Na epístola de 2Coríntios (4.4) encontramos a expressão “deus deste século”, uma referência que sabemos, pelo contexto, tratar-se de um deus (com “d” minúsculo) capaz de cegar o entendimento das pessoas neste momento ou nesta forma de existência atual. Em Tito, Paulo afirma também que este “presente século” é cercado de impiedade, concupiscências mundanas etc., vícios que devemos renunciá-los(2.12). É neste sentido que gostaria de refletir sobre dois termos “secularização” e “laicização”, palavras similares que destacaremos em duas postagens.
Nesta, quero fazer uso quase na íntegra e com algumas notas adicionais, do texto de David W. Gill [2], e, no final, insiro para nossa reflexão o vídeo "Desafios para o Jovem Cristão em uma sociedade secularizada".
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Humanismo secular é o modo de vida e de pensamento que é seguido sem referência a Deus ou à religião. A raiz latina saeculum referia-se a uma geração ou a uma era. "Secular" velo a significar "pertencente a esta era, mundana" [3]. Em termos gerais, o secularismo envolve uma afirmação das realidades imanentes deste mundo, lado a lado com uma negação ou exclusão das realidades transcendentes do outro mundo. É uma cosmovisão e um estilo de vida que se inclina para o profano mais do que para o sagrado, o natural mais do que o sobrenatural. O secularismo é uma abordagem não-religiosa da vida individual e social.
Historicamente, "secularização" referia-se primeiramente ao processo de transferir os bens da jurisdição eclesiástica para o estado ou outra autoridade não-eclesiástica. Nesse sentido institucional, "secularização ainda significa a redução da autoridade religiosa formal (e.g., na educação). A secularização institucional tem sido alimentada pelo colapso de um cristianismo unificado desde a reforma [4], por um lado, e pela racionalização [5] cada vez maior da sociedade e da cultura desde o Iluminismo até à sociedade tecnológica moderna, por outro. Alguns analistas preferem o termo “laicização” [assunto que abordaremos num outro momento] para descrever essa secularização institucional da sociedade, ou seja, a substituição do controle religioso oficial pela autoridade não-eclesiástica.
Uma segunda maneira de se entender "secularização está ligada a uma mudança nos modos de pensar e viver, para longe de Deus e em direção a este mundo. O humanismo renascentista [6], o racionalismo iluminista [7], o poder e a influência cada vez maiores da ciência, o colapso das estruturas tradicionais (e.g., da família, da igreja, da vizinhança), a teorização da sociedade e a competição oferecida pelo nacionalismo, o evolucionismo e o marxismo, todos têm contribuído para aquilo que Max Weber chamou de “desencantamento” do mundo moderno.
Embora as secularizações institucional e ideológica tenham avançado simultaneamente no decurso destes últimos séculos, o relacionamento entre as duas não é causalmente exato nem necessário. Sendo assim, até mesmo num ambiente medieval, constantiniano, formalmente religioso no seu caráter, os homens e mulheres não estavam imunes a terem sua vida, seu pensamento e sua obra moldados por considerações seculares deste mundo. Da mesma forma, numa sociedade institucionalmente secularizada (laicizada) é possível aos indivíduos e grupos viverem, pensarem e trabalharem de modos que são motivados e orientados por Deus e por considerações religiosas.
A secularização, portanto, é um fato histórico, e tem seus prós e contras. O secularismo, no entanto, como uma filosofia abrangente da vida, expressa um entusiasmo sem reservas pelo processo da secularização em todas as esferas da vida. O secularismo carrega uma falha fatal pelo seu conceito reducionista da realidade, que nega e exclui Deus e o sobrenatural numa fixação míope naquilo que é imanente e natural. Na discussão contemporânea, o secularismo e o humanismo são frequentemente vistos como uma só dupla que forma o humanismo secular – uma abordagem da vida e da sociedade que glorifica a criatura e rejeita o Criador. O secularismo, como tal, constitui-se num rival do cristianismo.
Os teólogos e filósofos cristãos têm se engalfinhado com o significado e o impacto da secularização. Friedrich Schleiermacher [8] foi o primeiro teólogo que procurou fazer uma formulação radical do cristianismo em termos dos temas humanistas e racionalistas da Renascença e do Iluminismo. Embora seus esforços tenham sido brilhantes e extremamente influentes no desenvolvimento da teologia, os seus críticos fizeram a acusação de que Schleiermacher, ao invés de salvar o cristianismo, traiu aspectos cruciais da fé ao redefinir a religião em termos de sentimentos de dependência humana.
