugas e insurreições, após o surgimento do movimento abolicionista observam-se novas alternativas legais de luta, baseadas em alianças entre cativos e homens livres. Advogados abolicionistas passam a recorrer a leis para proteger a vida de escravos, a integridade de suas famílias ou para punir senhores cruéis. Ao mesmo tempo, redes de apoio junto às camadas populares, como a dos caifazes paulistas, surgem para acudir cativos fujões, garantir seu transporte e boa acolhida nas cidades.

Os escravos, como seria de se esperar, tiveram participação ativa no movimento abolicionista. De certa maneira, as transformações ocorridas no período contribuíram para isso. Nas décadas que antecederam 1888, o tráfico interno desenraizou milhares de cativos que há várias gerações moravam na mesma região, em áreas rurais decadentes, onde o ritmo de trabalho era relaxado, ou no meio urbano, onde a possibilidade de autonomia de movimentação ou de libertação era frequente. A ida desses escravos para as plantations era uma experiência traumática. Não foram poucos os que preferiram o suicídio ao trabalho exaustivo nas fazendas cafeeiras. Outros, em maior número, fugiam; como se tratava de escravos nascidos no Brasil, eles falavam português, o que facilitava contatos com os aliados abolicionistas e, para desgosto dos proprietários, dificultava distingui-los dos demais homens livres negros.

Já os grupos escravistas predominavam entre os membros da elite agrária. Em 1885, Rui Barbosa define-os como “uma espécie de travessões opostos a todo movimento. Não admitem progresso, a não ser para trás [...] o que não for a imobilidade é a ruína da pátria”. Isso, porém, estava longe de significar que não houvesse gente letrada e refinada nesse meio. José de Alencar, só para citar um exemplo, foi um árduo defensor do escravismo, denunciando os abolicionistas como “emissários da revolução, apóstolos da anarquia”, ou então rejeitando a superioridade do “trabalho livre”, alegando que os operários europeus viviam em condições piores do que os cativos brasileiros. Portanto, era possível ser poeta e escravista ao mesmo tempo. Aliás, ser proprietário de escravos não era um sintoma de sadismo ou de inclinação à crueldade; o sistema era defendido por razões bem mais objetivas, como a questão da falta de controle sobre a mão de obra livre. O problema, de fato, era sério. Nas reuniões e congressos promovidos pelos Clubes da Lavoura – uma espécie de antítese das associações abolicionistas –, os fazendeiros alegavam que os trabalhadores livres eram inconstantes, mudavam-se frequentemente ou simplesmente abandonavam suas ocupações e desapareciam. Tais queixas não eram descabidas. Na época da abolição, a maior parte do território brasileiro ainda não havia sido ocupada. Para os homens livres era atraente trabalhar por algum tempo nas fazendas, reunir recursos mínimos e depois ir para áreas não ocupadas.

Dependendo da região, entretanto, a tendência escravista podia ser menos intensa. No Nordeste, por exemplo, devido ao fato de as terras férteis estarem quase todas sob o domínio dos latifúndios, havia poucas opções para os homens livres e pobres se transformarem em camponeses. Além disso, as secas prolongadas nas regiões semiáridas levavam muitas famílias sertanejas a procurar trabalho nas fazendas ou, ao menos, a se sujeitarem ao serviço temporário nelas. Nessas áreas, foi possível uma precoce transição para o trabalho livre. Não por acaso, a província de Ceará decretou a abolição em 1884, e Joaquim Nabuco, principal líder abolicionista brasileiro, tinha sua origem na elite açucareira pernambucana.

No Centro-Sul a situação era bem diferente. Nessa região havia abundância de terra fértil não ocupada, terra “de ninguém”, disponível para quem quisesse se tornar um roceiro ou sitiante. Por isso, boa parte dos fazendeiros de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais permaneceu fiel ao escravismo, alegando instabilidade e número insuficiente de trabalhadores livres nacionais. A corrente emancipacionista, através da Lei de Terra, de 1850, tentou converter esses grupos, determinando que “as terras devolutas só poderiam ser adquiridas por meio da compra”, o que obrigaria os homens livres a trabalhar até dispor de recursos para se estabelecer como pequenos proprietários. Contudo, a vastidão do território e os elevados custos de demarcação aliados à precariedade da burocracia imperial fizeram com que essa medida nunca fosse efetivada. Embora promulgada, a Lei de Terra não impediu que os homens livres continuassem a fugir do trabalho nas fazendas para se tornar posseiros, roceiros, caiçaras, ou seja, pequenos camponeses nas terras não ocupadas pela lavoura de exportação.

A situação era tal que muitos emancipacionistas voltavam a ser escravistas. Um exemplo dessa trajetória foi o caso do senador Vergueiro, um eminente político do Império que introduziu, na década de 1840, trabalhadores europeus em suas fazendas de café. O sistema de trabalho adotado foi o de “parceria”, na qual o proprietário se comprometia a pagar o transporte do imigrante da Europa até a fazenda e fornecia casa, instrumentos e terra para o plantio de alimentos. Em troca, os imigrantes cuidavam de um número não especificado de pés de café e pagavam a dívida contraída com os rendimentos da venda de alimentos e da parte que lhes cabia dos lucros conseguidos com a lavoura de exportação. A experiência, em princípio, deu certo, sendo partilhada por outros proprietários paulistas. De fato, para os trabalhadores livres, a possibilidade de desenvolver uma lavoura autônoma era algo atraente, pois permitia que eles comercializassem produtos agrícolas, gerando renda imediata. No entanto, as dívidas acumuladas durante a viagem ou na compra de ferramentas eram motivo de vários conflitos. Do lado dos fazendeiros, as queixas diziam respeito ao fato de os imigrantes descuidarem dos pés de café, preferindo cuidar das próprias roças, cuja comercialização era mais difícil de ser fiscalizada. Entre os trabalhadores, as reclamações incidiam no fato de que as dívidas os reduziam à condição de semiescravos. Como resultado disso, registrou-se, na década de 1860, o abandono da maioria das experiências de trabalho livre na lavoura cafeeira paulista.

