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16 abril 2024

Revolução dos Bichos (VI)

Por George Orwell [1]

In: Gazeta do Povo [2] 

Durante todo o ano, os animais trabalharam como escravos. Mas eles eram felizes trabalhando; não se opunham a fazer nenhum esforço ou sacrifício, conscientes de que tudo o que faziam era em benefício próprio e daqueles de sua espécie que ainda nasceriam, e não em benefício de um bando de seres humanos ociosos e ladrões.

Durante a primavera e o verão eles trabalharam sessenta horas por semana e em agosto Napoleão anunciou que trabalhariam também nas tardes de domingo. Este trabalho era estritamente voluntário, mas qualquer animal que se ausentasse teria sua ração reduzida pela metade. Mesmo assim, precisaram abrir mão de certas tarefas. A colheita não foi tão bem sucedida quanto no ano anterior, e dois campos que deveriam ter sido semeados com raízes no início do verão não foram porque a terra não fora arada a tempo. Já dava para prever que o inverno seria bem difícil.

O moinho de vento apresentou muitas dificuldades inesperadas. Havia uma boa pedreira de calcário na fazenda, e tinham encontrado muita areia e cimento em um dos galpões, de modo que todos os materiais para a construção estavam à mão. Mas o problema que os animais não conseguiam resolver a princípio era como quebrar a pedra em pedaços de tamanho adequado. Não parecia haver maneira de fazer isso, exceto com picaretas e pés-de-cabra, que nenhum animal conseguia usar, pois nenhum animal ficava de pé em suas patas traseiras. Foi somente depois de semanas de esforço em vão que uma boa ideia ocorreu a alguém – usar a força da gravidade. Grandes rochas, grandes demais para serem usadas como eram, estavam espalhadas por todo o leito da pedreira. Os animais amarravam cordas ao redor delas e então puxavam com uma lentidão desesperadora, todos juntos, vacas, cavalos, ovelhas e qualquer outro animal que pudesse segurar a corda – até mesmo os porcos se juntavam em momentos críticos – até o topo da pedreira, de onde as pedras eram derrubadas para se despedaçarem em pedaços menores abaixo. Transportar a pedra depois de quebrada era relativamente simples. Os cavalos as carregavam em carroças, as ovelhas arrastavam uma por uma, e até mesmo Muriel e Benjamin usavam uma charrete velha e faziam sua parte. Até o final do verão acumularam um estoque suficiente de pedras e então a construção começou, sob a supervisão dos porcos.

Mas foi um processo lento e laborioso. Frequentemente era necessário um dia inteiro de esforço exaustivo para conseguirem arrastar uma única pedra até o topo da pedreira, e nem sempre elas quebravam quando caiam. Eles nunca teriam conseguido sem o Golias, cuja força parecia igual à de todos os outros animais juntos. Quando as pedras começaram a escorregar encosta abaixo e os animais gritavam desesperados ao se verem arrastados pela colina, era sempre ele que fazia força para segurar a corda e conseguia parar a pedra. Vê-lo trabalhar na encosta, subindo de pouco a pouco, com a respiração rápida, as pontas de seus cascos o segurando no chão e seus grandes flancos cheios de suor, deixava todos admirados. Esperança o advertiu algumas vezes para não se esforçar demais, mas Golias nunca a ouvia. Seus dois lemas, “Vou trabalhar mais” e “Napoleão está sempre certo”, pareciam-lhe uma resposta suficiente para todos os problemas. Tinha feito arranjos com o galo para ser acordado três quartos de hora mais cedo de manhã, ao invés de meia hora. E em seus momentos de lazer, tão raros hoje em dia, ele ia sozinho à pedreira, recolhia um carregamento de pedras quebradas e arrastava até o local de construção do moinho sem nenhuma ajuda.

O verão não foi tão ruim assim para os animais, apesar do trabalho duro. Se não tinham mais comida do que tinham nos dias de Jones, pelo menos não tinham menos. A vantagem de só ter que se alimentar e não ter que suportar cinco seres humanos extravagantes também era tão grande que os fracassos compensavam. E em muitos aspectos, o método animal de fazer as coisas era mais eficiente e poupava trabalho. Trabalhos como capinar, por exemplo, podiam ser feitos com uma minuciosidade impossível para os seres humanos. E novamente, como nenhum animal roubava agora, era desnecessário cercar o pasto da terra arável, o que poupava muito trabalho na manutenção de cercas e portões. No entanto, com o passar do verão, a escassez imprevista de algumas coisas começaram a ser percebidas. Havia necessidade de óleo de parafina, pregos, cordel, biscoitos para cães e ferraduras para os cavalos, todos itens que não poderiam ser produzidos na fazenda. Mais tarde haveria também necessidade de sementes e adubos artificiais, além de várias ferramentas e, finalmente, a maquinaria para o moinho de vento. Como estas seriam adquiridas, ninguém conseguia imaginar.

Numa manhã de domingo, quando os animais se reuniram para receber suas instruções, Napoleão anunciou que havia adotado uma nova política. A partir de agora, a Fazenda dos Animais se dedicaria ao comércio com as fazendas vizinhas: não, é claro, para qualquer propósito comercial, mas simplesmente para obter certos materiais que eram urgentemente necessários. As necessidades do moinho de vento devem se sobrepor a tudo o resto, disse ele. Ele estava, portanto, tomando providências para vender uma pilha de feno e parte da safra de trigo do ano corrente, e mais tarde, se mais dinheiro fosse necessário, eles teriam que vender ovos, sempre muito requisitados em Willingdon. As galinhas, disse Napoleão, deveriam acolher este sacrifício como sua própria contribuição especial para a construção do moinho de vento.

