O primeiro instrumento institucional de ocupação das terras americanas foi a feitoria. Através delas faziam-se contatos com índios da terra e explorava-se pau-brasil. Cabia ao feitor evitar a deserção de marinheiros, receber produtos da terra que seriam enviados ao Reino e tentar impedir que embarcassem, sem autorização, indígenas escravizados e, sobretudo, mulheres brancas. Entre 1502 e 1504, criaram-se feitorias em Cabo Frio, na Bahia e em Pernambuco. No fim de 1520 acumulavam-se na mesa real os pedidos de gente que queria se estabelecer aqui. A promessa de “ganhar uma terra que não tem nenhum proveito e conquistá-la” era muito utilizada. Outro argumento era o de que a instalação de algumas povoações evitaria que os índios vendessem pau-brasil a estrangeiros.
O sucesso da fórmula aplicada nas ilhas do Norte da África, Madeira e Cabo Verde, fez com que d. João III optasse pela divisão das terras em capitanias. Uma vez demarcadas, cada uma com cinquenta léguas de costa, foram distribuídas entre fidalgos. Como donatários, cabia-lhes criar vilas e povoações, exercer justiça, nomear juízes e oficiais, incentivar a instalação de engenhos, marinhas de sal e moendas de água, arrendar terras do sertão. Uma série de vantagens e poderes funcionava como chamariz para os colonos. Em contrapartida, recebiam “um foral dos direitos, foros, tributos e cousas que na dita terra hão de pagar”.
Povoar o Brasil fazia-se urgente. A acintosa presença francesa obrigava uma tomada de posição. Por outro lado, o comércio com as Índias custara caro ao tesouro real, mas fizera a fortuna de muitos comerciantes capazes de aplicá-la em outros negócios que lhes parecessem rentáveis.
O sistema malogrou, contudo, devido ao tamanho do território colonial, assim como em razão de ferozes ataques indígenas. Conforme mencionamos, quando se fundou o governo-geral e Tomé de Souza foi enviado para cá, apenas três das quinze capitanias distribuídas haviam sobrevivido. Chegado em 1549, o primeiro governador-geral ergueu a primeira vila com foros de cidade, São Salvador, na Bahia, e deu início a um violento combate contra os tupinambás, matando e castigando parte deles para dar exemplo, como registra um documento do período. Trouxe consigo os padres jesuítas e o plano para a instalação urgente de uma estrutura político-administrativa que evitasse o naufrágio completo da colonização: o governo--geral. Na bagagem, Souza trazia ainda um regimento – instruções para pessoas e instituições – cujas preocupações incidiam sobre questões militares e de povoamento: assentamento de colonos, distribuição de gado bovino, criação de órgãos locais de administração, as câmaras, etc. Em 1588, outro regimento foi aprovado. Nele, novas diretrizes apontavam para uma maior presença do Estado português na Colônia: defesa da costa, exploração de salitre para defesa da armada, prospecção de minas de metais, proteção contra ataques e reafirmação da escravização de indígenas por guerra justa, assim como instalação da Relação – ou seja, tribunal de instância superior, na Bahia –, na verdade só instituída em 1609.
Ao longo do tempo, governadores e depois vice-reis trariam, cada qual, seus regimentos e instruções, ao sabor das diversas conjunturas. Não houve consistência nas diretrizes administrativas até meados do século XVIII. A fragilidade do sistema retardava a instalação de um governo centralizador, tal como se desejava no Reino, comprometendo, simultaneamente, os interesses fiscais, políticos e estratégicos da Metrópole. Apesar disso, começava a formação de quadros burocráticos, formação, contudo, marcada pela precariedade. Numa correspondência datada de 1550, o ouvidor-geral Pero Borges faz menção à proliferação de funcionários metropolitanos, muitos deles degredados com as orelhas cortadas – forma de castigo humilhante –, outros tantos muito pobres e ignorantes. Entre 1602 e 1607, o oitavo governador do Brasil, d. Diogo Botelho, encontrou um tal descalabro na figura de funcionários que lesavam o fisco e exerciam tranquilo contrabando, que efetuou várias demissões na capitania de Pernambuco. A incompetência judicial que então se instalava iria somar-se à distância física entre o centro de decisões administrativas, Lisboa, e as cidades litorâneas brasileiras. E entre estas e as vilas do interior. Mal se instalara, a máquina do governo começava a emperrar. O braço da lei não atingia as áreas remotas. As próprias leis eram profusas e confusas. Os magistrados, corruptos. A voracidade de meirinhos, escrivães e juízes prevaricadores era insaciável. A administração judiciária concentrava-se em algumas vilas e cidades, deixando o resto da Colônia nas mãos da justiça privada e do mandonismo local. Nasciam, assim, outros poderes além do exercido pelos representantes da Coroa.
