Por: Alcides Amorim
Há alguma similaridade entre o ensino
escatológico de Irineu de Lyon (Leão) e o dos protestantes fundamentalistas?
Esta pergunta tem relação com o texto sobre as setenta semanas do profeta
Daniel (9) e os comentários do Dr. C. I. Scofield [1] sobre o assunto. Scofield
foi um pastor protestante fundamentalista que escreveu suas ricas anotações de
sua Bíblia de Referências. Nelas, ele ensina a visão escatológica
futurista e dispensacionalista e, ao comentar Daniel 9.24, ele afirma
que “... a interpretação que atribui a última das semanas ao fim dos tempos
é dos Pais da Igreja”. E, como exemplo, ele cita Irineu e Hipólito.
Resolvi, então, ver o pensamento de Irineu sobre isto, que resumiremos abaixo, e
em outro momento pretendo falar sobre a posição de Hipólito.
1. Sobre
a teologia de Irineu
No tocante à vida de Irineu já falamos um pouco
neste
artigo. Ele era natural da Ásia Menor – provavelmente de Esmirna
– onde nasceu por volta do ano de 130 e morreu em 202. Durante toda sua vida,
Irineu foi um admirador fervente de seu mestre, e em seus escritos se refere
repetidamente aos ensinos do mesmo, isto é, um "ancião" – o
presbítero – cujo nome não menciona, mas que parece ser mesmo o bispo Policarpo.
Este, que fora discípulo do apóstolo
João,
morreu por volta de do ano 100. Seu discípulo Policarpo, que serviu a Cristo 86
anos, talvez tenha morrido com mais de 90 anos, em 155. E Irineu, discípulo deste
último, continuou sua obra. Veja que Irineu absorveu toda a tradição cristã que
o aproximava aos apóstolos. Em todo caso, por razões que desconhecemos, Irineu
se transladou da Ásia Memor para Lyon, no que hoje é França.
Os pontos centrais da teologia de Irineu
era:
· a unidade da fé apostólica
transmitida pela sucessão episcopal e base para o combate às heresias;
· Cristo como Recapitulação (Anakephalaiosis),
a ideia de que Cristo recapitula em si toda a história humana. Adão
trouxe a queda, Cristo, o novo Adão, refaz o caminho, obedecendo onde Adão
desobedeceu (cf. Rm 5.12-21; 1Co 15.22,45) e enfatiza salvação como uma restauração
e renovação da humanidade em Cristo.
· Encarnação como
parte do plano de salvação: Para Irineu, a
encarnação já fazia parte do propósito eterno de Deus, não apenas uma resposta
ao pecado.
· Combate à heresia gnóstica: Irineu
rejeitou a ideia gnóstica de um Deus superior ao Criador; afirmou que o Deus do
Antigo Testamento é o mesmo do Novo e que a criação é boa, e a redenção
acontece dentro da história, não pela fuga dela.
· Escatologia:
Irineu esperava um reino futuro de Cristo na terra (inclinação
milenarista, comum nos primeiros séculos); e via a história em termos de
“planos” (dispensações) ou “economias” de Deus, conduzindo ao cumprimento em
Cristo. Sobre este ponto falaremos mais abaixo.
Irineu é considerado pela Igreja Católica um
dos grandes Padres apostólicos e apologistas; considerado em 2022, pelo Papa
Francisco, “Doutor
da Unidade”, por sua ênfase na unidade da fé e da Igreja contra
divisões. A sua teologia da sucessão
apostólica é valorizada pela Igreja Católica como base do episcopado
e do magistério, assunto que também destacamos aqui.
Mas é sobre sua escatologia que queremos
destacar a seguir sobretudo considerando os pontos similares com o
fundamentalismo protestante.