Mais uma vez os animais estavam conscientes de um vago mal-estar. Não tratar com seres humanos, não fazer comércio, não usar dinheiro – não foram estas as primeiras resoluções aprovadas naquela reunião triunfante depois da expulsão de Jones? Todos os animais se lembravam de ter aprovado tais resoluções: ou pelo menos pensavam que se lembravam disso. Os quatro jovens porcos que haviam protestado quando Napoleão aboliu as Reuniões levantaram timidamente suas vozes, mas foram prontamente silenciados por um tremendo rosnado dos cães. Então, como de costume, as ovelhas gritaram “Quatro patas bom, duas patas ruim!” e o constrangimento momentâneo foi suavizado. Finalmente, Napoleão levantou sua pata para pedir silêncio e anunciou que já havia feito todos os arranjos. Não haveria necessidade dos animais entrarem em contato com seres humanos, o que seria claramente indesejável. Ele pretendia assumir todo o fardo sobre seus próprios ombros. Um tal de Sr. Whymper, um advogado residente em Willingdon, tinha concordado em agir como intermediário entre a Fazenda dos Animais e o mundo exterior, e visitaria a fazenda toda segunda-feira de manhã para receber suas instruções. Napoleão terminou seu discurso com seu habitual grito de “Viva a Fazenda dos Animais!” e após o canto de “Animais da Inglaterra”, os animais foram dispensados.

Em seguida, Berro fez uma ronda na fazenda e acalmou a mente dos animais. Ele lhes assegurou que a resolução contra o comércio e o uso de dinheiro nunca havia sido aprovada, ou mesmo sugerida. Era pura imaginação, provavelmente originada nas mentiras circuladas por Bola de Neve. Alguns animais ainda se sentiam um pouco duvidosos, mas Berro lhes perguntou com astúcia: “Vocês têm certeza de que isto não é algo que vocês sonharam, camaradas? Vocês têm algum registro de tal resolução? Está escrito em algum lugar?” E como certamente era verdade que nada do tipo existia por escrito, os animais estavam satisfeitos com a explicação que tinham se equivocado.

Toda segunda-feira, o Sr. Whymper visitava a fazenda como havia sido combinado. Ele era um homenzinho de aparência manhosa com bigodes laterais, um despachante de negócios pequenos, mas afiado o suficiente para ter percebido antes de qualquer outro que a Fazenda dos Animais precisaria de um corretor e que valeria a pena ter as comissões. Os animais observavam suas idas e vindas com uma espécie de pavor, e o evitavam o máximo possível. No entanto, a visão de Napoleão, de quatro, entregando ordens à Whymper, que estava de pé, em duas pernas, despertou seu orgulho e os reconciliou parcialmente com o novo arranjo. Suas relações com a raça humana agora não eram exatamente as mesmas que eram antes. Os seres humanos não odiavam menos a Fazenda dos Animais agora que ela estava prosperando; de fato, eles odiavam-na mais do que nunca. Todo ser humano tinha fé que a fazenda iria à falência mais cedo ou mais tarde, e, acima de tudo, que o moinho seria um fracasso. Eles se reuniam nos bares e provavam uns aos outros por meio de diagramas que o moinho estava destinado a cair ou, que se ele se mantivesse em pé, nunca funcionaria. No entanto, contra sua vontade, eles tinham desenvolvido um certo respeito pela eficiência com que os animais estavam administrando seus próprios negócios. Um sintoma disso foi que eles começaram a chamar a Fazenda dos Animais pelo nome próprio e deixaram de fingir que ela se chamava Fazenda Solar. Eles também haviam abandonado a simpatia a Jones, que havia perdido a esperança de ter sua fazenda de volta e ido morar em outra parte do condado. Exceto por Whymper, ainda não havia contato entre a Fazenda dos Animais e o mundo exterior, mas havia constantes rumores de que Napoleão estava prestes a firmar um acordo comercial definitivo com o Sr. Pilkington de Foxwood ou com o Sr. Frederick de Pinchfield – mas nunca, como se notou, com ambos simultaneamente.

Foi mais ou menos nessa época que os porcos se mudaram de repente para a casa da fazenda e passaram a morar lá. Os animais pareciam se lembrar novamente que uma resolução contra isto havia sido aprovada nos primeiros dias, e novamente Berro conseguiu convencê-los de que este não era o caso. Era absolutamente necessário, disse ele, que os porcos, os cérebros da fazenda, tivessem um lugar tranquilo para trabalhar. Também era mais adequado à dignidade do Líder (pois, nos últimos tempos, ele havia começado a se referir a Napoleão como “Líder”) viver em uma casa do que em uma simples pocilga. No entanto, alguns dos animais ficaram perturbados quando souberam que os porcos não só comiam suas refeições na cozinha e usavam a sala de visitas como sala de recreação, mas também dormiam nas camas. Golias se acalmou com o “Napoleão está sempre certo!”, como sempre, mas Esperança, que achava que se lembrava de uma decisão definitiva contra as camas, foi até o final do celeiro e tentou decifrar os Sete Mandamentos que estavam inscritos ali. Não conseguindo ler mais do que algumas letras específicas, ela foi buscar Muriel.