A Fazenda, por sua vez, era dominada pela necessidade de ampliar tributos, recursos e impostos para atender às necessidades crescentes do Estado. No mais, controlava casas para a alfândega e nomeava funcionários necessários ao seu funcionamento nos portos. Composta por guarnições de primeira, segunda e terceira linhas, a organização militar reunia tropas e regimentos de cavalaria, infantaria e artilharia. Foi, contudo, apenas no século XVIII, quando os conflitos com os espanhóis ao sul da Colônia se acentuaram, que tais “forças armadas” coloniais começaram a se profissionalizar.
A organização eclesiástica também se mostrou precária no século XVI. As razões? Havia dificuldade de recrutamento de sacerdotes e a autoridade episcopal não se instalara entre nós. Quando o primeiro bispado foi criado na Bahia, em 1551, a terra e os moradores eram tão pobres que não podiam arcar com as despesas de manutenção do corpo eclesiástico. Gastos com a instalação de colégios para a Companhia de Jesus faziam com que sobrassem poucas rendas, pagas pela Coroa, para o clero secular. Foram inúmeros os conflitos entre autoridades coloniais e bispos, entre membros do clero secular e as ordens religiosas e na própria hierarquia de ordens e do clero secular. Este se estruturou no bispado de Salvador, elevado a arquidiocese e sede da província eclesiástica do Brasil em 1676, ao mesmo tempo em que eram criadas as dioceses do Rio de Janeiro e Olinda (1676), e depois as do Maranhão (1677), Belém (1719), São Paulo e Mariana (1745). O clero regular, representado por diferentes ordens religiosas, era independente, graças a doações vindas de matrizes europeias, esmolas da população local e rendimentos de propriedades privadas. Um dos órgãos metropolitanos que intervinham na administração eclesiástica colonial era a Mesa de Consciência e Ordens. O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição não se instalou jamais. Conforme foi dito, registram-se apenas denúncias avulsas e visitas de inquisidores à Bahia, Pernambuco e Grão-Pará, em busca de hereges, cristãos-novos, feiticeiros, sodomitas e outros pecadores que infringiam a moral e a fé católica.
O vasto terreno das magias amorosas, assimiladas à feitiçaria e relacionadas pelo Santo Ofício à ocorrência de pactos diabólicos, foi uma das obsessões dos inquisidores. As fontes inquisitoriais, relativas ao vasto período do século XVI ao XVIII, em várias partes da Colônia, trazem à luz diversos artifícios então utilizados, que poderíamos chamar de magia erótica. Antes de tudo, as cartas de tocar, magia ibérica que se fazia por meio de um objeto com o nome da pessoa amada e/ou palavras gravadas; quando encostado à pessoa, tal objeto seria capaz de seduzi-la. Nas visitações que fez o Santo Ofício no século XVI, se descobrem várias bruxas, pois assim foram chamadas as acusadas de vender tais cartas e divulgar outras magias eróticas. Também havia casos registrados nos tribunais episcopais e daí transferidos ao inquisitorial. Um exemplo: em Minas, no século XVIII, certa mulher de nome Águeda foi acusada de possuir um papel com algumas palavras e cruzes, carta que servia para as mulheres tocarem em homens desejados sexualmente. No Recife, alguém chamado Antônio Barreto era quem portava um papel com signo-salmão (estrela de seis pontas) e o credo às avessas, magia que servia para fechar o corpo e facilitar o acesso a mulheres: sujeitaria qualquer mulher que tocasse à sua vontade. Seriam inúmeros os exemplos de perseguições religiosas às tradições culturais que fugissem ao cristianismo.
