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23 setembro 2022

Engenhos, Escravos e Guerras

Por DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]


Engenho de açúcar no Brasil colonial [2]


O plantio e o trato da cana-de-açúcar significavam a possibilidade de participar ativamente na estrutura de poder colonial. Como era, porém, a vida social dos primeiros senhores de engenho? De que era feito seu cotidiano e que tipo de problemas enfrentavam? Se aceitarmos a opinião dos letrados da época, podemos afirmar que, apesar da aparência em contrário, mesmo os fazendeiros ricos alimentavam-se mal, comendo em excesso dura carne-seca. Só uma vez ou outra degustavam frutos. Mais raramente ainda legumes. A falta de boa comida era compensada pelos excessos de doces: goiabadas, marmeladas, doces de caju e mel de engenho e cocadas. Na passagem de um padre, abriam-se, com esforço, as despensas e matavam-se os animais de criação: patos, leitões e cabritos. Em Pernambuco, conta-nos um cronista, “escravos pescadores” eram, nessas ocasiões, encarregados de buscar “todo o gênero de pescado e marisco”. A abundância registrada em alguns engenhos não era a norma. Os que se davam ao luxo de mandar vir alimentos do Reino consumiam víveres malconservados. O senhor de engenho sofria com doenças do estômago, atribuídas pelos doutores da época não à precária alimentação, mas aos “maus ares” do trópico. A saúva, as enchentes ou a seca dificultavam ainda mais o suprimento de alimentos frescos. A sífilis marcava-lhes o corpo, deixando-o vincado com as suas chagas.
A maior parte dos engenhos aninhava-se na mata, não muito distante dos centros portuários, o que se explica pela maior fertilidade dos terrenos e pela abundância de lenha, necessária às fornalhas famintas, alimentadas por um trabalho, que às vezes ocupava o dia e a noite, de oito a nove meses, normalmente de julho/agosto de um ano a abril/maio do seguinte. E não deviam se afastar muito do litoral, sob pena de, sendo único o preço dos gêneros de exportação, não poder competir com os engenhos vizinhos aos portos, cujo produto não se amesquinhava com as despesas de transporte. Em Pernambuco, instalavam-se ao longo dos rios que se concentram na vertente do Atlântico do planalto da Borborema, na Zona da Mata, em que predominam arredondados morros e colinas. O corolário da terra era a água. Se a irrigação era desnecessária graças ao rico massapé, tanto o gado quanto as pessoas precisavam de água doce. Usavam-na também nos engenhos e trapiches, nas prensas e moinhos. Não à toa, a maior parte dos engenhos localizava-se à beira de rios como o Paraguaçu, o Jaguaribe e o Sergipe, na Bahia, e o Beberibe, o Jaboatão, o Una e o Serinhaém, em Pernambuco.
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No interior das verdadeiras fortalezas de adobe e taipa, que eram as casas-grandes, vigia a simplicidade e até o desconforto. O mobiliário era pobre e escasso: camas, baús, móveis e cabides. Todas peças toscas, feitas pelo carpinteiro do engenho. Alguns preferiam a doçura das redes, solução refrescante nas noites quentes. Varandas entaladas no meio da fachada principal e pequenos alpendres davam ao senhor de engenho a vista sobre sua terra, cana e gente. Pavimentos térreos, verdadeiros depósitos fechados, iluminados por pequenas frestas nas paredes, permitiam-lhe se defender melhor do inimigo. Não faltavam, contudo, observadores de época capazes de entusiasmar-se com a imponência do conjunto: engenho de água muito adornado de edifícios, engenho com grandes edifícios e uma igreja, engenho ornado de edifícios com uma ermida mui concertada e formosos canaviais, diria o cronista e senhor de engenho português Gabriel Soares de Sousa, descrevendo-os em 1587. À rigidez da casa opunha-se, em dias de festa, o exagero das vestimentas: “vestem-se, e as mulheres e os filhos de toda a sorte de veludos, damascos e outras sedas, e nisso tem muito excesso [...] os guiões e selas dos cavalos eram das mesmas sedas que iam vestidos”, comentava um enlevado Cardim, na fase de expansão canavieira. Os casamentos festejavam-se, segundo ele, com banquetes, touradas, jogos de canas e argolinhas e vinho de Portugal. Muitos batizavam seus engenhos com o nome de santos protetores: São Francisco, São Cosme e Damião, Santo Antônio. Outros tinham nomes africanos como Maçangana. Outros ainda lhes davam nomes de frutas e árvores: Pau-de-Sangue, Cajueiro-de-Baixo, Jenipapo.

No centro de sua família, o senhor de engenho devia irradiar autoridade, respeito e ação. Sob seu comando dobravam-se filhos, parentes pobres, irmãos, bastardos, afilhados, agregados e escravos. Uma esposa, às vezes bem mais jovem, movia-se a sua sombra. Ela vivia para gerar filhos, desenvolvendo também uma atividade doméstica – costura, doçaria, bordados – alternada com práticas de devoção piedosa. Na ausência do senhor, contudo, assumia as responsabilidades de trabalho com vigor igual ao do marido. Sua família era a formulação exterior de uma sociedade, mas não o domínio do prazer sexual. A possibilidade de se servirem de escravas criou no mundo dos senhores uma divisão racial do sexo. A esposa branca era a dona de casa, a mãe dos filhos. A indígena, e depois a negra e a mulata, o território do prazer.

Disputas pelo acesso à terra também marcaram a ocupação das terras açucareiras e não faltavam os que “infiltravam-se manhosa e furtivamente” – no entender de um observador, em 1635 – em terras virgens, na esperança de enriquecer graças à instalação de engenhos. O engenho de açúcar correspondia a uma estrutura extremamente complexa. Estrutura, diga-se, que se expandiu no Nordeste do Brasil na sua forma clássica, ou seja, associada às grandes plantações e ao trabalho escravo, nos séculos XVI e XVII, aproximadamente. Apesar de assentada em capitais de vulto, capazes de garantir a produção em larga escala, a empresa do açúcar contava igualmente com pequenos empreendedores que abasteciam o engenho com suas canas. Um relatório holandês de 1640 informa que somente 40% dos engenhos de Pernambuco moíam canas próprias, e os demais dependiam da matéria-prima fornecida por tais lavradores.

A empresa do açúcar não envolvia só senhores e escravos. Ela abrigava um grupo diversificado de trabalhadores especializados e agregados, que orbitavam em suas franjas, prestando serviços ao senhor de terras. Eram mestres de açúcar, purgadores, caixeiros, calafates, caldeireiros, carpinteiros, pedreiros, barqueiros, entre outros. A eles juntavam-se outros grupos a animar a vida econômica e social das áreas litorâneas: mercadores, roceiros, artesãos, lavradores de roças de subsistência e até mesmo desocupados e moradores de favor compunham uma complexa fragmentação de pequenos ou grandes proprietários. O número de escravos que possuíam (de apenas um a dezenas) permite inferir a diversidade de origens sociais e de situações econômicas. No século XVIII, com o declínio da atividade e o aumento das alforrias, alguns libertos tornaram-se, também, proprietários de partidos de cana.

No que exatamente consistia o engenho? Em outras coisas mais além das gigantescas rodas, movidas a água ou a tração animal, com que são representados nas gravuras dos viajantes. A preocupação com a técnica, por exemplo, era fundamental. A fase agrícola não exigia maiores investimentos pela excelência das terras nordestinas – o massapé –, evitando-se até o uso de arado e adubos. Uma vez plantada, a cana do tipo crioula é colhida após um ano e meio. A colheita se fazia rudimentarmente, com facão e foice. Respeitava-se, todavia, segundo conta o bandeirante João Peixoto Viegas, as “luas próprias”. A força da moenda determinava a produtividade na extração do caldo. Para fazê-la girar, água, bois e cavalos alternavam-se na preferência dos senhores de engenho. Herdadas dos mouros, as rodas d’água chegaram ao Brasil pela mão de habilidosos artesãos. Sempre na vertical, tinha o diâmetro de aproximadamente sete metros. Acoplada ao mesmo eixo da roda d’água havia uma outra roda menor, dentada, chamada rodete, que transmitia o movimento a uma roda maior, esta horizontal e com o mesmo diâmetro da roda d’água, que se chamava bolandeira. O eixo da bolandeira, revestido de um cilindro dentado e reforçado com aros de ferro, transmitia o movimento a dois outros cilindros paralelos, também dentados e reforçados. Era entre eles que se passava a cana.

O cozimento do caldo extraído na moenda era realizado em tachos de cobre pousados sobre um fogo de lenha. O calor no interior das casas de caldeira era vulcânico. Por isso escolhiam-se para esta tarefa escravos fortes e robustos: eram os caldeireiros e tacheiros. A cota diária dos primeiros era de processar três caldeiras e meio de caldos; a dos últimos, a quantidade necessária para preencher, ao fim da jornada de trabalho, de quatro a cinco formas de melado. Muito valorizado era o mestre de açúcar, cujo mister era “dar ponto às meladuras” ou “achar o pulso aos açúcares”. O cronista Fernão Cardim, em 1583, sobre ele escreveu: “tem necessidade cada engenho de feitor, carpinteiro, mestre de açúcar com outros oficiais que servem de o purificar; os mestres do açúcar são os senhores de engenhos, porque em sua mão está o rendimento e ter o engenho fama, pelo que são tratados com muitos mimos, e os senhores lhes dão mesa e cem mil-réis e outros mais, cada ano”. Muitos deles foram levados para as Antilhas, por holandeses, franceses e ingleses, quando esses instalaram ali seus engenhos. A purga ou purificação consistia em acondicionar o caldo cozido em formas cônicas de barro com um furo através do qual o melado escorria durante alguns dias. Tais formas assentavam-se sobre estrados de madeira, com orifícios próprios para acomodá-las. No interior desses pães – nome dado às formas –, o açúcar se depositava de acordo com o valor comercial. Na parte superior, o branco, mais caro e fino; na inferior, o mascavo. Para a fabricação de pães de açúcar, havia olarias nos engenhos. Depois de secos, os diferentes tipos de açúcares eram embalados para comercialização. Levados em caixas por transporte fluvial ou lombo de animais e carros de boi, chegavam até os portos de embarque. Muitos engenhos possuíam ainda destilarias para a produção de aguardente utilizada no escambo de escravos e banguês para a fabricação de rapadura. Seguiam-se oficinas, estrebarias e armazéns.