“Muriel”, disse ela, “leia para mim o Quarto Mandamento. Não diz algo sobre nunca dormir em uma cama?”.

Muriel leu com alguma dificuldade. “Diz: ‘Nenhum animal deve dormir em uma cama com lençóis’”, ela anunciou finalmente.

Curiosamente, Esperança não se lembrava do Quarto Mandamento mencionar lençóis; mas como estava ali na parede, devia ser assim. E Berro, que por acaso estava passando por ali neste momento, acompanhado por dois ou três cães, foi capaz de colocar todo o assunto em perspectiva.

“Vocês ouviram então, camaradas”, disse ele, “que nós porcos agora dormimos nas camas da fazenda? E por que não? Vocês não supuseram, certamente, que alguma vez houve uma decisão contra as camas? Uma cama significa apenas um lugar para dormir. Uma pilha de palha em uma baia é uma cama, quando se para para pensar. A regra era contra os lençóis, que são uma invenção humana. Tiramos os lençóis das camas da fazenda, e dormimos entre cobertores. E olha, são camas muito confortáveis! Mas não mais confortáveis do que precisamos, posso dizer-lhes, camaradas, com todo o trabalho intelectual que temos que fazer hoje em dia. Vocês não nos roubariam o nosso descanso, não é, camaradas? Vocês não deixariam que ficássemos cansados demais para cumprir nossas obrigações? Com certeza nenhum de vocês deseja ver Jones de volta, não é?”

Os animais confirmaram imediatamente que não, não queriam, e não se falou mais nada sobre os porcos dormindo nas camas da fazenda. E quando, alguns dias depois, foi anunciado que a partir de agora os porcos se levantariam uma hora mais tarde pela manhã do que os outros animais, ninguém reclamou.

No outono, os animais estavam cansados, mas felizes. Eles tinham tido um ano difícil, e após a venda de parte do feno e do milho, o estoque de alimentos para o inverno não era abundante, mas o moinho de vento compensava tudo. Agora a construção estava quase na metade. Após a colheita, houve um período de tempo claro e seco e os animais trabalhavam mais do que nunca, achando que valia a pena arrastar blocos de pedra o dia inteiro se ao fazer isso eles pudessem levantar mais um pouco as paredes da construção. Golias até saía à noite e trabalhava por uma ou duas horas sozinho à luz da lua cheia. Em seu tempo livre, os animais andavam em volta do moinho semipronto, admirando a força e perpendicularidade de suas paredes e maravilhando-se com o fato de que foram capazes de construir algo tão imponente. Apenas o velho Benjamin se recusava a ficar entusiasmado com o moinho, embora, como de costume, ele não dissesse nada além do comentário misterioso de que os burros vivem muito tempo.

Chegou o mês de novembro, com os ventos raivosos do sudoeste. A construção teve que parar porque agora estava muito úmido para misturar o cimento. Finalmente chegou uma noite em que o vendaval foi tão violento que as instalações da fazenda balançaram sobre suas fundações e várias telhas foram arrancadas do telhado do celeiro. As galinhas despertaram em terror porque todas haviam sonhado simultaneamente que ouviam uma arma disparar ao longe. Pela manhã, os animais saíram de suas baias para descobrir que o mastro da bandeira havia sido derrubado e um olmo no pé do pomar havia sido arrancado como se fosse um rabanete. Eles tinham acabado de perceber isso quando um grito de desespero saiu da garganta de cada um dos animais. Todos viram algo terrível. O moinho de vento estava em ruínas.

Eles se precipitaram rapidamente para o local. Napoleão, que quase nunca saía para caminhar, correu à frente de todos eles. Sim, lá estava o moinho, fruto de todas as suas lutas, levado às suas fundações; as pedras que haviam quebrado e carregado tão laboriosamente estavam espalhadas por toda parte. Incapazes de falar a princípio, eles ficaram olhando em luto para o monte de pedras caídas. Napoleão andava de um lado para o outro em silêncio, ocasionalmente cheirando o chão. Sua cauda se enrijeceu, se torcendo bruscamente de um lado para o outro, sinal de intensa atividade mental. De repente, ele parou, como se tivesse tomado uma decisão.

“Camaradas”, disse ele silenciosamente, “vocês sabem quem é o responsável por isto? Vocês sabem quem é o inimigo que veio na noite e derrubou nosso moinho de vento? BOLA DE NEVE!” ele bramiu repentinamente com uma voz de trovão. “Bola de Neve fez isto! Em pura maldade, pensando em atrasar nossos planos e vingar-se de sua desonrosa expulsão, este traidor rastejou até aqui sob a cobertura da noite e destruiu nosso trabalho de quase um ano. Camaradas, aqui e agora eu pronuncio a sentença de morte de Bola de Neve. Ofereço uma ordem ‘Herói Animal, Segunda Classe’ e meio alqueire de maçãs a qualquer animal que o leve à justiça. Um alqueire cheio para qualquer um que o capturar com vida”!

Os animais ficaram mais do que chocados ao saber que Bola de Neve poderia ser culpado de tal ação. Houve um grito de indignação e todos começaram a pensar em maneiras de capturar o Bola de Neve se ele voltasse algum dia. Quase imediatamente as pegadas de um porco foram descobertas na grama a uma pequena distância do monte. Elas só podiam ser rastreadas por alguns metros, mas pareciam levar a um buraco na sebe. Napoleão farejou profundamente a região e pronunciou que as pegadas eram de Bola de Neve. E afirmou que, na sua opinião, Bola de Neve provavelmente tinha vindo da direção da Fazenda Foxwood.