Além das cartas de tocar, recorria-se também, com idênticos propósitos, às orações amatórias, muito comuns na Colônia e universalmente conhecidas. Trata-se de um ramo de magia ritual em que se acreditava ser irresistível o poder de determinadas palavras e, sobretudo, do nome de Deus, mas que não dispensava o conjuro dos demônios. Tudo com o mesmo fim de conquistar, seduzir e apaixonar.
Além da Igreja e do Estado, outras formas de poder iam lentamente se estruturando. O familismo político vicejava nas cidades litorâneas, unindo prósperos senhores de engenho a funcionários metropolitanos. Ao longo do século XVII, os primeiros ocuparam postos de comando nas câmaras e suas ações arbitrárias caíam sobre as costas de arrendatários, meeiros e lavradores, interferindo nos resultados dos julgamentos e das ações que corriam na justiça colonial. Os casamentos dentro de pequeno grupo de famílias permitiam que estas se revezassem em postos de prestígio. Nesses grupos era constante a manipulação de alianças de família para resolver, na esfera pública, problemas domésticos. Livros de genealogia mostram o entrelaçamento de apenas sete famílias piauienses, que constituíam a elite local, emaranhadas num cruzamento consanguíneo que atravessou séculos. Em qualquer parte da Colônia, moças que se casavam sem consentimento ou bênção eram excluídas das redes de sociabilidade familiar, já que isso era considerado grave afronta ao grupo.
Uma segunda camada de colonos, constituída por plebeus, lavradores e “homens de qualidades”, como se lê em algumas cartas de sesmarias, fixava-se silenciosamente com seus gados e escravos no interior. Vagava pelos ermos sertões toda uma população desajustada e apartada do trabalho regular, a princípio remediada. Tais camponeses volantes eram considerados pelas autoridades “facinorosos e bravos”. Muitos viviam com suas famílias, isolados e solitários, nos roçados que cultivavam. Outros podiam ser ladrões de gado ou formigueiros, nome que se dava aos que roubavam coisas de pouco valor. Não faltava quem se organizasse em bandos e quadrilhas, agindo em assaltos pelas estradas.
Contudo, não somente a população pobre proliferava. Por todo o sertão surgiram chefes locais abastados, que haviam criado fortuna e zonas de poder local e pessoal. Tais potentados não hesitavam em medir forças com autoridades e vizinhos. Confrontos sanguinários lavavam a honra de famílias inteiras e seus agregados durante gerações. Os donos de tais terras, apoiados em escravos e dependentes, sentiam-se impunes dentro de seus domínios e até de uma região. Tinham parentes e amigos voluntários por aliados. Impensável contrariá-los. Só que o vizinho pensava da mesma maneira. Assim, nunca carecia motivo para desavenças, bastando – como explicava o padre Antonil em 1711 – “um pau que se tirasse ou um boi que entrasse no canavial por descuido para que se declarasse o ódio escondido e se armassem demandas e pendências mortais”. Os dias de festas religiosas, momento em que a comunidade se juntava, era o preferido para acertos de contas: tiroteios dentro de igrejas, emboscadas durante a procissão, troca de punhaladas nos locais em que se vendia bebida. As lutas travadas entre Pires e Camargo, em São Paulo, entre 1640 e 1660, ou entre os Monte e os Feitosa, de 1724 a 1745, bem ilustram o caráter dessa animosidade feita de desprezo pela autoridade da Coroa. A impunidade grassava e contaminava a população de vilas e vilarejos. Não raras vezes, esta se revoltava contra a passagem de um desembargador da Relação ou de escrivães – empregados na cobrança de impostos ou no recrutamento militar. Poucas autoridades metropolitanas ousavam interferir nos “negócios do sertão”. A despeito das diferenças entre o que ocorria no litoral e no interior, entre os sertões de fora (do Ceará à Paraíba) e os sertões de dentro (do Sudeste do Maranhão ao rio São Francisco, em Minas Gerais), o Estado português seguiu buscando condições de controle das populações e de sua capacidade de criar riquezas na América portuguesa. O longo braço do rei tentava estender-se, interior adentro, muitas vezes à revelia dos poderosos locais. Mas sempre em busca de riqueza.
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Veja também:
Fonte / Referência bibliográfica:
- DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.
Notas:
- [1] Texto copiado na íntegra de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 28 a 32.
- [2] Imagem disponível em: <A Criação do Governo Geral e da primeira capital do Brasil – Curso Maciel >.Acesso em 14/09/2022.