Quem plantava, colhia, botava a cana para moer, acondicionava e transportava o açúcar até o mar? O escravo: de início o indígena e depois o africano. Deve-se lembrar que desde o século XV, no Sul de Portugal e posteriormente nas ilhas do Norte da África, a escravidão de negros em associação com engenhos de açúcar era comum. Intensificou-se ao longo dos séculos XVI e XVII, graças ao tráfico para o Brasil. A importação de africanos cobria a falta de mão de obra, uma vez que as epidemias e a mortalidade ligadas ao trabalho forçado, associadas à fuga de tribos inteiras para o interior, acabaram por inviabilizar o trabalho cativo dos índios. Dizia o padre Anchieta que “os portugueses não têm índios amigos que os ajudem porque os destruíram todos”. Se, por um lado, a escravidão indígena durou até o século XVIII, no planalto paulistano, absorvido pela pequena produção de trigo para consumo interno, a percentagem de escravos índios envolvidos na produção do açúcar foi, por outro lado, baixando à medida que os senhores enriqueciam e podiam importar africanos. Isso começou a acontecer, principalmente na Bahia e em Pernambuco, a partir da segunda metade do século XVI.

Nas áreas rurais, as plantações drenavam escravos sem cessar. Submetidos a senhores e administradores, os cativos tinham que se integrar a uma divisão de trabalho bastante sofisticada. Na lista do engenho baiano Freguesia, encontramos escravos exercendo as funções de oficiais da casa de caldeira, purgadores, no serviço de enxada, como trabalhadores da casa de caldeira, do serviço de moenda ou da horta, como carreiros, carapinas, pedreiros, condutores de saveiros, costureiras, bordadeiras, lavadeiras, entre outros. Tratá-los como “coisa” era natural, regra, aliás, seguida pela Igreja Católica, que os possuía às centenas em seus conventos e propriedades. O castigo físico exagerado era, contudo, condenado. Todo o cuidado que lhes era dispensado devia ser entendido como zelo pelo capital que representavam. O jesuíta Antonil advertia os senhores de engenho: “Aos feitores, de nenhuma maneira se deve consentir o dar couces, principalmente nas barrigas das mulheres que andam pejadas [ou seja, grávidas], nem dar com paus nos escravos porque na cólera não se medem os golpes, e pode ferir na cabeça um escravo de muito préstimo, que vale muito dinheiro, e perdê-lo”. Mais eficiente seria dar “algumas varadas com cipó às costas”. Rações de farinha de mandioca ou milho, coquinhos chamados aquês, feijões e hortaliças compunham o cardápio alimentar dos moradores do engenho, e, por extensão, em maior ou menor quantidade, também, dos escravos. Carne de galinha era excepcionalmente servida aos doentes. Por outro lado, a aguardente, consumida como fonte de calorias, causava graves problemas de saúde. Junto à cachaça, a maconha, à época denominada fumo de Angola ou pango e trazida clandestinamente nos navios do tráfico, era utilizada para aliviar os sofrimentos do cativeiro. As roupas, por sua vez, eram raras. Não foram poucos os cronistas e viajantes a observar que os escravos cobriam-se, geralmente, com muito pouco. A Igreja admoestava os senhores para que evitassem trazê-los “indecentemente vestidos”, como se queixava o jesuíta Jorge Benci. As mulheres vestiam saia e blusa feitas com panos de Surrate ou baeta, e os homens usavam apenas calça, permanecendo sem camisa.

Os escravos distinguiam-se em boçais – como eram chamados os recém chegados da África – e ladinos, os já aculturados e que entendiam o português. Ambos os grupos de estrangeiros opunham-se aos crioulos, aqueles nascidos no Brasil. Havia distinções entre as nações africanas e, dada a miscigenação, a cor mais clara da pele era também fator de diferenciação. Aos crioulos e mulatos reservavam-se as tarefas domésticas, artesanais e de supervisão. Aos africanos, dava-se o trabalho mais árduo. Em contrapartida, muitos recebiam em usufruto parcelas de terra onde podiam cultivar, nos fins de semana e feriados, produtos agrícolas mais tarde revendidos. Tal comércio, por pequeno que fosse, permitiu a alguns comprar a própria liberdade. Não é raro se encontrar nos registros deixados por senhores de engenho as formas de pagamento utilizadas por seus escravos por conta de sua liberdade: ouro, prata e efeitos. Estes podiam ser valores negociáveis (créditos, por exemplo) advindos desse pequeno comércio. A liberdade também podia ser obtida graças às alforrias de pia concedidas em dias de batismo, ou outras, formalizadas nos testamentos do senhor. As tensões entre os grupos de homens de cor não eram pequenas. Não poucas vezes, os crioulos e mulatos antagonizavam com os negros africanos, a ponto de pedir a seus senhores que estes lhes passassem as piores tarefas. Em 1789, por exemplo, os escravos do senhor de engenho baiano Manuel da Silva Ferreira exigiam-lhe, durante um levante: “Para seu sustento, tenha lancha de pescarias e quando quiser comer mariscos, mande seus pretos Minas”.

Como se vê, a empresa do açúcar era complexa e envolvia terras, técnicas e homens. No século XVII, ia de vento em popa. Isso tudo era alvo de grande cobiça por parte dos holandeses. Sobretudo porque, durante a Unificação Ibérica (1580–1640), encontravam-se interditados de realizar negócios no Brasil. Afinal, a luta pela independência das Províncias Unidas era uma luta contra os Felipes espanhóis, o que, automaticamente, tornava os flamengos inimigos dos portugueses. Felipe II dera ordens expressas a respeito deste particular: “Nenhuma nau, nem navio estrangeiro” poderia comerciar em portos do Reino ou das Conquistas sem licença expressa e assinada pelo rei. Se, durante anos, holandeses comerciaram em nosso litoral, alguns deles tendo se tornado até senhores de engenhos – é o caso de Erasmo Schetz, que comprou em 1540, de Martim Afonso de Souza, um engenho em São Vicente –, agora viam a possibilidade de tomar conta da empresa do açúcar como um todo. E isso sem ter que pagar tarifas ou licenças à Coroa portuguesa (ou espanhola, a partir de 1580) e passando, além do mais, a controlar o refino e o comércio colonial do produto. A política restritiva da Coroa espanhola estimulava, portanto, uma reação, cristalizada na invasão de Olinda e Recife entre fevereiro e março de 1630. Começava aí uma contenda bélica entre duas potências europeias que eram também potências coloniais. A vantagem, segundo o relatório de um funcionário do Brasil holandês, é que não existia no Novo Mundo região mais fácil para conquistar do que a América portuguesa, bastando para isso ocupar dois ou três portos; na América espanhola seria indispensável ocupar extensas áreas.

Entre 1630 e 1632, os flamengos ficaram à mercê da guerra lenta: uma guerra feita de emboscadas e assaltos, levados a termo por esquadrões compostos por negros, índios e soldados da terra, que os mantinham nas praças fortes do litoral, mas que deixavam os engenhos e a produção de açúcar fora de seu alcance. Em 1635, a ajuda na forma de uma armada de socorro enviada pela Coroa foi desbaratada. Caiu a fortaleza de Nazaré, no cabo Santo Agostinho, e rendeu-se o arraial de Bom Jesus. Sobrou apenas uma pequena resistência em Porto Calvo, reunindo as colunas do índio Felipe Camarão e do negro Henrique Dias sob o comando do napolitano Bagnuolo. Soldado experiente, Bagnuolo mostrou-se sempre pessimista sobre o papel dos ataques volantes, chegando a queixar-se a Felipe IV: “não defender as praças e retirar-se para os matos é contra a reputação das armas de Vossa Majestade”. Temia ainda a precária ação dos soldados recrutados na Paraíba e em Pernambuco, que, uma vez tendo recebido o soldo, desapareciam nos matos. Previa, assim, o desfecho que teria essa primeira fase das guerras do açúcar. Enfraquecida pela Guerra de Trinta Anos (1618-48), que travava contra os protestantes, a Espanha, por meio do protegido de Felipe IV, o conde duque de Olivares enviou para a colônia minguados reforços. Lisboa pouco podia interferir, fazendo-se a resistência à custa e nas costas dos luso-brasileiros. Um mercenário inglês, Cuthbert Pudsey, assim resumiu a primeira fase da ocupação: “no começo, esta guerra no mato era algo estranho para nossos homens, devido às emboscadas que o inimigo propositadamente nos armava nas matas, invenção assassina que nos matava muitos soldados [...] tendo pago um alto preço, reforçamos nossas companhias com espingardas, tornando nossos homens peritos no uso delas, de modo que em breve tempo nos podemos vingar do inimigo, dispondo ademais de negros que conheciam bem o interior e que guiavam nossos passos”.

Preocupados em consolidar o domínio da terra e reconstruir a economia, os dirigentes da Companhia das Índias Ocidentais enviam para cá João Maurício, conde de Nassau-Siegen, com o título de governador-geral do Brasil. Ele chegou a Recife a 23 de janeiro de 1637, apressando-se em esmagar os últimos focos de resistência. Nassau veio com uma verdadeira corte, onde conviviam pintores como Franz Post e Albert Eckhout e sábios como George Markgraf e Wilhem Piso. Empenhou-se em transformar a vila, mandando construir dois palácios: o de Vrijburg, para a sede do governo, e o outro, o de Boa Vista, para sua residência. Entre os dois, ergueu a cidade nova de Maurícia, adornada com um jardim botânico e um museu, à época denominado gabinete de curiosidades. No Recife, a pequena aglomeração de 250 casas passou para aproximadamente 2 mil; aos antigos moradores misturaram-se os recém-chegados holandeses, comerciantes franceses, escoceses, dinamarqueses e ingleses que ali se estabeleceram. Na Paraíba, segundo o cronista holandês Gaspar Barléu, Nassau foi saudado por uma comitiva tapuia que lhe ofertou arcos, flechas e penas de ema, em sinal de paz e cortesia. Retribuiu-lhes com vestimentas de linho, camisas de mulher, facas, miçanga e anzóis. Mas, se as coisas pareciam ir bem com os indígenas, não o foram com os colonos. Dos engenhos existentes nas capitanias de Itamaracá, Paraíba e Rio Grande do Norte, quase a metade foi abandonada pelos proprietários, confiscada ou vendida pelo governo holandês entre 1637 e 1638. Os vazios criados pelo abandono dos engenhos foram preenchidos por holandeses, judeus e luso-brasileiros, graças ao financiamento providenciado pela Companhia. Criou-se, assim, um grupo de novos proprietários interessados no sucesso da empreitada flamenga. E entre os senhores que preferiram abandonar suas terras, os chamados retirados de Pernambuco, a maioria instalou-se entre a Bahia e o Rio de Janeiro, arrendando engenhos e dedicando-se às atividades agrícolas. Outros optaram por casar-se dentro de famílias abastadas, ingressando na burocracia ou na carreira militar. Houve, também, quem vivesse do aluguel dos seus muitos escravos, levados consigo na fuga.