“Chega de atrasos, camaradas!” gritou Napoleão quando as pegadas haviam sido examinadas. “Há trabalho a ser feito. Vamos começar a reconstruir o moinho de vento nesta manhã mesmo e vamos construir durante todo o inverno, chuva ou sol. Vamos ensinar a este miserável traidor que ele não pode desfazer nosso trabalho tão facilmente. Lembrem-se, camaradas, não deve haver alteração em nossos planos: eles devem ser realizados no prazo. Avante, camaradas! Viva o moinho de vento! Viva a Fazenda dos Animais”!

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Veja o vídeo sobre a leitura do capítulo VI a seguir:



Notas:

  • [1George Orwell: “...escritor nascido em uma colônia inglesa na Índia, é considerado um dos mais importantes romancistas da vertente distópica da literatura mundial, caracterizada pela narração de enredos em que os personagens vivenciam situações em espaço e tempo futuros, nos quais não há possibilidade para a utopia, ou seja, para o sonho e para a esperança. Nessa linha, destacam-se suas duas obras-primas, traduzidas para vários idiomas e transpostas para as telas do cinema mais de uma vez: o romance A revolução dos bichos, publicado em 1945, e o romance 1984, publicado em 1949.” Veja mais aqui.
  • [2O que diz o livro Revolução dos Bichos? “O conhecido livro do inglês George Orwell, A Revolução dos Bichos (1945), é um dos legados atemporais mais importantes que escritores do século passado nos deixaram. Na obra, Orwell faz uma crítica ao stalinismo. Então socialista, o inglês – nascido na Índia durante o domínio britânico – se desilude com a ideologia ao ver o totalitarismo soviético e satiriza o sucessor de Lênin. Na alegoria, o autor apresenta uma revolução idealizada por um porco, o Major (que pode representar tanto Marx como Lênin), que convoca os bichos da granja em que vive a expulsar seu proprietário, o humano Sr. Jones (que seria Nicolau II, imperador do Czar). Porco Major morre em seguida e dois outros suínos tomam a frente: Napoleão (representando Stálin) e Bola de Neve (que seria Trotski). A estória segue o roteiro soviético… Napoleão expurga Bola de Neve, deturpa as leis a seu favor e se torna um ditador. Os demais bichos (galinhas, gado, cavalo…) se rendem à autocracia sem questionar, de forma passiva. Cada vez trabalham mais, exaustivamente e com alimento controlado; enquanto isso, Napoleão toma posse das dependências do Sr. Jones, agindo, portanto, de forma mais exploradora e cruel que o antigo chefe. A ironia está no fato de que a máxima da revolução era ‘duas pernas/patas mau’ – referindo-se a seres humanos”. Leia mais em: Rodrigo Constantino – Gazeta do Povo.com.
  • [3ORWELL, George. Revolução dos Bichos. Gazeta do Povo. Capítulo VI, pág. 71 a 84. Veja o livro completo aqui.

13 abril 2024

Revolução dos Bichos (V)

Por George Orwell [1]

In: Gazeta do Povo [2]

    Capítulo V [3]

À medida que o inverno avançava, Mollie se tornava cada vez mais problemática. Ela chegava atrasada ao trabalho todo dia de manhã e se desculpava dizendo que tinha dormido demais. Se queixava também de dores misteriosas, embora seu apetite fosse excelente. Fugia do trabalho com algum pretexto qualquer e ia para o lago, onde ficava encarando tolamente para seu próprio reflexo na água. Mas havia rumores de algo mais sério. Um dia, enquanto Mollie caminhava alegremente pelo pátio, balançando sua longa cauda e mastigando um pedaço de feno, Esperança a levou para o lado.

“Mollie”, disse ela, “tenho algo muito sério para conversar com você. Esta manhã eu vi você olhando por cima da cerca que divide a Fazenda dos Animais de Foxwood. Um dos homens do Sr. Pilkington estava de pé do outro lado da cerca. E – eu estava muito longe, mas estou quase certa de ter visto isto – ele estava falando com você e você deixava ele acariciar seu nariz. O que isso significa, Mollie?”

“Ele não fez nada! Eu também não! Não foi assim!” gritou Mollie, ficando agitada e batendo a pata no chão.

“Mollie! Olhe bem para mim. Você me dá sua palavra de honra de que aquele homem não estava acariciando seu nariz?”

“Não foi assim!” repetiu Mollie sem olhar Esperança nos olhos e, no momento seguinte, ela se empinou e galopou para o campo.

Uma ideia tomou conta de Esperança. Sem dizer nada aos outros, ela foi para a baia da Mollie e remexeu a palha com seu casco. Uma pequena pilha de torrões de açúcar e várias fitas coloridas estavam ali embaixo.

Três dias depois, Mollie desapareceu. Durante algumas semanas nada se sabia de seu paradeiro, então os pombos relataram que a haviam visto do outro lado de Willingdon. Ela estava entre os eixos de uma charrete vermelha e preta elegante, em frente a uma casa pública. Um homem gordo de rosto vermelho, de calça xadrez e polainas, com pinta de funcionário público, estava acariciando seu nariz e alimentando-a com açúcar. Sua crina estava recém-cortada e ela usava uma fita escarlate ao redor de seu topete. Parecia estar se divertindo, ao menos assim contaram os pombos. Os animais nunca mais falaram sobre a Mollie.