2. Escatologia:
Irineu x Fundamentalistas
Perguntei ao Chatgpt que
embora a Igreja Católica considere Irineu como “Doutor da Igreja”, pelo menos a
sua escatologia diverge da doutrina católica. A Resposta da I. A. Chatgpt foi:
“Sua avaliação está correta: Irineu é Doutor da Igreja, mas sua escatologia
não coincide plenamente com a visão católica posterior”. E esta divergência
se dá, principalmente a partir de Agostinho
de Hipona, do século IV em diante. “Agostinho ensinou que o milênio
de Ap 20 não é literal, mas espiritual... corresponde ao período atual da
Igreja entre a primeira e a segunda vinda de Cristo... Essa interpretação se
tornou a dominante (o chamado amilenarismo agostiniano)”. Mas,
voltando a Irineu[2],
vejamos o que ele diz sobre:
a) Dispensações
Como já definimos aqui “... uma dispensação é
um período de tempo no qual o homem é testado na sua obediência a alguma
revelação específica da vontade de Deus. Três conceitos importantes estão
implícitos nesta definição: um depósito de revelação divina quanto à vontade de
Deus, incorporando o que Deus exige quanto à sua conduta; a mordomia do homem
desta revelação divina, na qual ele é responsável de obedecer; e um
período de tempo, geralmente chamado de “século”, durante o qual esta revelação
divina prevalece testando a obediência do homem a Deus[3]”.
Irineu não fala diretamente
sobre dispensações, mas deixa claro que Deus implementou um plano para resgatar
e restaurar a humanidade e a criação, revertendo os efeitos do pecado. Ele
chama este plano de "recapitulação" (p. ex.: pág. 65) e é uma
forma de a Igreja interpretar a história da salvação em diferentes "economias"
ou etapas do plano de Deus. E também destaca sobre “... aquelas coisas que
foram preditas pelo Criador igualmente por meio de todos os profetas Cristo
cumpriu no final, ministrando à vontade de Seu Pai e completando suas dispensações
[destaque meu] com relação à raça humana”[4].
b) As
Setenta Semanas de Daniel
Assim como os fundamentalistas (veja
aqui),
Irineu interpretava as setenta semanas de Daniel (Dn 9.24-27) como um período histórico de
490 anos literais. A última semana (7 anos) seria o tempo da tribulação, que
ele vinculava com eventos que precederiam a volta de Jesus. Portanto, trata-se
de um evento escatológico futuro. Ele dividia a última semana em duas partes de
três anos e meio (como fazem os dispensacionalistas). O
“príncipe que há de vir” (v. 26) é o Anticristo, um governante que que fará
uma aliança por uma semana (7 anos), mas na metade da semana (após 3 anos e
meio) romperá o pacto, cessará o sacrifício e instaurará a abominação da
desolação. Resumindo: Irineu vê a última semana como ainda não cumprida em sua
totalidade, projetada para o fim da história, ligada ao governo do Anticristo.
c) Arrebatamento
da Igreja / Segunda vinda de Cristo / grande tribulação
Irineu (pág. 98) relaciona arrebatamento como a
ressurreição dos mortos: “... assim também devemos esperar o tempo da nossa
ressurreição, prescrito por Deus e predito pelos profetas, e assim,
ressuscitando, sermos arrebatados, todos aqueles que o Senhor considerar
dignos deste [privilégio]...”. também cita (Pág. 16 e 17) Enoque e Elias
como exemplo de pessoas arrebatadas ou trasladadas. O arrebatamento deles
apontava “... assim por antecipação a transladação dos justos”. Quando
esta transladação acontecerá? Diferentemente dos fundamentalistas protestantes,
que acreditam que Jesus voltará antes da grande tribulação, Irineu cria que a
Igreja seria “arrebatada” (1Ts 4.17), mas no fim da última semana, na
manifestação de Cristo, não antes. E também não falava de um “arrebatamento
secreto” durante a tribulação. Sua visão era mais próxima do que hoje chamamos
de pós-tribulacionismo milenarista: a Igreja sofre perseguição, Cristo
volta, ocorre o arrebatamento/ressurreição, derrota do Anticristo e início do
milênio.
d) Milênio
O ensino de Irineu sobre o milênio coincide com
a posição dos fundamentalistas. Ele ensinava um milênio literal (quiliasmo),
terrestre e futuro, que ocorrerá após a volta de Cristo. Sua posição foi
abandonada pela Igreja Católica a partir do século IV, como já vimos.