Nuvens sombrias na economia anunciavam, contudo, uma mudança. O colapso do preço do açúcar na bolsa de mercadorias de Amsterdã entre 1642 e 1644 destruiu o otimismo que Nassau encorajara em sua verdejante Maurícia. Enquanto o recém-instalado governador-geral incentivava o financiamento e a melhoria dos engenhos, estimulando, entre outros aspectos, a implementação de uma política de livre comércio na qual a Companhia ficava restrita ao monopólio do pau-brasil, de escravos e de munição, na Europa, o açúcar se desvalorizava. Endividados com a compra de escravos, ferramentas e cobres, os senhores de engenho começaram a atrasar os pagamentos à Companhia. Na Metrópole, em resposta, comerciantes passaram a exigir de seus representantes e comissários importantes somas em pagamento do que lhes fora fornecido, provocando escassez de numerário. Para satisfazer o comércio da Metrópole, os negociantes recifenses passaram, por sua vez, a exigir satisfação dos mercadores do interior, que, por seu turno, executaram seus devedores luso-brasileiros. Com essa infernal cadeia de mazelas, seguiu-se a bancarrota. Em 1642, com Nassau ainda no comando, começaram a chover notícias sobre a ruína de comerciantes do Recife, ruína que empurrara para a falência grandes mercadores flamengos. O preço dos imóveis começou a cair, seguido da contração da venda de escravos e do tráfico marítimo. Para culminar, as ações da Companhia despencaram.

No plano político, outra cadeia, esta de fatos, ajudaria a precipitar a restauração de Pernambuco. Não nos esqueçamos de que, em 1640, d. João IV assumira o trono e que, com a perda dos territórios no Oriente, o Brasil ganhava importância. Enquanto isso, na Holanda, insatisfeitos com as despesas e prejuízos, os diretores da Companhia exigiram o retorno de Nassau. Ele regressou em 1644. No mesmo ano, uma conjura de pernambucanos foi abortada, mas nem por isso cessou a agitação contra o invasor. Forças luso-brasileiras fustigavam as fronteiras do território ocupado pelos holandeses, encorajando pequenas revoltas e guerrilhas. No ano seguinte, o Maranhão seria abandonado, e no Ceará a guarnição flamenga acabaria massacrada por índios bravios. Em 1645, rebentava a revolta de Pernambuco, que ganhou o conjunto dos territórios outrora ocupados pelos holandeses. As tropas de Hendrick van Haus foram batidas e os flamengos voltaram a refugiar-se nos portos.

A operação montada para apoiar os revoltosos foi comandada por um rico agricultor mulato, inicialmente aliado dos holandeses, mas desde 1644 bandeado para o lado luso-brasileiro. Tratava-se de João Fernandes Vieira. Essa revolta foi a de devedores que tinham dois objetivos: alegando sua participação na luta contra os flamengos, pretendiam livrar-se das dívidas que tinham acumulado e garantir a posse de engenhos cujos antigos senhores tinham se “retirado”. Engenhosos, não? Tropas regulares sob o comando do governador da Bahia, Antônio Telles da Silva, invadiram os territórios antes ocupados, somando aos seus os exércitos comandados por Felipe Camarão e Henrique Dias. Encontraram pela frente soldados enfraquecidos pela partida de seu chefe militar, Nassau, e desestimulados pelo atraso no pagamento de soldos. Multiplicavam-se as deserções. A guerra foi declarada em 1646. Duas batalhas campais, em Guararapes, selaram, entre 1648 e 1649, o destino dos holandeses.

Portugal resolveu intervir num momento em que os holandeses confrontavam a Inglaterra de Cromwell. Uma guerra iniciada em 1652 absorveria todas as forças, armas e esquadras das Províncias Unidas. Lá, não apenas discordâncias haviam enfraquecido a Companhia como um grupo de burgueses interessados na via pacífica ocupava o governo. E percebera-se, com rapidez, que o Brasil ocupado era pior negócio do que enquanto colônia portuguesa. Através do comércio com Portugal, muito ainda se poderia lucrar em terras de açúcar, pau-brasil e outros produtos. A Companhia do Brasil, recém-criada em Lisboa, armou uma esquadra que zarpou para o Recife. Em 26 de janeiro de 1654, pressionados por terra e mar, renderam-se os poucos pontos que os holandeses ainda mantinham no litoral. Em poucos dias, recuperou-se o Recife.

A resolução do conflito passou por interferência inglesa. Recém-reconduzido ao trono, em 1660, Carlos II Stuart casou-se com Catarina de Bragança. O tratado de paz firmado com a Holanda, em Breda, deixava a totalidade do Brasil a Portugal, mediante largas concessões no Oriente, uma importante indenização e a possibilidade para os flamengos de seguir fazendo comércio nas costas brasileiras. As Províncias Unidas, por sua vez, renunciavam a qualquer ambição territorial. As guerras do açúcar tiveram sérias consequências para o Nordeste. Em curto prazo, deixaram ruínas. Colheitas destruídas, gado capturado, escravos aquilombados. Foram necessárias dezenas de anos para que Pernambuco voltasse a integrar a empresa do açúcar. Em longo prazo, comerciantes judeus e agricultores holandeses transferiram para as Antilhas o conhecimento de técnicas agrícolas aprendidas no Brasil. A tendência foi acompanhada por franceses e ingleses, e a presença de um maior número de produtores no mercado mundial empurrou a economia da Colônia para uma grande crise, da qual só sairia com a descoberta de ouro em Minas Gerais.


Veja também:


Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.


Notas:

[1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010,pp., 33 a 41.

[2Em geral “Os engenhos coloniais possuíam uma grande estrutura, dividida em:

  • Plantações: além da cana-de-açúcar, haviam plantações (verduras, legumes e frutas) de outros produtos;
  • Casa Grande: era o local em que concentrava o poder dos engenhos…
  • Senzala: eram locais com péssimas condições que tinham como objetivo, abrigar pessoas escravizadas;
  • Capela: construída para representar a crença dos moradores do engenho, principalmente, dos portugueses. Local em que as missas e demais celebrações religiosas eram realizadas;
  • Casas de Trabalhadores Livres: locais em que os trabalhadores livres habitavam;
  • Curral: local que abrigava os animais;
  • Canavial: local em que era cultivada a cana-de-açúcar;
  • Moenda: local em que a cana-de-açúcar era moída pela tração animal, força humana ou moinho;
  • Casa das Caldeiras: local em que o produto era aquecido;
  • Casa das Fornalhas: local em que a cana era aquecida e transformada em melaço;
  • Casa de Purgar: local responsável por refinar o produto, o transformando em açúcar”. Texto e Imagem disponíveis em: <Engenho de Açúcar no Brasil Colonial >. Acesso em 22/09/2022.

 

14 setembro 2022

Poder & Poderes


Por DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]


Criação do Governo Geral e da primeira capital do Brasil [2]

O primeiro instrumento institucional de ocupação das terras americanas foi a feitoria. Através delas faziam-se contatos com índios da terra e explorava-se pau-brasil. Cabia ao feitor evitar a deserção de marinheiros, receber produtos da terra que seriam enviados ao Reino e tentar impedir que embarcassem, sem autorização, indígenas escravizados e, sobretudo, mulheres brancas. Entre 1502 e 1504, criaram-se feitorias em Cabo Frio, na Bahia e em Pernambuco. No fim de 1520 acumulavam-se na mesa real os pedidos de gente que queria se estabelecer aqui. A promessa de “ganhar uma terra que não tem nenhum proveito e conquistá-la” era muito utilizada. Outro argumento era o de que a instalação de algumas povoações evitaria que os índios vendessem pau-brasil a estrangeiros. 

O sucesso da fórmula aplicada nas ilhas do Norte da África, Madeira e Cabo Verde, fez com que d. João III optasse pela divisão das terras em capitanias. Uma vez demarcadas, cada uma com cinquenta léguas de costa, foram distribuídas entre fidalgos. Como donatários, cabia-lhes criar vilas e povoações, exercer justiça, nomear juízes e oficiais, incentivar a instalação de engenhos, marinhas de sal e moendas de água, arrendar terras do sertão. Uma série de vantagens e poderes funcionava como chamariz para os colonos. Em contrapartida, recebiam “um foral dos direitos, foros, tributos e cousas que na dita terra hão de pagar”.

Povoar o Brasil fazia-se urgente. A acintosa presença francesa obrigava uma tomada de posição. Por outro lado, o comércio com as Índias custara caro ao tesouro real, mas fizera a fortuna de muitos comerciantes capazes de aplicá-la em outros negócios que lhes parecessem rentáveis. 

O sistema malogrou, contudo, devido ao tamanho do território colonial, assim como em razão de ferozes ataques indígenas. Conforme mencionamos, quando se fundou o governo-geral e Tomé de Souza foi enviado para cá, apenas três das quinze capitanias distribuídas haviam sobrevivido. Chegado em 1549, o primeiro governador-geral ergueu a primeira vila com foros de cidade, São Salvador, na Bahia, e deu início a um violento combate contra os tupinambás, matando e castigando parte deles para dar exemplo, como registra um documento do período. Trouxe consigo os padres jesuítas e o plano para a instalação urgente de uma estrutura político-administrativa que evitasse o naufrágio completo da colonização: o governo--geral. Na bagagem, Souza trazia ainda um regimento – instruções para pessoas e instituições – cujas preocupações incidiam sobre questões militares e de povoamento: assentamento de colonos, distribuição de gado bovino, criação de órgãos locais de administração, as câmaras, etc. Em 1588, outro regimento foi aprovado. Nele, novas diretrizes apontavam para uma maior presença do Estado português na Colônia: defesa da costa, exploração de salitre para defesa da armada, prospecção de minas de metais, proteção contra ataques e reafirmação da escravização de indígenas por guerra justa, assim como instalação da Relação – ou seja, tribunal de instância superior, na Bahia –, na verdade só instituída em 1609. 