Janeiro trouxe um clima miserável. A terra estava dura como ferro, e nada podia ser feito nos campos. Muitas reuniões foram realizadas no grande celeiro, e os porcos se ocupavam em planejar o trabalho da estação seguinte. Tinham aceitado que os porcos, que eram claramente mais espertos que os outros animais, deveriam decidir todas as questões de política agrícola, embora suas decisões tivessem que ser ratificadas pela maioria de votos. Este arranjo até teria funcionado bem se não fossem as disputas entre Bola de Neve e Napoleão. Os dois discordavam em todos os pontos em que era possível discordar. Se um deles sugerisse semear uma área maior com cevada, o outro certamente exigiria uma área maior de aveia, e se um deles dissesse que tal e tal campos eram adequados para couves, o outro declararia que eram inúteis para qualquer coisa, exceto raízes. Cada um tinha seus próprios seguidores e houve alguns debates violentos. Nas Reuniões, Bola de Neve frequentemente conquistava a maioria com seus discursos brilhantes, mas Napoleão era melhor em buscar apoio para si mesmo entre as falas. Ele foi especialmente bem sucedido com as ovelhas. Ultimamente as ovelhas baliam “Quatro patas bom, duas patas ruim” em qualquer momento, e frequentemente interrompiam a Reunião com isso. Notou-se que gritavam “Quatro patas bom, duas patas ruim” em momentos particularmente cruciais dos discursos de Bola de Neve. Ele havia estudado de perto alguns volumes antigos da revista “Agricultor e Criador de Rebanho” que ele havia encontrado na fazenda, e estava cheio de planos para inovações e melhorias. Ele falou com grande conhecimento sobre esgoto de campo, ensilagem e escória básica, e tinha elaborado um esquema complexo para que todos os animais largassem seu esterco diretamente no campo, em um local diferente a cada dia, para evitar o trabalho de transporte. Napoleão não produziu nenhum esquema próprio, mas disse calmamente que os planos de Bola de Neve não dariam em nada, dando a impressão de que seu tempo já tinha passado. Mas de todas as controvérsias, nenhuma foi tão intensa como a que ocorreu sobre o moinho de vento.

No longo pasto, não muito afastado das instalações da fazenda, havia um pequeno monte que era o ponto mais alto do terreno. Depois de fazer o levantamento do terreno, Bola de Neve declarou que este era o lugar perfeito para um moinho de vento, que podia ser feito para alimentar um dínamo e abastecer a fazenda com energia elétrica. Isto permitiria que as baias tivessem luz e fossem aquecidas no inverno, além de operar uma serra circular, um cortador de palha, um cortador de raízes e uma ordenhadeira elétrica. Os animais nunca tinham ouvido falar sobre esse tipo de coisa (pois a fazenda era antiquada e tinha apenas uma maquinaria bem primitiva), e eles ouviam com espanto enquanto Bola de Neve invocava imagens de máquinas fantásticas que fariam seu trabalho por eles enquanto pastavam à vontade nos campos ou melhoravam suas mentes com leitura e conversação.

Em poucas semanas, os planos de Bola de Neve para o moinho de vento foram totalmente elaborados. Os detalhes mecânicos vieram principalmente de três livros que tinham pertencido ao Sr. Jones: “Mil coisas úteis a fazer sobre a casa”, “Cada homem é seu próprio pedreiro” e “Eletricidade para iniciantes”. Bola de Neve usou como seu estudo um galpão que já havia sido usado para incubadoras e tinha um piso de madeira liso, adequado para desenhos. Ele ficava ali fechado por horas e horas. Com livros abertos em cima de uma pedra e um pedaço de giz preso entre os nós dos dedos de sua pata, ele se movia rapidamente de um lado para o outro, desenhando linha após linha e emitindo pequenos gemidos de excitação. Aos poucos os planos foram se transformando em uma complicada massa de manivelas e rodas dentadas, cobrindo mais da metade do piso, o que os outros animais achavam completamente ininteligível, mas muito impressionante. Todos eles vinham ver os desenhos de Bola de Neve pelo menos uma vez por dia. Até mesmo as galinhas e os patos vieram e se esforçaram para não pisar nas marcas de giz. Somente Napoleão se manteve distante. Ele havia se declarado contra o moinho de vento desde o início. Um dia, porém, ele chegou inesperadamente para examinar os planos. Ele andou bastante pelo galpão, olhando atentamente cada detalhe dos planos e os examinando uma ou duas vezes, ficando de pé por algum tempo para contemplá-los pelo canto do olho; de repente levantou a perna, urinou sobre os planos e saiu sem pronunciar uma palavra.

Toda a fazenda estava profundamente dividida em relação ao moinho de vento. Bola de Neve não negou que construí-lo seria difícil. Teriam que carregar pedras para as paredes, fazer as velas e lidar com os dínamos e cabos. (Bola de Neve não especificou como o material seria adquirido). Mas ele defendeu que tudo poderia ser feito dentro de um ano. E depois disso, declarou, economizariam tanta mão-de-obra que os animais precisariam trabalhar apenas três dias por semana. Napoleão, por outro lado, argumentou que a grande necessidade do momento era aumentar a produção de alimentos, e que se eles perdessem tempo no moinho, todos eles morreriam de fome. Os animais se separaram em dois grupos, cada uma com um slogan: “Vote em Bola de Neve e na semana de três dias” e “Vote em Napoleão e na manjedoura cheia”. Benjamin era o único animal que não estava do lado de nenhum dos dois. Ele se recusava a acreditar que a comida se tornaria mais abundante ou que o moinho de vento economizaria trabalho. Com moinho de vento ou sem moinho de vento, disse ele, a vida continuaria como sempre tinha sido – ou seja, ruim.