A corrente emancipacionista lutou para que as experiências com trabalhadores europeus fossem reativadas, defendendo, por esse motivo, a “imigração subsidiada”. Em 1884, tal medida foi finalmente colocada em prática. O governo, principalmente o da província de São Paulo, passou a pagar a passagem de imigrantes europeus. Isso permitiu que as regiões brasileiras mais prósperas, no caso o Centro-Sul cafeeiro, fossem inundadas de italianos, portugueses e espanhóis que fugiam da pobreza em uma Europa em fase de intenso crescimento populacional. Os proprietários rurais, por sua vez, escaldados com as desastrosas experiências da parceria, adotaram uma nova forma de trabalho. No então denominado colonato, a extensão da lavoura de alimentos dos colonos ficou condicionada ao número de pés de café cuidados. Além de não arcar mais com as dívidas da viagem, os colonos passaram a contar com incentivos extras, tais como salários por ocasião da capina e da colheita. A combinação entre controle na concessão de terras para roças e pagamento por tarefas obteve grande sucesso, sendo aplicada não só na lavoura cafeeira como também em outras atividades agrícolas de exportação que empregavam o trabalhador livre.

Paralelamente ao incentivo à imigração, os emancipacionistas também procuraram criar meios para promover a permanência dos ex-escravos nas fazendas. Algumas cláusulas da Lei do Ventre Livre e da Lei dos Sexagenários atestam isso. A primeira, libertava os filhos de escravas nascidos após 1871. No entanto, um de seus artigos indicava que os proprietários podiam dispor dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos. Em 1885, a Lei dos Sexagenários reproduziu fórmula semelhante, determinando: “São libertos os escravos de 60 anos de idade[...] ficando, porém, obrigados, a título de indenização pela sua alforria, a prestar serviços a seus ex-senhores pelo espaço de três anos”.

No início dos anos 1880, a estratégia emancipacionista parecia estar dando certo. A questão agora era a de esperar até que o número de escravos existentes na sociedade caísse a ponto de ser possível a libertação deles com as respectivas indenizações a seus proprietários. Para muitos partidários dessa tendência, 1899 era esse ano. No entanto, o radicalismo da ação abolicionista – não só através das fugas e de manifestações públicas, mas também graças a uma vasta literatura sensível à causa que teve entre seus adeptos escritores do nível de Castro Alves e Bernardo Guimarães – criou condições para o 13 de Maio de 1888.

O impacto da abolição foi devastador na relação entre o governo imperial e uma legião de proprietários rurais, pois, na época em que foi sancionada, a indenização era impossível: os 700 mil escravos existentes (sendo quase 500 mil deles localizados em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais) valiam, no mínimo, 210 milhões de contos de réis, enquanto o orçamento geral do Império era de 165 milhões de contos de réis. A Lei Áurea rompeu, dessa forma, com o gradualismo dos emancipacionistas, sendo resultado das lutas de escravos e de homens livres engajados no movimento abolicionista. Para os escravistas, a abolição representou uma traição, um confisco da propriedade privada. A reação desse grupo não tardou a acontecer. Um ano após o 13 de Maio, à oposição dos militares somou-se a de numerosos ex-senhores de escravos. A monarquia estava com seus dias contados...

Veja também:


Notas:

  • [1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 147 a 152, Capítulo 21.

  • [2] Imagem disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Abolicionismo_no_Brasil>. Acesso em: 09/04/2023.


Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

04 abril 2023

Surge um novo Poder

Por

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]

Na foto, à esquerda, Luís Alves de Lima, o Duque de Caxias (1803-1880) e o Marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892). Enquanto Caxias pertencia a uma geração antiga que via o imperador (e consequentemente a monarquia) como essencial para manter a nação unida, Deodoro – pena que Caxias já tinha morrido – liderou o golpe dos militares descontentes com o imperador, derrubando-o e proclamando a República do Brasil em 15 de novembro de 1889 [2].


Uma expressão bastante conhecida a respeito da proclamação da República é aquela proferida por Aristides Lobo, dizendo que o povo assistiu à queda da monarquia “bestializado, atônito, sem conhecer o que significava”. Tal impressão foi registrada fora do país. Em 16 de dezembro de 1889, o jornal The New York Times divulgou a ocorrência, sublinhando: “The people, as a rule, were rather constrained, and looked and acted in a dazed, apathetic way”. Em outras palavras, o povo, atordoado ou indiferente, assistiu à revolta dos militares. De fato, a mudança da forma de governo, ocorrida em 1889, foi uma surpresa, um evento até certo ponto misterioso para os que dele não participaram diretamente, ou seja, para os que não pertenciam ao seleto grupo de conspiradores.

Embora o Partido Republicano existisse desde 1870, sua difusão era bastante restrita e, em vez de ser um movimento revolucionário, sua opção política era a da defesa de reformas que garantissem uma lenta passagem da forma de governo monárquica para a republicana. Pelo menos no que diz respeito a seu repentino aparecimento, o novo regime deveu mais ao descontentamento nos quartéis do que à propaganda republicana. Não por acaso, após a proclamação da República, foram necessários dez anos para que surgissem arranjos institucionais que garantissem certa estabilidade ao novo sistema político.