Ao longo do tempo, governadores e depois vice-reis trariam, cada qual, seus regimentos e instruções, ao sabor das diversas conjunturas. Não houve consistência nas diretrizes administrativas até meados do século XVIII. A fragilidade do sistema retardava a instalação de um governo centralizador, tal como se desejava no Reino, comprometendo, simultaneamente, os interesses fiscais, políticos e estratégicos da Metrópole. Apesar disso, começava a formação de quadros burocráticos, formação, contudo, marcada pela precariedade. Numa correspondência datada de 1550, o ouvidor-geral Pero Borges faz menção à proliferação de funcionários metropolitanos, muitos deles degredados com as orelhas cortadas – forma de castigo humilhante –, outros tantos muito pobres e ignorantes. Entre 1602 e 1607, o oitavo governador do Brasil, d. Diogo Botelho, encontrou um tal descalabro na figura de funcionários que lesavam o fisco e exerciam tranquilo contrabando, que efetuou várias demissões na capitania de Pernambuco. A incompetência judicial que então se instalava iria somar-se à distância física entre o centro de decisões administrativas, Lisboa, e as cidades litorâneas brasileiras. E entre estas e as vilas do interior. Mal se instalara, a máquina do governo começava a emperrar. O braço da lei não atingia as áreas remotas. As próprias leis eram profusas e confusas. Os magistrados, corruptos. A voracidade de meirinhos, escrivães e juízes prevaricadores era insaciável. A administração judiciária concentrava-se em algumas vilas e cidades, deixando o resto da Colônia nas mãos da justiça privada e do mandonismo local. Nasciam, assim, outros poderes além do exercido pelos representantes da Coroa.

A Fazenda, por sua vez, era dominada pela necessidade de ampliar tributos, recursos e impostos para atender às necessidades crescentes do Estado. No mais, controlava casas para a alfândega e nomeava funcionários necessários ao seu funcionamento nos portos. Composta por guarnições de primeira, segunda e terceira linhas, a organização militar reunia tropas e regimentos de cavalaria, infantaria e artilharia. Foi, contudo, apenas no século XVIII, quando os conflitos com os espanhóis ao sul da Colônia se acentuaram, que tais “forças armadas” coloniais começaram a se profissionalizar.

A organização eclesiástica também se mostrou precária no século XVI. As razões? Havia dificuldade de recrutamento de sacerdotes e a autoridade episcopal não se instalara entre nós. Quando o primeiro bispado foi criado na Bahia, em 1551, a terra e os moradores eram tão pobres que não podiam arcar com as despesas de manutenção do corpo eclesiástico. Gastos com a instalação de colégios para a Companhia de Jesus faziam com que sobrassem poucas rendas, pagas pela Coroa, para o clero secular. Foram inúmeros os conflitos entre autoridades coloniais e bispos, entre membros do clero secular e as ordens religiosas e na própria hierarquia de ordens e do clero secular. Este se estruturou no bispado de Salvador, elevado a arquidiocese e sede da província eclesiástica do Brasil em 1676, ao mesmo tempo em que eram criadas as dioceses do Rio de Janeiro e Olinda (1676), e depois as do Maranhão (1677), Belém (1719), São Paulo e Mariana (1745). O clero regular, representado por diferentes ordens religiosas, era independente, graças a doações vindas de matrizes europeias, esmolas da população local e rendimentos de propriedades privadas. Um dos órgãos metropolitanos que intervinham na administração eclesiástica colonial era a Mesa de Consciência e Ordens. O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição não se instalou jamais. Conforme foi dito, registram-se apenas denúncias avulsas e visitas de inquisidores à Bahia, Pernambuco e Grão-Pará, em busca de hereges, cristãos-novos, feiticeiros, sodomitas e outros pecadores que infringiam a moral e a fé católica.

O vasto terreno das magias amorosas, assimiladas à feitiçaria e relacionadas pelo Santo Ofício à ocorrência de pactos diabólicos, foi uma das obsessões dos inquisidores. As fontes inquisitoriais, relativas ao vasto período do século XVI ao XVIII, em várias partes da Colônia, trazem à luz diversos artifícios então utilizados, que poderíamos chamar de magia erótica. Antes de tudo, as cartas de tocar, magia ibérica que se fazia por meio de um objeto com o nome da pessoa amada e/ou palavras gravadas; quando encostado à pessoa, tal objeto seria capaz de seduzi-la. Nas visitações que fez o Santo Ofício no século XVI, se descobrem várias bruxas, pois assim foram chamadas as acusadas de vender tais cartas e divulgar outras magias eróticas. Também havia casos registrados nos tribunais episcopais e daí transferidos ao inquisitorial. Um exemplo: em Minas, no século XVIII, certa mulher de nome Águeda foi acusada de possuir um papel com algumas palavras e cruzes, carta que servia para as mulheres tocarem em homens desejados sexualmente. No Recife, alguém chamado Antônio Barreto era quem portava um papel com signo-salmão (estrela de seis pontas) e o credo às avessas, magia que servia para fechar o corpo e facilitar o acesso a mulheres: sujeitaria qualquer mulher que tocasse à sua vontade. Seriam inúmeros os exemplos de perseguições religiosas às tradições culturais que fugissem ao cristianismo.

Além das cartas de tocar, recorria-se também, com idênticos propósitos, às orações amatórias, muito comuns na Colônia e universalmente conhecidas. Trata-se de um ramo de magia ritual em que se acreditava ser irresistível o poder de determinadas palavras e, sobretudo, do nome de Deus, mas que não dispensava o conjuro dos demônios. Tudo com o mesmo fim de conquistar, seduzir e apaixonar.

Além da Igreja e do Estado, outras formas de poder iam lentamente se estruturando. O familismo político vicejava nas cidades litorâneas, unindo prósperos senhores de engenho a funcionários metropolitanos. Ao longo do século XVII, os primeiros ocuparam postos de comando nas câmaras e suas ações arbitrárias caíam sobre as costas de arrendatários, meeiros e lavradores, interferindo nos resultados dos julgamentos e das ações que corriam na justiça colonial. Os casamentos dentro de pequeno grupo de famílias permitiam que estas se revezassem em postos de prestígio. Nesses grupos era constante a manipulação de alianças de família para resolver, na esfera pública, problemas domésticos. Livros de genealogia mostram o entrelaçamento de apenas sete famílias piauienses, que constituíam a elite local, emaranhadas num cruzamento consanguíneo que atravessou séculos. Em qualquer parte da Colônia, moças que se casavam sem consentimento ou bênção eram excluídas das redes de sociabilidade familiar, já que isso era considerado grave afronta ao grupo.

Uma segunda camada de colonos, constituída por plebeus, lavradores e “homens de qualidades”, como se lê em algumas cartas de sesmarias, fixava-se silenciosamente com seus gados e escravos no interior. Vagava pelos ermos sertões toda uma população desajustada e apartada do trabalho regular, a princípio remediada. Tais camponeses volantes eram considerados pelas autoridades “facinorosos e bravos”. Muitos viviam com suas famílias, isolados e solitários, nos roçados que cultivavam. Outros podiam ser ladrões de gado ou formigueiros, nome que se dava aos que roubavam coisas de pouco valor. Não faltava quem se organizasse em bandos e quadrilhas, agindo em assaltos pelas estradas.

Contudo, não somente a população pobre proliferava. Por todo o sertão surgiram chefes locais abastados, que haviam criado fortuna e zonas de poder local e pessoal. Tais potentados não hesitavam em medir forças com autoridades e vizinhos. Confrontos sanguinários lavavam a honra de famílias inteiras e seus agregados durante gerações. Os donos de tais terras, apoiados em escravos e dependentes, sentiam-se impunes dentro de seus domínios e até de uma região. Tinham parentes e amigos voluntários por aliados. Impensável contrariá-los. Só que o vizinho pensava da mesma maneira. Assim, nunca carecia motivo para desavenças, bastando – como explicava o padre Antonil em 1711 – “um pau que se tirasse ou um boi que entrasse no canavial por descuido para que se declarasse o ódio escondido e se armassem demandas e pendências mortais”. Os dias de festas religiosas, momento em que a comunidade se juntava, era o preferido para acertos de contas: tiroteios dentro de igrejas, emboscadas durante a procissão, troca de punhaladas nos locais em que se vendia bebida. As lutas travadas entre Pires e Camargo, em São Paulo, entre 1640 e 1660, ou entre os Monte e os Feitosa, de 1724 a 1745, bem ilustram o caráter dessa animosidade feita de desprezo pela autoridade da Coroa. A impunidade grassava e contaminava a população de vilas e vilarejos. Não raras vezes, esta se revoltava contra a passagem de um desembargador da Relação ou de escrivães – empregados na cobrança de impostos ou no recrutamento militar. Poucas autoridades metropolitanas ousavam interferir nos “negócios do sertão”. A despeito das diferenças entre o que ocorria no litoral e no interior, entre os sertões de fora (do Ceará à Paraíba) e os sertões de dentro (do Sudeste do Maranhão ao rio São Francisco, em Minas Gerais), o Estado português seguiu buscando condições de controle das populações e de sua capacidade de criar riquezas na América portuguesa. O longo braço do rei tentava estender-se, interior adentro, muitas vezes à revelia dos poderosos locais. Mas sempre em busca de riqueza.

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Veja também:

Sobre a Igreja no período colonial, veja o capítulo 4 do meu trabalho:


Fonte / Referência bibliográfica:

  • DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.


Notas:

  • [1] Texto copiado na íntegra de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 28 a 32.