Além das disputas sobre o moinho de vento, havia a questão da defesa. Todos compreenderam que, embora os seres humanos tivessem sido derrotados na Batalha do Estábulo, eles poderiam fazer outra tentativa mais preparada de reconquistar a fazenda e reintegrar a posse do Sr. Jones. Eles tinham ainda mais razões para fazer isso porque a notícia de sua derrota se espalhou pelo campo, deixando os animais das outras fazendas mais inquietos do que nunca. Como de costume, Bola de Neve e Napoleão não concordavam. Segundo Napoleão, os animais deveriam adquirir armas de fogo e treinar tiro. Segundo Bola de Neve, eles deveriam enviar mais pombos mensageiros e promover a revolução entre os animais das outras fazendas. Um argumentou que se não conseguissem se defender, seriam conquistados, o outro argumentou que se as rebeliões acontecessem em todos os lugares eles não teriam necessidade de se defender. Os animais ouviram primeiro Napoleão, depois Bola de Neve, e não conseguiam decidir o que era melhor; na verdade, sempre se encontravam de acordo com aquele que estava falando no momento.

Finalmente, chegou o dia em que os planos de Bola de Neve foram concluídos. Na Reunião do domingo seguinte, a questão de começar ou não os trabalhos do moinho de vento seria colocada à votação. Quando os animais se reuniram no grande celeiro, Bola de Neve se levantou e, embora tenha sido ocasionalmente interrompido pelos balidos das ovelhas, expôs suas razões para defender a construção do moinho de vento. Então Napoleão se levantou para responder. Ele disse muito silenciosamente que o moinho era um disparate e não aconselhou ninguém a votar nele, voltando a se sentar prontamente; ele havia falado por apenas trinta segundos, e parecia quase indiferente ao efeito produzido. Nisso, Bola de Neve se levantou e, gritando para as ovelhas, que estavam balindo de novo, proferiu um apelo apaixonado em favor do moinho de vento. Até agora, os animais estavam divididos igualmente em suas simpatias, mas a eloquência de Bola de Neve apagou qualquer dúvida. Com frases brilhantes, ele pintou um quadro de como seria a Fazenda dos Animais quando o trabalho sórdido fosse retirado das costas dos animais. Sua imaginação tinha agora corrido muito além dos cortadores de palha e raízes. A eletricidade, disse ele, podia operar máquinas debulhadoras, arados, grades, rolos, colheitadeiras e aglutinadores, além de fornecer a cada estábulo sua própria luz elétrica, água quente e fria, e um aquecedor elétrico. Quando ele terminou de falar, não havia dúvidas quanto ao caminho a ser seguido para a votação. Mas exatamente neste momento Napoleão se levantou e, lançando um olhar peculiar de Bola de Neve, proferiu um guincho agudo, de um tipo que ninguém jamais havia ouvido antes.

Isso foi seguido por um terríveis latidos vindos de fora, e nove cachorros enormes usando coleiras de latão chegaram no celeiro. Eles correram direto para Bola de Neve, que saiu de seu lugar a tempo de fugir das mandíbulas estalando. De repente ele já estava do lado de fora da porta, com os cachorros em seu encalço. Surpresos e assustados demais para falar, todos os animais se amontoaram na porta para assistir a perseguição. Bola de Neve estava correndo pelo longo pasto que dava na estrada. Ele estava correndo como só um porco pode correr, mas os cães estavam chegando perto. Então ele escorregou e parecia certo que a corrida chegaria ao fim. Mas conseguiu se levantar e correu mais rápido do que nunca. Mas não adiantou: os cachorros já estavam perto novamente. Um deles quase mordeu o rabo de Bola de Neve, que a desviou bem na hora. Ele deu um último gás e, com poucos centímetros de vantagem, escapou por um buraco na cerca, não sendo mais visto.

Silenciosos e aterrorizados, os animais se arrastaram de volta para o celeiro. Os cachorros voltaram logo atrás, latindo. No início, ninguém foi capaz imaginar de onde vieram essas criaturas, mas o problema logo foi resolvido: eles eram os filhotes de cachorro que Napoleão havia separado de suas mães e criado. Embora ainda não tivessem crescido completamente, eles eram cães enormes, com uma aparência tão feroz quanto lobos.

Eles se mantiveram perto de Napoleão. Notou-se que eles abanavam suas caudas para ele da mesma forma que os outros cães costumavam fazer com o Sr. Jones.

Napoleão, com os cães seguindo-o, estava agora na parte mais alta do lugar, onde o Major tinha anteriormente parado para fazer seu discurso. Ele anunciou que a partir de agora as reuniões de domingo de manhã não seriam mais realizadas. Elas eram desnecessárias, disse ele, e desperdiçavam tempo. No futuro, todas as questões relacionadas ao funcionamento da fazenda seriam resolvidas por um comitê especial de porcos, presidido por ele mesmo. Estes se reuniriam em particular e depois comunicariam suas decisões aos demais. Os animais ainda se reuniriam aos domingos de manhã para saudar a bandeira, cantar “Animais da Inglaterra” e receber as ordens para a semana; mas não haveria mais debates.