A animosidade dos militares em relação à monarquia tinha raízes profundas. A Guerra do Paraguai acirrou ainda mais os ânimos, contribuindo para tornar pública a situação de abandono em que se encontrava o Exército brasileiro. O número de soldados alistados no ano do início do conflito é prova disso. Enquanto o Brasil, o mais rico e povoado participante da Tríplice Aliança, contava com míseros 18 mil praças, o Paraguai possuía uma força armada de 80 mil homens.

Tal precariedade, na percepção da maioria dos militares, era planejada pelos dirigentes do Império. Sempre que possível, esses políticos procuravam reduzir os gastos do Ministério da Guerra, restringindo soldos e promoções. Além disso, era uma prática corrente transferir as tropas da corte ou das capitais provinciais para as zonas de fronteiras, o que era sentido como uma forma de degredo.

Vários historiadores já sublinharam que essa política de enfraquecimento do Exército não era simplesmente resultado de uma conspiração de civis. Segundo essa visão, o sistema escravista impunha pesadas limitações à formação de forças armadas modernas. A primeira razão disso consistia no fato de que, para ser realmente eficiente, o Exército dependia do desarmamento parcial ou total da sociedade. Ora, enquanto existiu escravidão no Brasil, desarmar a sociedade era literalmente impossível. Sem meios de autodefesa, os senhores ficariam à mercê da violência dos cativos. A existência desses últimos, por sua vez, também inviabilizava a formação de um Exército moderno pelo fato de não poderem ser considerados soldados confiáveis, pois não só desertavam na primeira oportunidade como também podiam – e a tentação não devia ser pequena – voltar as armas contra os próprios oficiais. A escravidão tinha ainda outra implicação negativa: boa parte da população de homens livres, passível de ser recrutada, encontrava-se imobilizada nas funções de capitães do mato e feitores, na vigilância e repressão aos escravos.

Em razão disso, foram sendo criadas condições favoráveis para que o Exército se tornasse não só um crítico da monarquia como também da sociedade que sustentava essa forma de governo. Em outras palavras, a situação era favorável para que os militares passassem a se considerar elementos externos à sociedade e prontos para reformá-la.

Ora, tendo em vista que existia no Império um quadro propício a quarteladas, cabe perguntar por que a República demorou tanto a ser proclamada? Quanto a isso, a resposta é relativamente simples: além de fraco, o Exército brasileiro demorou muito tempo para apresentar coesão interna em torno da oposição à monarquia. É sempre bom lembrar que um segmento importante dos oficiais era cooptado pelo sistema político monárquico. O melhor exemplo disso é o de Duque de Caxias. Herói da Guerra do Paraguai e comandante-chefe das forças imperiais, Caxias também foi um hábil negociador junto às elites que lideraram os movimentos regionais da época regencial, assim como ocupou cargo no Conselho de Estado, sendo por mais de uma vez deputado, senador, ministro e governador de província.

Outros importantes militares, como o general Osório e o visconde de Pelotas, tiveram trajetórias semelhantes, também se destacando como heróis militares e leais servidores de d. Pedro II no Ministério da Guerra e no Senado, sendo, por esse motivo, agraciados com títulos de nobreza. Presentes nos partidos Liberal e Conservador, tais militares desempenhavam um papel ambíguo: eles impediam tanto o desmantelamento completo do Exército quanto inibiam levantes das tropas contra a monarquia.

Contudo, ao longo da segunda metade do século XIX, os militares aristocratas foram se tornando cada vez mais raros, gerando uma situação delicada, que poderia ter consequências explosivas no relacionamento entre Exército e monarquia. Os motivos disso estavam relacionados às mudanças ocorridas nas forças armadas. A mais importante delas dizia respeito à extinção do sistema tradicional de recrutamento.

De acordo com as formas de seleção do Exército, herdadas do período colonial, os jovens bem relacionados ou oriundos de classes elevadas podiam ocupar altos postos sem preparação prévia ou tempo de serviço. Os pobres, ao contrário, permaneciam na condição de praças até dar baixa ou morrer. A reforma implementada em 1850 rompeu com essa tradição, estabelecendo critérios de promoção baseados na antiguidade e no desempenho nas zonas de combate. Em certo sentido, essa mudança significou um dos primeiros passos rumo à profissionalização do Exército brasileiro.

A partir da nova lei, todos os que quisessem ocupar altas patentes deveriam começar em postos inferiores, sendo aos poucos promovidos. Tal exigência afastava os filhos das elites agrárias da carreira militar. Não é preciso muita imaginação para perceber a razão disso: as patentes baixas eram remuneradas com ínfimos soldos e vistas como indignas, destinadas àqueles que se ocupavam de tarefas manuais. A grande presença de negros e pardos nesses postos também afastava os jovens da elite, pois, paralelamente ao convívio com os egressos da senzala, eles deveriam enfrentar os oficiais que mantinham com as tropas uma relação não muito distante da de feitor–escravo, na qual o chicote era empregado como forma de punição, mesmo em caso de pequenas infrações. Os “bem-nascidos”, dadas essas circunstâncias, passaram assim a evitar a carreira militar. Daí, nas décadas que antecederam a queda da monarquia, a progressiva diminuição do número de oficiais de origem aristocrática ou que tinham bom trânsito nesse meio.