Nenhuma discussão contemporânea do cristianismo e do secularismo pode deixar de lidar com as Cartas e Papéis da Prisão escritas por Dietrich Bonhoeffer. Primeiramente pelo fato de a obra ser fragmentária e incompleta, os conceitos de Bonhoeffer tais como o “mundanismo cristão”, o “homem que ficou maior de idade”, e a necessidade de uma “interpretação não-religiosa da terminologia bíblica” têm sido sujeitados a debates calorosos quanto ao seu significado e às suas implicações. Friedrich Gogatten (The Reality of Faith – “A Realidade da Fé” – 1959), Paul van Buren (The Secular Meaning of the Gospel – “O significado Secular do Evangelho” – 1963), Harvey Cox (A Cidade do Homem – 1965), Ronald Gregor Smith (Secular Christianity – "O Cristianismo Secular – 1966), e os teólogos da “morte de Deus" são exemplos daqueles que seguiram o único rumo possível ao reformular o cristianismo em termos de um mundo secular, Kenneth Hamilton (Life in One's Stride – "Levando a Vida – 1968) nega que esta seja a melhor maneira de interpretar Bonhoeffer, e argumenta que aquele teólogo alemão nunca vacilou na sua convicção básica e ortodoxa.
Embora as discussões entre os teólogos durante as décadas de 1950 e de 1960 tendessem a focalizar a adaptação da teologia cristã à secularização, as décadas de 1970 e de 1980 testemunharam uma nova resistência vigorosa ao secularismo em muitos ambientes. Jacques Ellul (The New Demons – "Os Novos Demônios – 1975 foi uma das muitas vozes que argumentaram que o secularismo por si só era uma forma de religião, e que era antagonista tanto do cristianismo quanto do humanismo cristão verdadeiro. Francis A. Schaeffer (How Should We Then Live? – "Como, pois, Devemos Viver? – 1976) e outros fundamentalistas e evangélicos conservadores atacaram o humanismo secular como o grande inimigo contemporâneo da fé cristã.
Da perspectiva da teologia bíblica cristã, o secularismo é culpado porque "mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura, em lugar do Criador” (Rm 1.25). Tendo excluído o Deus transcendente como o absoluto e o objeto da adoração, o secularista inexoravelmente torna o mundo do homem e da natura absoluto, e objeto da adoração. Em termos bíblicos, o Deus sobrenatural criou o mundo e sustenta a sua existência. Este mundo (o saeculum) tem valor porque Deus o criou, continua a preservá-lo, e age para redimi-lo. Embora Deus seja Senhor da história e do universo, Ele não pode ser identificado com um ou outro (o panteísmo). Homens e mulheres existem em liberdade e responsabilidade diante de Deus e para o mundo. Mordomia e parceria definem o relacionamento que o homem tem com Deus e o mundo.
O caráter sacro e teocrático do Israel antigo é modificado com a vinda de Cristo. Com a obra de Cristo, a cidade e a nação são secularizadas (dessacralizadas), e a Igreja, como templo do Espirito Santo, agora é sacralizada. O relacionamento entre a Igreja e a sociedade ao redor não é definido em termos de uma missão no sentido de dessacralizar a sociedade pela imposição de um governo eclesiástico sobre ela. O relacionamento é de serviço e testemunho, de proclamação e cura, tudo com amor. Nesse sentido, pois, a secularização da sociedade é uma vocação cristã. Isto quer que a sociedade não deve ser considerada divina ou absoluta, mas uma coisa histórica e relativa. Somente Deus é sagrado e absoluto de modo final. Reestabelecer a natureza sagrada de Deus, no entanto, importará em atribuir a este mundo seu valor correto e relativo.
É claro que a distinção entre o sagrado e o secular não é um abismo que não possa ser ligado. Da mesma maneira que Deus fala e age no saeculum, os cristãos devem falar e agir de modo criador e redentor. Isto importa em não abandonar o mundo secular ao secularismo. Em todas as circunstâncias, a vida cristã no mundo secular deve ser vivida sob o senhorio de Jesus Cristo e em obediência à vontade de Deus e não à vontade do mundo. E em situações tais como as que existem nos Estador Unidos onde o povo em geral pode votar e é convidado a dar sua opinião na política, na educação pública, nos serviços sociais e assim por diante, os cristãos podem ser operantes para garantir que a Palavra de Deus seja ouvida e tenha seu devido lugar entre as muitas outras vozes que constituirão a totalidade heterogênea. Insistir que a Palavra de Deus deva ser imposta a todos sem exceção é cair de novo no autoritarismo antibíblico. Deixar de articular a Palavra de Deus no saeculum, no entanto, é ceder diante de um secularismo que, ao excluir o Criador, somente poderá levar à morte.
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Notas / Destaques:
- [2] David
W. Gill:
“PhD
na Universidade do Sul da Califórnia. Deão e Professor Adjunto de
Ética Cristã, New College Berkeley, Califórnia, EUA”.
O
texto Secular,
Humanismo Secular, a
seguir, é uma contribuição à Enciclopédia Histórico-Teológica
da Igreja Cristã, (Vide Referência bibliográfica).
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