Apesar do choque causado pela expulsão de Bola de Neve, os animais ficaram desolados com este anúncio. Vários deles teriam protestado se pudessem encontrar os argumentos certos. Até mesmo Golias ficou vagamente perturbado. Suas orelhas estavam ligeiramente viradas para trás e ele abanava o topete várias vezes, tentando arduamente organizar seus pensamentos; mas no final, ele não conseguiu pensar em nada para dizer. Mas alguns dos porcos eram, no entanto, mais articulados. Quatro jovens porcos na fila da frente gritavam estridentemente em tom de desaprovação, e todos os quatro se levantaram e começaram a falar ao mesmo tempo. Mas de repente os cães sentados ao redor de Napoleão soltaram rosnados profundos e ameaçadores, e os porcos se calaram e sentaram novamente. Em seguida, as ovelhas se lançaram em um tremendo balido de “Quatro patas bom, duas patas ruim!” que durou quase um quarto de hora e pôs fim a qualquer possibilidade de discussão.

Em seguida, Berro foi enviado para explicar o novo arranjo aos outros.

“Camaradas”, disse ele, “espero que cada animal aqui valorize o sacrifício que o camarada Napoleão fez ao tomar para si este trabalho extra. Não imaginem, camaradas, que a liderança é um prazer! Pelo contrário, é uma responsabilidade difícil e pesada. Ninguém acredita mais firmemente do que o camarada Napoleão que todos os animais são iguais. Ele ficaria muito feliz em deixar vocês tomarem suas próprias decisões. Mas às vezes vocês podem acabar tomando as decisões erradas, camaradas, e então, onde estaríamos? Vamos supor que vocês tivessem decidido seguir Bola de Neve, com seu sonho de moinhos de vento – Bola de Neve que, como sabemos agora, não passava de um criminoso?”.

“Ele lutou bravamente na Batalha do Estábulo”, disse alguém.

“Bravura não basta”, disse Berro. “Lealdade e obediência são mais importantes. E quanto à Batalha do Estábulo, acredito que chegará o momento em que descobriremos que o papel de Bola de Neve nela foi muito exagerado. Disciplina, camaradas, disciplina de ferro! Essa é a palavra de ordem para hoje. Um passo em falso, e nossos inimigos estarão sobre nós. Com certeza, camaradas, vocês não querem Jones de volta”.

Mais uma vez, este argumento era incontestável. Certamente, os animais não queriam Jones de volta; se era possível que a realização dos debates nas manhãs de domingo contribuíssem para a volta de Jones, então os debates deveriam parar. Golias, que agora tinha tido tempo para refletir, expressou o sentimento geral dizendo: “Se o camarada Napoleão diz, deve estar certo”. E a partir daí ele adotou a máxima: “Napoleão está sempre certo”, além de seu lema pessoal: “Vou trabalhar mais”.

Nessa época, o tempo já estava mudando e a aragem da primavera havia começado. O galpão onde Bola de Neve havia traçado seus planos do moinho de vento havia sido fechado e se supunha que os planos tinham sido apagados do chão. Todos os domingos de manhã, às dez horas, os animais se reuniam no grande celeiro para receber suas ordens para a semana. O crânio do velho Major, agora já sem qualquer resquício de carne, havia sido desenterrado do pomar e exposto em um toco ao pé da bandeira, ao lado da arma. Após o hasteamento da bandeira, os animais eram obrigados a passar pelo crânio de forma reverente antes de entrar no celeiro. Agora já não sentavam todos juntos como antes. Napoleão, assim como Berro e um outro porco chamado Minimus, que tinha um dom notável para compor canções e poemas, sentavam-se na frente da plataforma elevada, com os nove cachorros jovens formando um semicírculo à sua volta e os outros porcos sentados atrás. O resto dos animais sentou-se de frente para eles na parte principal do celeiro. Napoleão leu as ordens para a semana em estilo militar áspero e, depois de um único canto de “Animais da Inglaterra”, todos os animais se dispersaram.

No terceiro domingo após a expulsão de Bola de Neve, os animais ficaram um pouco surpresos ao ouvir Napoleão anunciar que o moinho de vento seria construído no fim das contas. Ele não deu nenhuma razão para ter mudado de ideia, simplesmente avisou os animais que esta tarefa extra significaria muito trabalho árduo, podendo até mesmo ser necessário reduzir suas rações. Os planos, entretanto, tinham sido todos preparados, até o último detalhe. Um comitê especial de porcos estava trabalhando neles durante as últimas três semanas. A construção do moinho de vento, além de várias outras melhorias, deveria levar dois anos.

Naquela noite, Berro explicou em particular para os outros animais que Napoleão nunca se opôs ao moinho de vento. Pelo contrário, foi ele quem o tinha defendido no início, e o plano que Bola de Neve tinha desenhado no chão do galpão tinha sido, na verdade, roubado de Napoleão. O moinho de vento foi, de fato, uma criação do próprio Napoleão. Por que então, perguntou alguém, ele havia falado tão fortemente contra o plano? Agora Berro parecia muito dissimulado. Isso, disse ele, era a astúcia do camarada Napoleão. Parecia que ele tinha se oposto ao moinho de vento simplesmente como uma manobra para se livrar de Bola de Neve, que era uma figura perigosa e uma má influência. Agora que estava fora do caminho, o plano podia ir adiante sem sua interferência. Isto, disse Berro, era algo chamado de tática. Ele repetiu várias vezes, “Tática, camaradas, tática!” pulando e balançando sua cauda com uma alegre gargalhada. Os animais não tinham certeza do que a palavra significava, mas Berro foi tão persuasivo, e os três cães que estavam com ele rosnaram tão ameaçadoramente, que aceitaram sua explicação sem mais perguntas.