A profissionalização do Exército também estimulou a ascensão de jovens de origem humilde. Outras reformas acentuaram essa tendência. Uma delas foi a criação de um curso preparatório para a Escola Central, que em 1858 sucedeu a Academia Real Militar, de 1810. A Escola Central era exigente no seu sistema de seleção, solicitando que seus candidatos fossem versados em matemática, história, geografia, gramática portuguesa, francês e latim. Com a criação do curso preparatório público, jovens de poucos recursos podiam ingressar nos cursos de engenharia da Escola Central. Criaram-se ainda outras vantagens. Os alunos recebiam uma pequena contribuição financeira e os que se destacavam intelectualmente ganhavam o suficiente para se sustentar independentemente da família. A Academia também criou uma nova forma de promoção, além daquelas por tempo de serviço ou por atuação em zonas de combate, que decorria do grau de instrução dos cadetes. 

Tal situação deu origem a uma elite que tinha por base o mérito. Outro efeito interessante das reformas foi a preocupação cada vez maior com o ensino científico. De fato, isso não era inteiramente novo, principalmente quando lembramos o papel desempenhado, desde o período colonial, por engenheiros militares na construção de fortificações, estudos de balística e planejamento do espaço urbano. A novidade da segunda metade do século XIX foi a progressiva aplicação militar da ciência e a certeza, cada vez maior, de que seria um meio de transformação do mundo. Quanto a isso, uma vez mais cabe lembrar a importância da campanha do Paraguai. Em meio ao quadro calamitoso da guerra, destacou-se a eficiência dos engenheiros militares no uso de balões tripulados para identificação das tropas inimigas, na confecção de excelentes mapas e na rápida construção de trincheiras, pontes e estradas. O resultado prático dessa aplicação somou-se a um número cada vez maior de professores e alunos defensores da extensão, ao Brasil, dos avanços técnicos e científicos dos países europeus. Chegou-se até a propor a implantação de indústrias como uma forma de aprimorar a sociedade. 

Entre esses militares, a ciência tinha ainda outra aplicação: servia de contraponto à formação literária dos bacharéis, que compunham a maior parte das fileiras dos políticos do Império. Contudo, a nova geração de oficiais não substituiu de uma hora para outra o grupo formado nas tradições aristocráticas. Além disso, paralelamente à liderança dos “científicos”, como era o caso de Benjamin Constant, continuaram a existir aqueles que, denominados “tarimbeiros” (uma alusão à tarimba, cama desconfortável em que dormem os soldados), que não tinham uma origem aristocrática, mas que apoiavam a monarquia, ou pelo menos assim o fizeram na maior parte do tempo. 

No interior do Exército havia, assim, diferentes grupos, uns mais, outros menos fiéis a d. Pedro II. A mudança registrada no período posterior à Guerra do Paraguai foi a do progressivo desaparecimento do grupo aristocrático, como no caso de Osório e Caxias que faleceram, respectivamente, em 1878 e 1880. A ausência dessas lideranças deixava a instituição militar sem quem pudesse defendê-la perante o imperador, e, ao mesmo tempo, viabilizava a aproximação entre tarimbeiros e científicos. 

Para esses dois grupos, as décadas de 1870 e 1880 foram de grandes angústias e decepções. Dada a grande importância desempenhada pelos voluntários da pátria, muitos dirigentes do Império começaram a pregar contra a manutenção de uma força militar profissional numerosa. O risco de implementação de uma nova política de “enfraquecimento” voltou a pairar no ar. Assim, a denominada questão militar, ou melhor, questões militares, que antecederam a queda da monarquia, foram fruto não só de expectativas frustradas em relação aos salários e promoções ou da humilhação de oficiais obrigados a capturar escravos e a participar de violentas campanhas eleitorais, como também de uma atitude defensiva das forças armadas. O fortalecimento da Guarda Nacional na Corte, a transferência de comandos militares para províncias distantes, o drástico corte nos gastos do Ministério da Guerra, indicavam os riscos a que a instituição estava submetida.

A efervescência do movimento abolicionista, com seus “clubes” promovendo reuniões e manifestações, forneceu um modelo de organização que ia além dos quartéis e academias isoladas; a partir de 1887, nos clubes militares foi se formando um poderoso movimento de oposição à monarquia, que, conforme veremos a seguir, também estava sendo abandonada pelas elites agrárias.


Veja também:


Notas:

[1Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 143 a 146, Capítulo 20.

[2Imagens disponíveis em:


Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

27 março 2023

Silêncio do STF?

Paulo Polzonoff, da Gazeta do Povo, questiona o silêncio de Alexandre de Moraes sobre as acusações de Lula a Sérgio Moro quando este é vítima de um plano para assassiná-lo.  Bem, pelo menos na imagem, ele está no canto inferior direito. Mas no mais seu silêncio é bem-vindo...

Assim, ele não terá que se desgastar, pois "... na atual circunstância, nessa democracia de fachada em que vivemos, e sobretudo depois do que se viu e ouviu nos últimos quatro anos, esse silêncio nada mais é do que uma expressão da mais suprema hipocrisia. É a mais perfeita tradução ('alguma coisa acontece no meu coração') de um espírito jurídico contaminado por paixões partidárias e por uma visão de mundo que, num acesso de generosidade, chamarei aqui apenas de 'estreita'. 