06 setembro 2022

Independência & Independências




Por
DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]
 

A consolidação da nossa independência, através de D. Pedro I, foi marcada por conflitos em diferentes províncias [2]

Além de alterar o cotidiano carioca, a transferência da Corte portuguesa teve outros efeitos bem mais profundos sobre a Colônia. O preço pago pelo apoio inglês, não só na proteção aos navios que trouxeram a família real, como também no combate às tropas francesas estacionadas em Portugal, era alto. Ele implicou tratados comerciais, nos quais d. João previa a abertura dos portos “às potências que se conserva[ssem] em paz e harmonia com a minha real coroa”, e ainda em tarifas alfandegárias menores para negociantes britânicos. Se isso era desastroso para a economia portuguesa, o mesmo não pode ser dito em relação ao Brasil. Na prática, a nova medida significava a desativação do “exclusivo comercial”, mecanismo através do qual a Metrópole impunha os preços – quase sempre inferiores aos do mercado internacional – aos produtos coloniais. É por essas razões que se costuma afirmar que nossa independência teria ocorrido nesse momento, em 1808, e que 1822 teria representado apenas sua consolidação.
Vejamos o que ocorreu entre essas duas datas.
Vale a pena lembrar que, do ponto de vista político, a vinda da Corte teve um efeito ambíguo. Não se tratava de uma simples visita da rainha, “d. Maria, a louca”, e de d. João, príncipe regente, com seus demais familiares e lacaios. Longe disso, a transmigração implicou a transferência de inúmeros funcionários régios, boa parte deles pertencente à nata da administração e da aristocracia portuguesas. Uma vez instalada, a nova Corte deu origem a uma situação inusitada: o Império colonial português passa a ter duas sedes, uma em Lisboa e outra no Rio de Janeiro. Enquanto a ameaça napoleônica pairou sob o mundo europeu, houve justificativa para tal situação. A partir de 1815, porém, ela deixou de existir. Essa data marca a derrota definitiva de Napoleão e, ao mesmo tempo, o progressivo restabelecimento dos sistemas monárquicos europeus.
Na América, a implantação da Corte tropical coincidiu com a difusão da produção cafeeira em larga escala. Para os servidores do regente não era difícil conseguir a confirmação de sesmarias, transformadas rapidamente em imensas fazendas de café. Isso para não mencionarmos a compra de terra ou então o acesso a ela via casamentos e sociedades com a elite local. Dessa maneira, a Corte que acompanhou a família real foi criando raízes no território brasileiro e formando um poderoso grupo contrário ao retorno de d. João VI. A tensa relação entre essa elite e a que permaneceu em Portugal culminou em 1820, quando tem início a Revolução do Porto. Tratava-se de um movimento liberal, voltado para a convocação de uma Assembleia Constituinte, mas que exigia o retorno imediato do rei. Um ano após sua eclosão, d. João e uma parcela significativa de sua Corte retornavam. No entanto, a dualidade de poder não havia sido extinta: como regente brasileiro ficou d. Pedro e, com ele, segmentos importantes do antigo grupo que havia fugido de Portugal. O alvo da pressão volta-se agora para o regente: em 21 de setembro de 1821, um decreto determina seu retorno imediato, na intenção de evitar o risco do retorno do Rio de Janeiro à condição de sede do Império após a morte de d. João VI. Mas d. Pedro resiste a essas pressões e, a 9 de janeiro de 1822, torna pública sua decisão de permanecer no Brasil. Nesse mesmo mês, a metrópole portuguesa nivela o Rio de Janeiro à condição das demais províncias, gesto a que o regente responde com a expulsão das tropas lusitanas do Rio. As duas cortes, dessa forma, disputam o poder, até que, em 7 de setembro, d. Pedro rompe definitivamente com a antiga pátria-mãe, sagrando-se imperador a 12 de outubro do mesmo ano.
Vista sob esse ângulo, a independência do Brasil pode ser definida como um movimento bastante elitista, quase uma disputa entre aristocratas portugueses. Uma imagem que não deixa de ser interessante, embora incompleta. Para compreendermos a especificidade de nosso processo de independência, é necessário lembrarmos que ele conviveu com outros projetos alternativos, pois, há muito, uma parte da elite colonial aspirava à ruptura com Portugal. Tais propostas de independência, contudo, tinham uma forte marca regional, como fica claro na denominação de duas delas: a Inconfidência Mineira e a Revolução Pernambucana (ocorrida em 1817).
Entre 1820 e 1822, as elites regionais tiveram dúvidas em relação a qual projeto político deveriam seguir. Paradoxalmente, mais do que a “independência” liderada por d. Pedro, o movimento português de 1820 parecia atender ao anseio de autonomia regional. De caráter liberal e constitucional, a Revolução do Porto contou com representantes coloniais, eleitos nas diversas províncias. Essas, por sua vez, passaram a ser beneficiadas pelo direito de eleger suas respectivas juntas governativas. A medida agradava em muito às elites regionais, pois, a partir de então, elas passavam a ter controle sobre o sistema político e as rendas internas das ex-capitanias.
A partir de 1821, a tendência, portanto, era de que a maior parte das classes dominantes coloniais apoiasse o governo português, deixando de obedecer às ordens emitidas pelo Rio de Janeiro. Isso, de fato, ocorreu, mas contou com um importante contraponto: o movimento constitucionalista brasileiro. O sucesso inicial da independência se deve à adesão de várias províncias à convocação da Assembleia Constituinte e Legislativa do Brasil, sugestão acatada pelo regente em 3 de junho de 1822.
A posição de d. Pedro, no entanto, era ambígua. O apoio que dava ao movimento constitucionalista era marcado por ressalvas do tipo: “a Constituição deve ser digna do meu poder”, e assim por diante. Não é de se estranhar, portanto, que, após o 7 de Setembro, as elites regionais ficassem divididas. Apoiar as cortes portuguesas significava submeter-se a um governo liberal, ao passo que acatar ao imperador implicava o risco de retorno ao absolutismo. Além disso, havia divisões nas tropas estacionadas nas diversas províncias, umas fiéis à Corte portuguesa e outras à carioca. Por isso, a independência foi seguida por uma série de guerras. No Norte e Nordeste, o processo de ruptura com Portugal esteve longe de ser tranquilo. Entre março e maio de 1823, Belém registra levantes pró-Lisboa. O mesmo ocorre no Maranhão, Piauí e Ceará, onde os conflitos armados estendem-se de outubro de 1822 a janeiro de 1823. Na Bahia, as lutas desdobram-se por quase um ano. Tais embates não pararam por aí. Na verdade, tiveram desdobramentos bem mais sérios em outras regiões, e punham em xeque a dominação das duas cortes.
A reengenharia política da independência implicava esvaziar a influência das Cortes legislativas portuguesas, criando uma similar nacional. A medida deu certo e foi auxiliada por algumas iniciativas recolonizadoras dos constituintes portugueses. A elas deve em grande parte ser atribuído o sucesso do Grito do Ipiranga, gesto que, se não contasse com o inestimável apoio das elites do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, passaria para a história como mais um berro inconsequente do autoritário d. Pedro. A independência, porém, pregou uma peça nessas elites. Um ano após ser convocada, a Assembleia Constituinte foi dissolvida e, em seu lugar, o imperador designou um pequeno grupo para redigir uma Constituição “digna dele”, ou seja, que lhe garantisse poderes semelhantes aos dos reis absolutistas. Um exemplo disso foi a criação do Poder Moderador, através do qual o monarca reservava para si, entre outras prerrogativas, o direito de nomear senadores, convocar e dissolver assembleias legislativas, sancionar decretos, suspender resoluções dos conselhos provinciais, nomear livremente ministros de Estado, indicar presidentes de província e suspender magistrados.
Não é de se estranhar, portanto, que, lá pelos idos de 1824, parte das elites provinciais encarasse a independência como um retrocesso em relação às conquistas da Revolução do Porto. Tal descontentamento, porém, não significava a luta pela “restauração”, até porque Portugal, por aquela época, também dava uma guinada rumo ao absolutismo. Em vez de voltar a obedecer a Lisboa ou continuar obedecendo ao Rio de Janeiro, a palavra de ordem agora era de independência local e proclamação da República. E é isso que ocorrerá, em Pernambuco, no ano de 1824, quando então é deflagrada a Confederação do Equador, um movimento republicano e de cunho separatista, ou federalista, que contou com a adesão de fazendeiros, homens simples e também de numerosos padres. A rápida difusão da revolta e a violenta repressão que se seguiu dimensionam o grau de descontentamento reinante. Nada mais do que seis províncias apoiam a rebelião contra o despotismo carioca; três delas, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, chegam a fornecer tropas para combater ao lado dos pernambucanos. A repressão, por sua vez, foi violentíssima, deixando com saldo centenas de mortos e dezessete condenados à forca, inclusive clérigos, como Frei Caneca.
Nos anos seguintes, o imperador recua e convoca a primeira Assembleia Legislativa, empossando-a em 1826. O federalismo, almejado pelas elites regionais, continuou, porém, a ser um sonho distante. Para complicar ainda mais o quadro político, d. Pedro, entre 1825 e 1828, enfrenta outro movimento separatista, envolvendo a Província Cisplatina. Essa rebelião, uma vez vitoriosa, dá origem ao Uruguai. A guerra torra grande quantidade de recursos públicos, sendo inclusive uma das causas da falência do Banco do Brasil em 1829. A crise financeira instala-se com o aumento vertiginoso da emissão de moedas para cobrir os gastos públicos, resultando uma inflação igualmente vertiginosa. No Rio de Janeiro, por exemplo, o preço de alimentos básicos da população pobre e dos escravos, como a farinha de mandioca e o charque, dobram em um espaço de poucos anos. O imperador torna-se cada vez mais impopular. Paralelamente a isso, o Exército, ampliado às pressas em razão das lutas contra as tropas portuguesas e grupos separatistas, foge ao controle das autoridades. Compostas em grande parte por mercenários estrangeiros, oriundos das guerras napoleônicas, e homens pobres, muitos deles pardos e negros livres, as forças armadas aliam-se às demais camadas populares nos ataques a comerciantes portugueses. Estes eram odiados por ser considerados responsáveis pela elevação dos preços dos alimentos no meio urbano.
No início da década de 1830, o clima é de guerra civil. Rio de Janeiro, Ceará, Bahia, Pernambuco e Alagoas são palco de levantes armados em que fazendeiros, tropas, pequenos proprietários, índios e escravos se ombreiam, ora contra a centralização do poder, ora como expressão de revolta diante da pobreza e da escravidão. É nesse contexto que d. Pedro I, a 7 de abril de 1831, renuncia ao trono brasileiro. Junto ao medo de ser deposto, havia outro motivo para o gesto: em 1826, com a morte de d. João VI, o imperador tornou-se o virtual sucessor da Coroa portuguesa. Ciente do risco que a ameaça de restauração representava, como munição para movimentos separatistas, d. Pedro renuncia ao trono lusitano em nome da filha, sob o título de d. Maria II. Tal gesto, porém, não é acatado por seu irmão, d. Miguel, lançando Portugal em uma guerra de sucessão dinástica até 1834, na qual, entre os combatentes, estava d. Pedro I – aliás, d. Pedro IV para os portugueses.
Em 1831, a segunda renúncia do imperador buscava apaziguar os ânimos no Brasil. Tal efeito não é difícil de ser compreendido: como herdeiro do trono ficou uma criança – o futuro d. Pedro II –, que nem ao menos havia completado os 5 anos de idade. Na prática, portanto, a abdicação significava a transferência do poder para as elites regionais, tendo em vista que o cargo máximo do governo – inicialmente na forma de regência trina (ou seja, composto por três regentes) e, depois, na forma da escolha de um único regente, como foi Diogo Feijó (1835-37) e Araújo Lima (1837-40) –, passou a ser definido via eleição. A descentralização, porém, ao contrário do imaginado, acentuou ainda mais as tendências separatistas. Como vimos, até o imperador, que desfrutava de uma certa legitimidade decorrente do fato de descender de uma casa reinante europeia e de ter comandado o vitorioso processo de independência, viu seu poder contestado. O que dizer então de um regente? Os grupos dominantes derrotados nas eleições mostravam seu descontentamento através das armas. Por volta de 1835, tais levantes assumiram um perfil claramente separatista. No Pará, uma revolta política lança a província em uma violenta guerra civil, que se estende por cinco anos. A independência local chega a ser decretada, mas os rebeldes, autointitulados cabanos, são violentamente esmagados, deixando como saldo cerca de 30 mil mortos, ou seja, cerca de 20% da população provincial. No extremo sul do país, a Farroupilha tem melhor sorte. A independência do Rio Grande do Sul é alcançada e, durante os anos 1835-45, a então denominada República do Piratini mantém-se separada do Brasil.
Em várias outras províncias, os movimentos separatistas ou federalistas se sucedem, assumindo designações que lembravam o mês de sua ocorrência – Abrilada, Novembrada – ou o nome de seus líderes, como no caso da Sabinada. Vez por outra, porém, tais movimentos fugiam ao controle da elite, tornando-se levantes populares. As chances de esses grupos alimentarem seus projetos de independência eram grandes, pois, nos embates com as tropas oficiais, os fazendeiros armavam os cativos e homens pobres. Além disso, os movimentos separatistas criavam divisões no interior das elites, como era o caso dos liberais exaltados se contrapondo aos grupos que procuravam se alinhar ao governo regencial. Ora, a divisão entre os senhores dava maior eficácia aos movimentos de contestação escravistas, arriscando todo o sistema a sucumbir em razão da luta de classes. Essa possibilidade foi registrada em 1835, quando da descoberta de planos de um levante de escravos muçulmanos em Salvador. Detalhe da Revolta dos Malês: os cativos pretendiam matar todos os brancos e decretar uma monarquia islâmica na Bahia. O Maranhão também apresentou um movimento rebelde com características populares. Iniciada em 1838, entre as elites, essa revolta escapou ao controle delas, passando a ser liderada por um escravo fugido e por um fazedor de balaios (cestos produzidos com talas de palmeiras ou de cipó). A então denominada Balaiada chegou a reunir um exército de 11 mil revoltosos, espalhando terror entre as elites maranhenses e de províncias vizinhas. Nesse contexto de risco de os pobres e escravos assumirem o controle do poder, reproduzindo em grande escala o ocorrido no Haiti em fins do século XVIII, é que se articula entre 1837-40 o retorno dos mecanismos centralizadores do Primeiro Império. O regresso conservador abrirá caminho para a repressão eficaz aos movimentos separatistas e aos levantes de escravos, assim como articulará um projeto nacional que manterá intacto o território brasileiro herdado do período colonial. Contudo, não foram poucos os obstáculos enfrentados por esse projeto. Desde a época da independência, vários testemunhos registraram a ausência de uma identidade nacional brasileira e o desafio de construí-la. Pressentindo as resistências regionais à centralização, o viajante francês SaintHilaire constatou, em 1820, no Rio Grande do Sul: “Nesta capitania até os cães latem de um modo diferente”.



Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.


Notas:

  • [1] Texto copiado na íntegra de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 117 a 128.

  • [2] Imagem ilustrativa. Disponível em:<https://mundoeducacao.uol.com.br/historiadobrasil/as-guerras-independencia-brasil.htm>. Acesso em 06/09/2022.

05 setembro 2022

Religiosidades na Colônia

Por DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]

 

Os jesuítas no Brasil [2]

O Brasil nasceu à sombra da cruz. Não apenas da que foi plantada na praia do litoral baiano, para atestar o domínio português, ou da que lhe deu nome – Terra de Santa Cruz –, mas da que unia Igreja e Império, religião e poder. Mais. Essa era uma época em que parecia impensável viver fora do seio de uma religião. A religião era uma forma de identidade, de inserção num grupo social – numa irmandade ou confraria, por exemplo – ou no mundo. A colonização das almas indígenas não se deu apenas porque o nativo era potencial força de trabalho a ser explorada, mas também porque não tinha “conhecimento algum do seu Criador, nem de cousa do Céu”. Isso foi fundamental para dar uma característica de missão à presença de homens da Igreja na América portuguesa. D. João III não deixou dúvidas quanto a isso ao escrever a Mem de Sá: “A principal causa que me levou a povoar o Brasil foi que a gente do Brasil se convertesse à nossa santa fé católica1”. A crença de que o apóstolo São Tomé teria saído pregando o evangelho de Cristo mundo afora estimulava os religiosos europeus a seguir seu modelo, suas pegadas. Para empurrá-los, o próprio infante d. Henrique criara, com o aval da Santa Sé, conventos no Norte da África. Os padrões, ou marcos, plantados na costa da África e da Ásia, traziam as armas reais entrelaçadas à cruz, pois missão evangelizadora e colonização se sobrepunham.

o zelo fanático em extirpar idolatrias e heresias, num momento delicado em que católicos e protestantes se digladiavam pela hegemonia religiosa no Velho Mundo, somou-se à necessidade de pregar a palavra de Deus, evangelizando, catequizando e impondo ideais. “Todos temem e todos obedecem e se fazem adeptos para receber a fé”, registrava, no século XVI, o jesuíta Antônio Blásquez. Mas como se deu tal evangelização? Quem foram os primeiros a difundir o cristianismo no ultramar?

Os primeiros religiosos a desembarcar entre nós foram oito franciscanos, membros de importante ordem estabelecida, há tempos, em Portugal. Sua presença como capelães de bordo na navegação portuguesa era comum, mas sua participação na evangelização do gentio ou nas práticas religiosas de colonos só ganhou envergadura a partir da década de 1580, com a conquista da Paraíba. A eles juntaram-se beneditinos e carmelitas. Papel bem mais relevante, contudo, teriam os jesuítas. Vindo com Mem de Sá em 1549, o primeiro grupo era composto por seis missionários da recém-fundada Companhia de Jesus, entre os quais estava Manuel da Nóbrega (1517-70). Sua primeira providência? A organização de uma escola que, como outras que se seguiriam, consistia na base da missão. Um ano mais tarde, chegaram mais padres acompanhados de “órfãos de Lisboa, moços perdidos, ladrões e maus”, que teriam papel relevante, embora anônimo, nos projetos da Companhia. Chamados meninos língua, cabia-lhes aprender o tupi-guarani, tendo como tarefa a conversão das crianças nativas. Em 1550, Leonardo Nunes instalou-se em São Vicente, litoral paulista, onde, em registro admirativo de Nóbrega, ergueu “uma grande casa e muito boa igreja”. Bahia e Rio de Janeiro tornavam-se polos de irradiação da atividade de catequese. Em 1575, inaugurou-se, em Olinda, o quarto grande colégio, onde eram ministradas aulas de “ler, escrever e algarismos” para os filhos de colonos.

As cartas escritas pelos padres jesuítas a seus superiores na Europa revelam como transcorria o cotidiano nas missões onde se juntavam padres e indígenas: “Se ouvem tanger missa”, conta um inaciano, “já acodem e tudo que nos veem fazer, tudo fazem. Assentam-se de joelhos, batem nos peitos, levantam as mãos para o céu”. A clientela era feita de filhos de índios e mestiços, acrescida, de tempos em tempos, de um principal, ou seja, um chefe. As primeiras atividades religiosas consistiam em recitar, nas igrejas, ladainhas ou a Salve-Rainha. Nas sextas-feiras, disciplinavam-se em cerimônias de autoflagelação e, com o corpo coberto de sangue, saíam em procissão. Cantavam hinos como o Dominus et Creator e revezavam-se entre aulas de flauta e canto. A Gramática, feita de perguntas e respostas, era o livro básico para a instrução, além de aprenderem a escrever. Confessavam-se de oito em oito dias e saíam para caçar e pescar todas as tardes, pois não havia qualquer forma regular de aprovisionamento. A alimentação baseava-se na farinha de pau, nome dado à farinha de mandioca, e caça, “como sejam os macacos, as corças, certos animais semelhantes a lagartos, pardais e outras feras”, explicava o padre Anchieta. O pescado era considerado gostoso e o cardápio engrossado por legumes, favas, folhas de mostarda e abóbora, e “em lugar de vinho [...] milho cozido em água a que se ajunta mel”. As meninas indígenas eram ensinadas a tecer e fiar algodão, capaz de vestir os jovens nus. O tempo livre das crianças ficava por conta do banho de rio ou no “ver correr as argolinhas”, brinquedo, segundo Nóbrega, importado de Portugal: “Ensinamos-lhes jogos que usam lá os meninos do Reino. Tomam-nos tão bem e folgam tanto com eles que parece que toda a sua vida se criou nisso”, anotava o padre Rui Pereira em 1560. As atividades físicas mais simples impregnavam-se de cantos e danças nos quais a cultura indígena se impunha. Em festas nos aldeamentos, os meninos levantavam-se à noite para a seu modo cantar e dançar “com taquaras que são canos grossos que dão no chão e com o som que fazem cantam e com as maracas que são umas frutas, umas cascas como cocos furados por onde deitam pedrinhas dentro”. A sensibilidade musical do indígena fazia crer aos jesuítas que, “tocando e cantando entre eles, os ganharíamos” e que “se cá viesse um gaiteiro”, anotava Nóbrega, não haveria cacique que recusasse seus filhos à escola jesuítica. Nos batismos em grupo, os meninos índios eram vestidos com “roupas brancas, flores na cabeça e palmas na mão”, sinal da vitória que teriam alcançado contra o Demônio.