Com a ajuda do chatGpt, elaborei um quadro
abaixo da escatologia de Irineu por ordem dos acontecimentos:
1) Aparecimento
do Anticristo
- Surge
no fim da história como o “príncipe que há de vir” (Dn 9.27).
- Governa
por 3 anos e meio (Dn 7.25; Ap 13.5).
- Rompe
a aliança, cessa o sacrifício e instala a abominação da desolação (Dn 9.27; Mt
24.15).
- Persegue
duramente os santos (Ap 13.7).
2) Grande
Tribulação da Igreja
- A
Igreja não é retirada antes da tribulação, mas chamada a perseverar.
- Irineu
entendia o sofrimento como prova final dos fiéis (Ap 13; Dn 12.7).
3) Segunda
Vinda de Cristo
- Cristo
vem em glória, derrota o Anticristo (2Ts 2.8; Ap 19.20).
- Os
justos são arrebatados / ressuscitados para encontrar o Senhor (1Ts 4.16-17).
- Esse
encontro marca o início do reinado milenar.
4) Milênio
literal (1.000 anos)
- Cristo
reinará na terra, em Jerusalém restaurada (Ap 20.4-6).
- A
criação será renovada (Is 11; 65.17-25).
- Haverá
abundância e paz, cumprimento das promessas a Israel.
- Os
justos reinarão com Cristo.
5) Ressurreição
final e Juízo universal
- Após
os 1.000 anos, Satanás será solto e derrotado (Ap 20.7-10).
- Ocorre
a segunda ressurreição: ímpios ressuscitam para o juízo.
- Cristo
julga todos (Ap 20.11-15).
6) Eternidade:
Novo céu e nova terra
- Consumação
definitiva da criação (Ap 21–22).
- A
humanidade restaurada em Cristo habita com Deus para sempre.
Bem, sobre a escatologia dos dispensacionalistas/conservadores,
estamos postando os assuntos aqui à
medida que conseguimos elaborá-los. Mas quero concluir destacando alguns pontos
de aproximação dela com a de Irineu.
Irineu
não faz distinção entre Israel e a Igreja ao tratar o fim dos tempos, não
ensina sobre um arrebatamento secreto, mas defende uma leitura futurista de
Daniel e Apocalipse; entende ser a última semana de Daniel um acontecimento
ainda futuro, culminando na revelação do Anticristo; divide esse período em
duas metades de 3 anos e meio, conectando com Ap 11–13; afirma que o “príncipe
que há de vir” (Dn 9.26-27) é o Anticristo, que perseguirá os santos; e
acreditava num reino milenar terreno de Cristo após sua vinda.
Notas / Referências bibliográficas:
- [1] Cyrus Ingerson Scofield (1843–1921): “... foi um influente ministro americano. Sua Bíblia de Referência Scofield , repleta de anotações úteis sobre o texto, foi publicada em 1909 e se tornou o padrão para uma geração de cristãos fundamentalistas e popularizou a teologia dispensacionalista...”. Veja mais aqui, aqui e também aqui.
- [2] IRINEU... Contras as Heresias, Livro V, Cap. 25 a 30.
- [3] SCOFIELD, Dr. C. I. Rota de Gênesis 1.28. In: A Bíblia Sagrada. São Paulo: Imprensa Batista Regular do Brasil: 1987. Texto e abreviaturas das referências adaptados.
- [4] IRINEU de Lyon. Contra as Heresias: Livro 5, p. 83 e 84), Edição do Kindle.