Matéria completa em: 

<Onde está Alexandre de Moraes?>


Veja também o que o próprio Paulo Polzonoff fala sobre o sumiço dos ministros:


   

26 março 2023

Lula ressentido: deu ruim

Insulto, aqui, insulto ali, insulto acolá... e Lula tem conseguido se mostrar o chefe de Estado mais irresponsável que o Brasil já teve desde a volta dos civis ao governo deste país, diz a Revista Oeste...
Lula não consegue, simplesmente, governar o Brasil com um mínimo de competência. Gastou todo o seu tempo até agora no ataque a inimigos imaginários e na produção de fumaça demagógica; não tem a mais remota ideia a respeito de como começar a resolver qualquer dos problemas que crescem todos os dias bem na sua frente, mesmo porque não entende a natureza mais elementar desses problemas. Lula, agora, também deixou de fazer nexo no que diz. A impressão é a de que temos na Presidência da República um homem que está em processo de perda acelerada do equilíbrio mental.
Veja a matéria toda em:


Como diz a Paula Marisa: "deu muito ruim para o Lula":



21 março 2023

O Império Ameaçado

Por
DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]


Guerra do Paraguai (1864-1870)

“5 fatos sobre a guerra do Paraguai – e por que você ainda paga por ela: 
1) Ao desafiar o Brasil, Solano López era tão doido quanto Kim Jong Un

    ameaçando os EUA. 

2) O Paraguai não era desenvolvido na época da guerra (e não é pobre

    hoje por causa dela).

3) A Inglaterra tinha uma política de ‘não intervenção’ no continente sul-

    americano. 

4) O Brasil se endividou por causa da guerra.
5) Não houve genocídio nenhum.”
 [2]


“De repente, do fundo da escarpa que a estrada contornava, irrompeu um corpo de infantaria paraguaia, que se lançou sobre a nossa linha de atiradores, atravessou-a dirigindo-se para o 1º batalhão dela distante uns cem passos... Estava o terreno coalhado de moribundos e feridos inimigos. Vários dos nossos soldados, ébrios da pólvora e do fogo, queriam acabá-los. Horrorizados, debalde esforçavam-se os nossos oficiais em lhes arrancar as vítimas às mãos, exprobrando-lhes a indignidade de semelhante chacina... Via-se, aliás, como inevitável consequência dessas cenas deploráveis, o saque desenfreado a que se entregavam os mascates e os acompanhadores do Exército também, reclamando as mulheres o seu quinhão. Eram os corpos despidos e revistados; despojos sanguinolentos passavam, de mão em mão, como mercadorias, muita vez com violência disputadas.”

Eis como Alfredo d’Escragnolle Taunay, em A Retirada da Laguna (1871), descrevia as cenas selvagens registradas durante a Guerra do Paraguai. Entre 1864 e 1870 esse conflito vitimou milhares de paraguaios, brasileiros, argentinos e uruguaios, sendo por isso considerado o conflito sul-americano mais sanguinolento – e também o de mais longa duração – ocorrido durante o século XIX.

Em relação ao Brasil, a guerra teve repercussões que foram muito além dos sofrimentos nos campos de batalha, revelando as contradições da sociedade escravista e transformando o Exército em um importante agente político. Não sem razão, Joaquim Nabuco se referiu a essa guerra como o momento de apogeu e de início do declínio do Império; afirmação que, para ser compreendida, deve ter em conta as causas remotas e imediatas da então denominada Guerra da Tríplice Aliança.

Como todos os fenômenos sociais, a Guerra do Paraguai teve raízes complexas e, por vezes, não há consenso entre os historiadores sobre seus reais motivos. De modo geral, podemos afirmar que no debate a respeito de sua origem predominam dois pontos de vista: um que enfatiza os motivos internos dos países envolvidos e outro que sublinha as raízes externas da guerra, particularmente como consequência dos interesses ingleses na região.

Desde o período colonial, a região Sul era alvo de intermináveis conflitos de fronteira. Uma vez independentes, os países que surgiram na bacia do Prata mantiveram as antigas rivalidades. O Brasil, como seria de se esperar, não estava fora dessas disputas. Durante o século XIX, uma questão central para o Império era a de impedir o aparecimento de uma potência hegemônica na região. Por um lado, temia-se que se criasse um poderoso foco de irradiação republicana, tendo em vista que os países aí surgidos na luta contra a dominação espanhola adotaram essa forma de governo. Por outro, tal posição tinha por objetivo garantir a livre circulação de embarcações nos rios Paraná, Paraguai e São Lourenço, pois, sem essa “estrada fluvial”, o acesso ao Mato Grosso tornava-se bem mais dispendioso e arriscado, em razão de os outros caminhos para essa província depararem com duas barreiras difíceis de transpor: cachoeiras e índios bravios.

Na fase de reino unido e, posteriormente, na condição de monarquia independente, o governo brasileiro temperou diplomacia com intervenção militar na bacia do Prata. Entre 1821 e 1828, por exemplo, valeu-se da força das armas, quando então incorporou a Província Cisplatina, futura República do Uruguai, ao território brasileiro. O mesmo ocorreu em 1851, quando, por meio da aliança com a província de Entre-Rios e o Uruguai, forças militares imperiais combateram o projeto expansionista de Buenos Aires. Noutros períodos, como ocorreu em 1844 e 1858, a elite política imperial reconheceu a independência do Paraguai e conseguiu, via acordos diplomáticos, de “amizade, comércio e navegação”, o livre acesso ao caminho fluvial acima mencionado. Todavia, tanto a primeira quanto a segunda solução tinham resultados de curta duração, pois a região do Prata viveu, de forma mais dramática do que o Brasil no período regencial, constantes disputas entre caudilhos locais.