Até 1580, os jesuítas procediam como uma espécie de missionários oficiais da Coroa. A anexação de Portugal à Espanha, no período da União Ibérica (1580–1640), mudou, contudo, essa hegemonia – estimulando-se o ingresso de outras ordens religiosas ao Brasil. Os franciscanos destacaram-se por seguir a ocupação do litoral nordestino, do Rio Grande do Norte a Alagoas. Unidos aos senhores do açúcar, desenvolviam sua ação dentro das capelas de engenhos, rezando missas, realizando batismos e casamentos comunitários, abençoando as moendas e os animais. Acompanharam os bandeirantes em suas expedições de apresamento de índios e, ao contrário dos jesuítas, situaram-se mais do lado do branco do que do índio. Nas expedições oficiais para a conquista da Paraíba, por exemplo, jamais apoiaram tabajaras e potiguares e, entre 1588 e 1591, começaram a estabelecer-se em conventos, lado a lado com beneditinos e carmelitas.

Instalados ao final do século XVI em Olinda, os carmelitas ensinavam teologia e língua brasílica, ou seja, o tupi simplificado, e daí enviavam seus missionários Brasil afora. Foram vigorosos defensores dos interesses portugueses na Amazônia, logo deixando de importar-se com o caráter missionário e investindo nas relações com as populações de vilas interessadas no comércio de especiarias, como o cacau. Mais dedicados à vida contemplativa do que a qualquer outra atividade, os beneditinos pertenciam, por sua vez, a uma ordem rica, possuidora de inúmeros imóveis e fazendas sustentadas por escravos. Na Amazônia, cartas régias fixaram a atuação de cada ordem: franciscanos de Santo Antônio, as missões do cabo do Norte, Marajó e norte do rio Amazonas; Companhia de Jesus, as dos rios Tocantins, Xingu, Tapajós e Madeira; Carmo, as dos rios Negro, Branco e Solimões; franciscanos da Piedade, as do Baixo Amazonas; mercedários, as do Urubu, Uatumã e trechos do Baixo Amazonas. Já no Sudeste, os franciscanos organizavam-se em missões volantes, nas quais grupos visitavam de tempos em tempos as vilas e povoados do interior para pregar, confessar, rezar missas, apoiando com socorro espiritual os colonos.

À medida que a colonização, a fome e as guerras dizimavam os índios do litoral e que os negros africanos eram trazidos em massa para trabalhar nos engenhos como escravos – sem que autoridades religiosas argumentassem contra sua escravização –, os movimentos missionários se deslocavam para o interior da Colônia à procura de novas almas. Nos sertões do rio São Francisco, capuchinhos franceses, aliados das reformas propostas pelo Concílio de Trento, e oratorianos italianos, muito voltados para as práticas piedosas de orações e devoções, tiveram destacada atuação. Os laços que os ligavam diretamente à Santa Sé, em Roma, sem passar por vínculos com o governo português, lhes davam grande liberdade de ação. Suas missões lhes permitiam estar mais próximos do povo humilde que habitava, disperso e sem auxílio, as ermas vastidões do interior.

Mas havia muitos espinhos nos caminhos da evangelização. Os conflitos entre leigos e o clero se sucediam. Os mais importantes deram-se em torno da escravização dos indígenas, verdadeira pedra no sapato – ou melhor, nas alpargatas – dos padres que desejavam a catequese e a conversão do gentio. Desde o século XVI, a Companhia de Jesus conseguiu que o governo proibisse tal prática. Todavia, grupos importantes de plantadores de cana, donos de engenhos e, posteriormente, bandeirantes que obtinham grandes lucros com a escravização dos negros da terra consideravam sua proteção uma ruína para a Colônia. Eles não apenas insistiam com as autoridades do Reino para que estas lhes concedessem liberdade para usar o trabalho compulsório dos índios, como também, por meio de pressões e ameaças, retardaram o quanto puderam a supressão da escravatura dos nativos. Para fazer frente às dificuldades criadas pelos colonos, uma lei de 1639, baseada em bula papal, reafirmou a liberdade dos indígenas. A resposta não tardou: colonos revoltaram-se em São Paulo, Santos e Rio de Janeiro, apontando suas armas contra os portões das escolas da Companhia de Jesus. Das janelas, terços na mão, os padres os excomungavam sob uma chuva de balas. Em Belém, os colonos acusavam os jesuítas por libelos enviados diretamente a procuradores na Corte. O ódio entre um e outro grupo era tal que os jesuítas foram expulsos dessas localidades, só regressando anos depois.

Em meio a essa crise, chegou ao Brasil, em 1652, o padre Antônio Vieira, que logo no ano seguinte foi nomeado visitador das missões do Maranhão e Grão-Pará. Familiarizado com a Colônia, pois tinha morado com os pais na Bahia até entrar para o seminário, Vieira vinha com a função de evangelizar, erguer igrejas e realizar missões entre os índios do Maranhão, além de contar com o apoio do rei, que ameaçara com severas punições os que atravessassem seu caminho. Alguns de seus textos são contundentes críticas à escravidão indígena, como a Informação sobre o modo que foram tomados e sentenciados por cativos os índios no ano de 1655. Nele, Vieira afirma: “Para acudir às injustiças que em todo o estado do Brasil se usavam no cativeiro dos índios naturais da terra, tomaram por último remédio os senhores reis destes reinos declarar a todos por forros e livres”. Exceção seria feita no caso de guerra justa, ou seja, quando os nativos se recusassem à catequese, praticassem a antropofogia, cometessem latrocínio em terra ou no mar, se negassem a pagar tributos e a defender o rei ou a trabalhar para ele. Em outras palavras: quando de alguma forma resistissem à colonização.

Levados do sertão para o litoral pelos jesuítas, muitos índios eram agrupados em aldeamentos onde recebiam instrução e educação religiosa. A orientação de Vieira era, contudo, de que permanecessem no interior, evitando o confronto com os colonos gananciosos ou com outras ordens religiosas, mais incomodadas com o prestígio da Companhia do que com o destino dos índios. A pressão sobre Vieira foi tão grande que ele se viu obrigado a sair do Maranhão em 1654, retornando a Portugal. Havia tempos, na verdade, delineava-se esse quadro incendiário: entre 1632 e 1648, as populações guaranis aldeadas pelos jesuítas entre o Paraguai, o Paraná e o Rio Grande do Sul (Guairá, Itatim e Tape) haviam sido arrasadas por bandeirantes paulistas. Por essa época, numerosos grupos indígenas deslocaram-se para a margem oriental do rio Uruguai para estabelecerem-se junto dos jesuítas nos Sete Povos das Missões. Organizados para abrigar até mil famílias em moradias de terra socada, tais aldeamentos eram alvos constantes de ataques organizados por bandeirantes paulistas.

Em relação às demais populações católicas, um importante espaço de práticas religiosas para homens e mulheres coloniais eram as irmandades ou confrarias. Associações de caráter local, tais instituições auxiliavam a ação da Igreja e promoviam a vida social, desempenhando tarefas que, muitas vezes, deveriam caber ao ausente governo português: fundação e manutenção de abrigos de meninos pobres, recolhimento de meninas órfãs e hospitais, denominados Santas Casas da Misericórdia. Sua finalidade específica era promover a devoção a um santo. Em torno de festas, do culto e da capela do santo, um grupo de pessoas, fossem brancas, mulatas ou negras, se organizava. O que caracterizava a irmandade era justamente a participação de leigos no culto católico, participação que não implicava necessariamente a constante presença de padres e religiosos. Confrarias e irmandades demonstravam toda a força por ocasião da festa do padroeiro: ruas e igrejas eram decoradas com ervas perfumadas e tapetes e iluminadas por tigelinhas de barro contendo óleo de baleia. Irmãos vestidos de capa vermelha, tocheiros à mão, abriam a procissão, que era seguida de carros alegóricos ricamente enfeitados, atrás dos quais volteavam músicos e bailarinos. A diversidade de instrumentos musicais não ficava atrás da pompa coreográfica dos cortejos. Ritmos profanos e peças sacras se mesclavam à sonoridade dos batuques africanos. Músicos negros vestidos de seda e cobertos de plumas, tocando címbalos, pífaros e trombetas misturavam-se a brancos, tocadores de clarins e charamelas. Uma imensa variedade de sons rasgava o ar, enquanto fiéis, piedosamente, desfilavam estandartes e as imagens religiosas.

Seguindo o costume português, a vida doméstica também consistia em importante espaço espiritual. Nas paredes das moradias era comum encontrarem-se cruzes de madeira, gravuras do anjo da guarda ou do santo com nome do dono da casa. Nas zonas rurais, um mastro com a bandeira do santo indicava a preferência da devoção familiar. Ao levantar-se, pela manhã, o cristão benzia-se murmurando o “Pelo sinal”. Oratórios, ou quartos de santos, eram iluminados por velas de cera que queimavam constantemente e onde as imagens eram vestidas e adornadas pelas mulheres. Flores naturais ou de papel, palhas bentas no Domingo de Ramos, medalhas milagrosas, escapulários e livros de oração compunham o arsenal do devoto na luta contra Satã. Em propriedades abastadas era comum a presença de capelas ou ermidas onde se celebravam casamentos, comunhões e batismos de senhores e escravos, homens livres e homens forros. Santos de estimação como, por exemplo, Santo Antônio, eram invocados para interceder em favor do fiel em caso de escravos fugidos, cavalos extraviados ou roubos. As solteiras costumavam invocá-lo para arranjar maridos; as casadas, em caso de desavenças conjugais. Não atendidas, penduravam-no, de cabeça para baixo, nos poços de água ou tiravam-lhe o menino Jesus do colo até terem seus desejos concedidos. Orações em que se nomeavam os santos, Jesus ou Maria eram usadas por benzedeiras e curandeiras para aliviar as dores, feridas e maleitas dos fiéis: “Deus eterno, por cujo amor Santa Apolônia sofreu que lhe tirassem os dentes [...] dai-me socorro saudável contra o incêndio dos vícios, e dai-me socorro saudável contra a dor dos dentes, por intercessão. Amém, Jesus”.