O episódio que deflagrou a Guerra do Paraguai resultou de uma dessas escaramuças. Em 1863 teve início um conflito no Uruguai entre as duas facções dominantes locais, denominadas blancos e colorados. Alegando a proteção dos interesses brasileiros – calculava-se que 10% da população uruguaia era composta por gaúchos que dominavam, por sua vez, cerca de 30% das terras agricultáveis –, o governo imperial, aliado ao argentino, apoiou os colorados. Por meio de uma série de ultimatos, o Paraguai reagiu a essa intervenção, advertindo que a independência uruguaia era fundamental para o equilíbrio de poder na região. Contudo, essas ameaças de nada valeram. A intervenção brasileira prosseguiu, havendo, em outubro de 1864, atuação tanto do exército quanto da Marinha imperiais em terras uruguaias. O governo paraguaio decidiu então agir, interceptando o navio mercante Marquês de Olinda e, em seguida, ocupando territórios brasileiros e argentinos. Era dado início à guerra.

De maneira geral, esses são os argumentos daqueles que defendem os motivos regionais ou “internos” da Guerra do Paraguai. Em outras palavras, tal conflito não era de natureza muito diferente das constantes lutas registradas desde os tempos coloniais. A novidade da Guerra da Tríplice Aliança dizia respeito à magnitude do conflito, à sua longa duração e, consequentemente, aos elevados sacrifícios humanos nela registrados.

A outra corrente enfatiza as causas “externas” ou, mais precisamente, a influência do imperialismo inglês. De acordo com esse ponto de vista, a Inglaterra tinha interesse em combater o Paraguai, por ser essa uma sociedade fechada às importações britânicas e pouco vinculada ao mercado de exportação de matérias-primas. Além disso, o Paraguai oferecia um modelo caudilhesco de organização política em vez do liberal imposto pela Grã-Bretanha. A guerra teria, dessa maneira, sido promovida com o objetivo de combater uma forma alternativa de conceber a organização política e econômica na América Latina. Vários historiadores sublinharam a fragilidade desse tipo de interpretação, tanto pelo fato de o Paraguai, durante a primeira metade do século XIX, ter mantido relações comerciais regulares com a Inglaterra, quanto pela crítica à suposta alternativa econômica e social que aquele país representaria.

Para compreendermos melhor essa crítica é necessário lembrar um pouco do passado colonial. Embora fosse conhecido desde o século XVI, o território que deu origem ao Paraguai despertou pouco interesse entre os espanhóis, que concentraram seus esforços na colonização de áreas produtoras de prata, como as que deram origem aos atuais Peru e Bolívia. Devido a essa localização “periférica”, o governo metropolitano não se opôs ao estabelecimento de missões jesuíticas na região paraguaia. Os jesuítas puderam, assim, reunir sob seu comando milhares de índios guaranis, livrando essa população do extermínio, que intimava os povos das áreas vizinhas. No século XVIII, porém, tais comunidades, autossuficientes economicamente e autônomas politicamente, passaram a ser vistas com desconfiança pelo governo metropolitano. Para os absolutistas espanhóis, elas se configuravam como um “Estado dentro do Estado”. Situação inaceitável que deu origem a violentos conflitos entre o governo metropolitano e os jesuítas, resultando na expulsão destes últimos em meados do século XVIII; após serem confiscados, os territórios que correspondiam às antigas missões foram entregues a burocratas, embrião da futura classe dominante paraguaia.

Como pode ser observado, a experiência jesuítica marcou profundamente a história do Paraguai. Assim, é possível afirmar, por exemplo, que, nessa região, o sistema escravista foi residual, não havendo nem plantations nem exploração de minas. Por outro lado, devido a motivos de natureza religiosa, a população e a cultura indígenas sobreviveram, havendo inclusive a adoção do guarani como língua nacional. Os ditadores locais – a começar por José Gaspar Rodriguez de Francia, “El Supremo”, que governou o país entre 1813 e 1840 – eram, dessa forma, produtos de uma experiência singular de colonização, em que o desejo de autonomia e a presença de traços culturais e laços comunitários pré-coloniais haviam sobrevivido. Isso, porém, não significava que tais governantes estivessem vinculados a um projeto de desenvolvimento nacional alternativo ou de socialismo avant la lettre. É bem mais provável que eles procurassem reproduzir o passado colonial, gerindo o Paraguai como uma grande estância, uma grande missão laica, paternalista e comunitária. É também certo que, ao longo da primeira metade do século XIX, foram tomadas algumas medidas inovadoras, como o incentivo à metalurgia e à importação de técnicos ingleses. No entanto, isso vinculava-se à necessidade de formar um exército local, tendo em vista as tendências expansionistas de Buenos Aires e do Brasil.

Apesar desses esforços “modernizantes”, não há indicações de empenho dos dirigentes paraguaios em romper com o mundo tradicional herdado da época colonial. Talvez a afirmação contrária seja mais próxima da realidade. Nesse sentido, a reação de Francisco Solano López, em 1864, dois anos após ter sucedido o pai no poder, é bastante esclarecedora: os ataques à parte da Argentina, assim como ao sul do Mato Grosso e ao Rio Grande do Sul, de certa maneira, devolviam aos paraguaios a área de domínio das missões jesuíticas antes da expulsão da Companhia de Jesus no século XVIII.

Portanto, a não ser do ponto de vista de retorno ao passado, é pouco provável que o Paraguai representasse um modelo alternativo para os demais países da América Latina. O que não significava que as decisões do governo local agradassem aos ingleses. Conforme vários autores sublinham, a Inglaterra sempre esteve pronta a combater tendências expansionistas na bacia do Prata, importante porta de entrada de suas mercadorias. Além disso, o Brasil era, no mundo, o terceiro maior mercado importador de produtos ingleses e tradicional cliente de empréstimos internacionais. Tornara-se fundamental para a Inglaterra manter boas relações com o governo imperial – relações, aliás, arranhadas frequentemente em razão da condenação inglesa ao tráfico de escravos –, e a guerra deu essa oportunidade.

A guerra teve início em um momento espinhoso da política imperial. Acreditava-se num embate curto, quase cirúrgico, liderado por um “rei guerreiro”: o jovem d. Pedro II, cuja barba começaria, então, a embranquecer. Enormes gastos foram mobilizados para o confronto: 614 mil contos de réis, onze vezes o orçamento governamental para o ano de 1864; abria-se um deficit que persistiu até 1889. Em torno do rio Paraguai, quatro nações limítrofes, por razões internas específicas, iriam se enfrentar. A historiografia atual não reconhece mais a tese de que a influência inglesa queria apenas garantir interesses e alianças em área estratégica. Mas entende que a guerra acabou por consolidar os Estados nacionais. A Argentina unificou-se e o poder foi centralizado em Buenos Aires. No Brasil, a guerra ajudou a derrubar a escravidão e a monarquia. Quanto ao Uruguai e o Paraguai, esses países se firmariam apenas como satélites das potências regionais.

Talvez o mais provável é que a confluência entre interesses regionais e os do Império britânico tenha contribuído para o surgimento da Guerra do Paraguai. O que de fato surpreendeu a todos foi a capacidade do Paraguai em suportar quase seis anos de ataques sucessivos. Em grande parte, isso foi possível graças ao envolvimento da quase totalidade de sua população civil, dando origem, como afirmamos, ao mais sangrento capítulo da história sul-americana.

Justamente por ter atingido essa magnitude, a Guerra da Tríplice Aliança teve repercussões igualmente não previstas. No lado brasileiro, a mais importante delas diz respeito à quebra da forma tradicional de defender a fronteira meridional. Normalmente, nas suas incursões na bacia do Prata, o governo imperial dispensava o uso das forças armadas regulares, deixando essa tarefa para as denominadas troupilhas gaúchas, comandadas por proprietários rurais e seus subordinados; bandos que atuavam desde os tempos coloniais e tinham como recompensa o gado e as terras que conquistavam do inimigo.

Por dependerem dessa forma tradicional de defesa, os dirigentes do Império não estavam preparados para enfrentar um conflito longo, como foi o da campanha do Paraguai. Na época em que a guerra foi deflagrada, o Exército brasileiro encontrava-se pouco organizado, e razões para isso não faltavam. No período posterior à independência, os oficiais – a maioria deles de origem portuguesa – eram vistos como suspeitos de participar de complôs com o objetivo de restaurar o Brasil à condição de colônia portuguesa; os soldados, por sua vez, em grande parte mercenários estrangeiros ou gente oriunda das camadas populares, eram encarados como ativos participantes de levantes urbanos, inclusive o que levou d. Pedro I a renunciar ao trono. Com a finalidade de neutralizar essa dupla ameaça, foi criada, nos anos 1830, a Guarda Nacional, uma milícia formada por “cidadãos em armas”. Em outras palavras, o governo transferiu para os civis a responsabilidade de manutenção da ordem, dando origem ao “fazendeiro coronel”, ainda presente no imaginário político brasileiro.

A Guarda Nacional fazia, dessa maneira, dos senhores de escravos, auxiliados por seus capangas, os principais elementos das forças armadas, o que permitiu ao Império implementar uma política de desmobilização e esvaziamento do Exército regular. Ora, a Guerra do Paraguai, prevista inicialmente para durar seis meses, mas que perdurou por quase seis anos, exigiu a rápida reconstituição de forças armadas regulares. Ao perceber a gravidade da situação, o governo imperial teve de improvisar um Exército, recorrendo à convocação de prisioneiros, escravos, libertos, índios e até mulheres e crianças.

Compreender as razões desse irregular processo de recrutamento é fundamental, pois em grande parte a animosidade entre o Exército e o Império teve origem na forma improvisada de organizar as forças armadas que lutaram na campanha paraguaia. A primeira medida nesse sentido foi a criação, em 7 de janeiro de 1865, do Corpo de Voluntários da Pátria. Segundo a lei que deu origem a essa forma de recrutamento, o Exército podia admitir em suas fileiras todos aqueles que se apresentassem voluntariamente. O governo acenava com algumas vantagens para quem assim procedesse, oferecendo o dobro do soldo normalmente pago aos praças, indenização para as famílias dos mortos e gratificações e terras aos sobreviventes.

Tais medidas tiveram grande repercussão. Entre os 123 mil combatentes brasileiros na Guerra do Paraguai, 54 mil serviram em batalhões de voluntários da pátria. O grande problema dessa forma de recrutamento era a ausência de prévia formação militar. Entre os voluntários havia de tudo. Muitos dos que se alistaram voluntariamente eram jovens influenciados pelo nacionalismo aristocrático de escritores românticos. Outros, porém, haviam sido coagidos pelas autoridades regionais a se alistar, dando origem a queixas a respeito dos “voluntários do pau e da corda”. Os próprios mandatários imperiais aprovaram legislação complementar à anteriormente mencionada, destinada a facilitar o recrutamento coagido. A lei de 8 de julho de 1865 foi um desses casos. Com ela criou-se uma espécie de vale-tudo do alistamento: “o governo” – afirma o texto legal – “é autorizado a preencher por merecimento, durante a guerra, todas as vagas nos Corpos da Armada e classes anexas, dispensando as regras estabelecidas na legislação...”.

A nova norma de recrutamento era uma determinação feita para abolir qualquer forma de lei. A situação que então se inaugura é a do recrutamento forçado a todo custo. Graças a essa determinação, foi possível que, entre 1864 e 1866, o Exército passasse de 18 mil para 38 mil homens em armas, reunindo no ano seguinte 57 mil soldados. Os testemunhos e documentos referentes a esse recrutamento mostram que ele teve por base as mais diferentes formas e expedientes: prisões eram esvaziadas, assim como crianças e vadios eram caçados pelas ruas das principais cidades brasileiras.