Além do catolicismo, a Colônia foi palco de outros credos, crenças e práticas religiosas. Descendentes de judeus, por exemplo, buscaram refúgio nessas terras, que lhes pareciam de promissão. O movimento migratório começara em inícios do século XVI em função de perseguições que lhes eram movidas na península Ibérica. Instalados sobretudo na Bahia, em Pernambuco e no Maranhão, os recém-chegados integraram-se rapidamente à língua, aos costumes e à economia local, misturando-se aos cristãos, com quem dividiam cargos administrativos e comerciais. Os cristãos-novos detinham engenhos, escravos e terras. Para manter vivos os laços comunitários e de identificação, realizavam clandestinamente práticas e atos religiosos do judaísmo, ainda que sob a ameaça da Inquisição. Mas como é que esta se fazia presente na Colônia?

A Colônia nunca possuiu tribunal inquisitorial, ficando subordinada ao existente em Lisboa. Bispos e até leigos – sob o título de Familiares do Santo Ofício – podiam encaminhar denúncias contra suspeitos de heresia. Essas acusações também ocorriam por ocasião de visitações. Espécie de justiça ambulante, as visitas de inquisidores – realizadas entre 1591 e 1595, 1618 e 1621 e 1627 ao Nordeste, assim como entre 1763 e 1769 ao Grão-Pará – tinham por objetivo combater as heresias e zelar pela fé e boa moral dos católicos. Nesse quadro, ritos, preceitos ou cerimônias judaicas eram alvo dos monitórios gerais, ou seja, um documento eclesiástico com aviso aos fiéis, que descrevia minuciosamente tais ritos e era afixado às portas das igrejas. Pequenos atos do cotidiano serviam para indicar judaísmo. Guardar os sábados, por exemplo, revelava-se através do hábito de vestir roupas limpas e arrumar a casa na véspera – limpar e cozer alimentos, acender candeeiros, etc. – para que não houvesse necessidade de trabalhar nesse dia. Conscientes do interesse do Santo Ofício por pessoas que cometiam essas infrações, os cristãos-novos costumavam apresentar-se às autoridades confessando seus atos. Fernando Salazar, por exemplo, compareceu perante o inquisidor Marcos Teixeira, em 1618, e declarou “vestir camisa lavada aos sábados”, justificando-se a seguir: “Por ser homem que ganha a sua vida em tratar as galinhas e papagaios e em outras cousas da terra e vir muito suado quando vem de fora”. Os jejuns eram outra prática constante daqueles que seguiam às escondidas a lei de Moisés. Havia um grande jejum em setembro, o da rainha Ester e o das segundas e quintas-feiras da semana. Nesses dias, os israelitas evitavam alimentos durante o dia e ingeriam, só à noite, carnes e sopas; passavam, ainda, o dia descalços, pedindo perdão uns aos outros. Na celebração da Páscoa judaica, comiam pães ázimos e recitavam orações judaicas, baixando e levantando a cabeça diante da parede, adornada com cordões e fitas rituais, os trancelins. Enterravam os mortos em mortalha nova e terra virgem, colocando-lhes na boca um grão de aljôfar ou uma moeda de prata para que pagassem a primeira pousada. Os meninos eram circuncidados. Mesmo não seguindo as práticas judaicas de modo inteiramente consciente, os cristãos-novos conservavam a essência de sua cultura original. Repudiavam as imagens dos santos que enfeitavam os oratórios, consideravam a religião católica uma idolatria, esquivavam-se do sacramento da confissão, alegando que: “Era melhor confessar a um pau ou a uma pedra do que a um outro pecador”.

Diferentemente dos cristãos-novos, os judeus que iriam se instalar em Pernambuco quando da invasão holandesa, de 1630 a 1654, encontraram melhores condições para exercer sua religiosidade. Concentrados numa rua de Recife, a Jodenstraat (rua dos Judeus), onde construíram a sinagoga da comunidade Kahal Zur Israel: uma casa de muitas janelas, com o térreo ocupado por duas lojas, tendo no andar de cima uma ampla sala mobiliada para utilização religiosa. Ao rabino, ou haham, Isaac Aboab da Fonseca devem-se as primeiras páginas literárias, em hebraico, escritas no Brasil: um poema que descreve os sofrimentos suportados pelos judeus em 1646, quando Recife ficou sitiado pelos luso-brasileiros.

O protestantismo teve, no Brasil colonial, dois períodos marcantes. O primeiro vai de 1555 a 1560, quando chega à baía de Guanabara o vice-almirante francês Nicolau Durand de Villegaignon para fundar no hemisfério sul uma colônia, a França Antártica, com calvinistas (huguenotes) franceses, hostilizados em sua terra. O segundo foi o da colonização holandesa no Nordeste. Com o auxílio de Gaspar de Coligny, nobre protetor dos huguenotes, Villegaignon estabeleceu-se na Guanabara com quatrocentos homens atraídos pela promessa de liberdade religiosa. Suspeitas e insegurança, porém, logo perturbariam o governo da França Antártica. Villegaignon desconfiava de seus próprios homens e dos índios tamoios, seus aliados. Os problemas ficaram maiores quando aqui chegou um contigente de 280 religiosos calvinistas vindos de Genebra, onde haviam sido ordenados. Ao que parece, os missionários recém-chegados traziam cartas de recomendação de importantes líderes religiosos e nobres, que fizeram Villegaignon temer por seu prestígio na França. Na chegada, o líder os recebeu com gestos de obediência, passando, logo depois, a criticá-los por não usarem pão comum e vinho não misturado com água na celebração da Santa Ceia.

As polêmicas se multiplicaram. Villegaignon questionava as posições calvinistas sobre a transubstanciação, ou seja, a mudança da hóstia em corpo de Deus, a invocação dos santos, o Purgatório. Por fim, proibiu Pierre Richier, um dos pastores credenciados por Calvino, de pregar. Diante de tantos conflitos, Richier partiu para a Europa com seus auxiliares. Devido às más condições da travessia marítima, alguns resolveram voltar. Foram recebidos por um desconfiado Villegaignon que rejeitara publicamente o calvinismo. Obrigados a redigir uma declaração sobre alguns pontos doutrinários – intitulada Confessio Fluminensis –, caíram numa armadilha; acusados de traição, foram condenados e executados. Tornaram-se os primeiros mártires do credo protestante na América.

Enfraquecido e já sem a proteção de Coligny, Villegaignon retornou à França em 1558, pouco antes de os portugueses recuperarem a Guanabara. Por tensões político-religiosas, fracassava a tentativa de implantar uma colônia calvinista no Centro-Sul do Brasil colonial. Ela seria repetida, igualmente sem sucesso, no começo do século XVII, em São Luís do Maranhão, com a França Equinocial.

Conforme mencionamos, outro período de significativa atividade protestante foi o da colonização holandesa no Nordeste. Sob a regência de Maurício de Nassau, o domínio holandês estendeu-se temporariamente do Maranhão até abaixo do rio São Francisco. Nesse governo, a liberdade religiosa era para todos. Católicos eram livres para exercer seu culto e manter relações com a sede episcopal da Bahia. Sinagogas e escolas hebraicas funcionavam no Recife e foram as primeiras da América. O protestantismo, considerado a verdadeira religião, lutava para instalar-se no Brasil. A chave para sua compreensão era a subordinação de todos os aspectos da vida aos sagrados mandamentos. A formação de paróquias protestantes estendeu-se pelas conquistas territoriais, com a catequese e o ensino ocupando muitos pregadores.

Os africanos também trouxeram seus credos para a América portuguesa. Com eles, cerimônias religiosas como o acotundá e o calundu, além de cultos envolvendo os mortos, que eram corriqueiramente praticados. Em casas humildes, cobertas de capim, de paredes de barro, preferencialmente à beira de um córrego ou fonte, celebrava-se a dança de tunda, ou acotundá. Altares com banquetas de ferro onde se misturavam ordenadamente cabaças, panelas e recipientes variados de barro e imagens antropomorfas sinalizavam o espaço sagrado. O som de tambores e atabaques, cantos no dialeto courá, da Costa da Mina, enchiam a noite. Vindas das camarinhas, mulheres vestidas com panos brancos, que com frequência lhes cobriam a cabeça, dançavam e cantavam, por vezes misturando palavras extraídas de textos católicos e africanos. Muitos dos elementos rituais que se encontram hoje no candomblé baiano e xangôs do Nordeste já estavam presentes nesses rituais: o emprego de galos e galinhas nos sacrifícios de animais, a predominância feminina, o destaque de uma das dançantes identificada ao líder cerimonial, a possessão e o transe ao som de atabaques.

Havia ainda outras formas de religiosidade africana na Colônia. Vindas do Daomé, atual Benin, na costa ocidental da África, rituais de origem jeje conhecidos como calundus eram conduzidos por um vodunô, líder espiritual, com o auxílio de vodúnsis, membros do culto; o ritual consistia em danças e cantos na língua jeje, ao som de ferrinhos (agogôs e gans) e atabaques. O centro do cerimonial abrigava ervas, búzios e aguardente. Folhas de diversas plantas serviam na preparação de alimentos oferecidos às divindades, os ebós, mas também em ritos de iniciação e limpeza do corpo. Um sentido para a vida, segurança e proteção contra um mundo hostil, espaço para sociabilidades e solidariedades eram as funções desses rituais religiosos. Dessa maneira, a Colônia crescia à sombra da cruz e de vários credos que ainda hoje hidratam nossa cultura.


Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.


Notas:

[1] Texto copiado na íntegra de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 19 a 27. 

[2] Foto meramente ilustrativa. Disponível em: <https://www.estudokids.com.br/jesuitas-no-brasil-colonia/>. Acesso em 05/09/2022.

[3] Veja mais sobre este assunto no capítulo 4 de minha monografia “Fundamentalismo protestante: dificuldades de interação e diálogo com a cultura brasileira”. In: <https://monografias.brasilescola.uol.com.br/historia/fundamentalismo-protestante-dificuldades-interacao-dialogo-com-cultura-brasileira.htm>. Acesso em 05/09/2022.