No Rio de Janeiro, por exemplo, as autoridades locais colocaram, no ano de 1864, 116 meninos menores de 16 anos à disposição da armada; um ano mais tarde, essa cifra foi de 269 recrutas. Pelo menos metade desse contingente havia sido recolhida nas ruas da capital brasileira, dando origem a centenas de ofícios nos quais as famílias solicitavam às autoridades a devolução do filho recrutado à força. Nem os meninos escravos, “propriedades” alheias, conseguiam escapar a esse furor. Eis o que registra um ofício da época, enviado ao Arsenal da Marinha carioca: “Umbelina Silveira de Jesus queixou-se de ter sido prezo seu escravo Antônio, de 13 anos, na rua atrás do Convento do Carmo [...] O escravo encontrava-se nos corpos de Aprendizes de Marinheiros, na Fortaleza de Boa Viagem e, sem a permissão de sua senhora, fora arrebanhado à força”.

Havia ainda duas outras origens dos voluntários da pátria. Uma delas dizia respeito aos escravos que assentavam praça usando nomes falsos, legitimando um projeto de fuga e garantindo casa e comida nas fileiras do Exército. A outra decorria de uma antiga prática que consistia em pagar certa quantia, ou apresentar um escravo substituto, eximindo-se assim das fileiras do Exército. Em 14 de outubro de 1865, esse tipo de procedimento foi registrado no Diário da Bahia: “Atenção. Quem precisa de uma pessoa para marchar para o Sul em seu lugar, e quiser libertar um escravo robusto, de vinte anos, que deseja incorporar-se ao Exército, declare por este jornal seu nome e morada onde possa ser procurado, e por preço cômodo achará quem lhe substitua nos contingentes destinados à guerra”.

Não é preciso muita imaginação para perceber que esses recrutas saídos direto das senzalas para o campo de batalha acabavam tendo um desempenho medíocre no front. É provável que a maioria deles não tivesse a mínima ideia de por que estava lutando, e muitos, por temerem a reescravização, desertavam na primeira oportunidade, como ocorreu durante a Retirada da Laguna, célebre batalha de 1867 em que se registrou a morte de trinta soldados, ao passo que cerca de duzentos praças “desapareceram” durante o conflito.

Não sem razão, as tropas brasileiras, em boa parte formadas por escravos, menores abandonados e criminosos, eram descritas como um bando de famintos, aventureiros e aproveitadores. Alfredo d’Escragnolle Taunay também indica a presença de mulheres nos campos de batalha, “carregando crianças de peito ou pouco mais velhas”; mulheres que traziam no rosto os estigmas do sofrimento e da extrema miséria e atendiam por nomes que as remetiam a grupos sociais de origem humilde, como o caso das Ana Preta, Ana Mamuda ou Joana Rita dos Impossíveis. Assim, enquanto os homens entregavam-se ao roubo, jogatina e comércio, suas companheiras se dedicavam ao saque, apoderando-se de mantos e ponchos de paraguaios mortos, ou sobreviviam graças à prostituição. Havia ainda casos-limite, como o de uma certa Maria Curupaiti, que, aos 13 anos, disfarçada de homem, foi aceita como voluntário da pátria, falecendo em combate.
Assim, a atuação do Exército brasileiro ficava comprometida por práticas que lembravam as irregulares forças armadas do Antigo Regime. A falta de organização também se refletia no abastecimento: os soldados acabavam tendo de se alimentar quase exclusivamente de frutas silvestres, colhidas no campo paraguaio, como o bacuri, o murici e o fruto da vagem de jatobá. Os oficiais, por sua vez, comiam carne de gado caçado no local. Rapidamente, porém, essas duas fontes de alimentos escassearam, dando origem a um quadro de fome crônica. Uma vez mais, Taunay pinta com cores fortes a penúria da guerra, afirmando que, em torno dos raros animais conseguidos, formava-se “um círculo... cada qual mais ansioso esperando o jacto de sangue; uns para o receberem num vaso e o levarem, outros para o beberem ali mesmo”. As vísceras e o couro do animal eram despedaçados e devorados mal-assados ou semicozidos, dando origem a sérios problemas de intoxicação alimentar, com efeitos devastadores entre os combatentes.

Mal alimentados, com vestimentas não preparadas para o clima local, os soldados adoeciam facilmente de beribéri, malária, varíola, cólera-morbo e pneumonia. Os estudiosos do tema chegaram até a avaliar que a fome e as doenças mataram dez vezes mais soldados brasileiros do que os conflitos abertos contra os paraguaios. Por isso, ao longo dos anos da guerra, foi se consolidando entre os oficiais a opinião de que o principal inimigo do Exército eram os políticos do Império, que haviam abandonado a instituição, substituindo-a em grande parte pela Guarda Nacional. Tal situação ficou ainda mais agravada após o término da guerra, quando então ressurgiu a tendência favorável à desmobilização e ao esvaziamento do Exército. Contra essa política, os militares se uniram e, em razão dos sacrifícios e sofrimentos vividos nos campos de batalha, construíram uma identidade positiva e até heroica da instituição a que serviam. É nesse contexto que surgiu o que se costuma denominar “oposição militar” ao Império, elemento central, como veremos, no processo de declínio e colapso do governo monárquico inaugurado em 1822.

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Veja também:


Notas:

  • [1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 135 a 142, Capítulo 19.

 

Fonte / Referência bibliográfica

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.