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Veja também o capítulo 5 no vídeo a seguir:



Notas:

  • [1George Orwell: “...escritor nascido em uma colônia inglesa na Índia, é considerado um dos mais importantes romancistas da vertente distópica da literatura mundial, caracterizada pela narração de enredos em que os personagens vivenciam situações em espaço e tempo futuros, nos quais não há possibilidade para a utopia, ou seja, para o sonho e para a esperança. Nessa linha, destacam-se suas duas obras-primas, traduzidas para vários idiomas e transpostas para as telas do cinema mais de uma vez: o romance A revolução dos bichos, publicado em 1945, e o romance 1984, publicado em 1949.” Veja mais aqui.

  • [2O que diz o livro Revolução dos Bichos? “O conhecido livro do inglês George Orwell, A Revolução dos Bichos (1945), é um dos legados atemporais mais importantes que escritores do século passado nos deixaram. Na obra, Orwell faz uma crítica ao stalinismo. Então socialista, o inglês – nascido na Índia durante o domínio britânico – se desilude com a ideologia ao ver o totalitarismo soviético e satiriza o sucessor de Lênin. Na alegoria, o autor apresenta uma revolução idealizada por um porco, o Major (que pode representar tanto Marx como Lênin), que convoca os bichos da granja em que vive a expulsar seu proprietário, o humano Sr. Jones (que seria Nicolau II, imperador do Czar). Porco Major morre em seguida e dois outros suínos tomam a frente: Napoleão (representando Stálin) e Bola de Neve (que seria Trotski). A estória segue o roteiro soviético… Napoleão expurga Bola de Neve, deturpa as leis a seu favor e se torna um ditador. Os demais bichos (galinhas, gado, cavalo…) se rendem à autocracia sem questionar, de forma passiva. Cada vez trabalham mais, exaustivamente e com alimento controlado; enquanto isso, Napoleão toma posse das dependências do Sr. Jones, agindo, portanto, de forma mais exploradora e cruel que o antigo chefe. A ironia está no fato de que a máxima da revolução era ‘duas pernas/patas mau’ – referindo-se a seres humanos”. Leia mais em: Rodrigo Constantino – Gazeta do Povo.com.

  • [3ORWELL, George. Revolução dos Bichos. Gazeta do Povo. Capítulo V, pág. 54 a 69. Veja o livro completo aqui.

10 abril 2024

Revolução dos Bichos (IV)

Por George Orwell [1]

In: Gazeta do Povo [2]

Capítulo 4 [3]


Até o fim do verão, a notícia do que havia acontecido na Fazenda dos Animais havia se espalhado pela metade do condado. Todos os dias Bola de Neve e Napoleão mandavam pombos voarem com a instrução de se misturar com os animais das fazendas vizinhas, contar-lhes a história da Revolução e ensinar-lhes “Animais da Inglaterra”.

O Sr. Jones passou a maior parte deste tempo sentado perto do barril do Leão Vermelho em Willingdon, se lamentando para qualquer um que ouvisse sobre a monstruosa injustiça que havia sofrido ao ser expulso de sua propriedade por um bando de animais inúteis. Os outros agricultores simpatizaram com ele a princípio, mas não lhe deram muito auxílio. No fundo, cada um deles se perguntava secretamente se não poderia de alguma forma usar o infortúnio de Jones em benefício próprio. Foi uma sorte que os proprietários das duas fazendas vizinhas à Fazenda dos Animais estivessem sempre em péssimas condições. Uma delas, que se chamava Foxwood, era uma fazenda grande, negligenciada e antiquada, com um bosque que cresceu mais do que deveria, pastos desgastados e sebes em condições vergonhosas. Seu proprietário, o Sr. Pilkington, era um fazendeiro gentil e tranquilo que passava a maior parte de seu tempo pescando ou caçando, de acordo com a estação do ano. A outra fazenda, que se chamava Pinchfield, era menor e melhor conservada. Seu proprietário era um tal de Sr. Frederick, um homem duro e astuto, envolvido constantemente em processos judiciais e com fama de conduzir barganhas difíceis. Eles não gostavam muito um do outro, a ponto de ser difícil chegarem a qualquer acordo, mesmo em defesa de seus próprios interesses.

No entanto, ambos estavam profundamente assustados com a Revolução na Fazenda dos Animais e muito ansiosos em evitar que seus próprios animais soubessem demais sobre o assunto. No início, eles fingiam rir da situação para desprezar a ideia de animais administrando uma fazenda sozinhos. Tudo isso acabaria em quinze dias, disseram eles. Eles disseram que os animais da Fazenda Solar (eles insistiam em chamá-la pelo nome antigo; não toleravam o nome “Fazenda dos Animais”) estavam lutando constantemente entre si e que estavam morrendo de fome rapidamente. Quando o tempo passou e os animais evidentemente não tinham morrido de fome, Frederick e Pilkington mudaram de tom e começaram a falar da terrível maldade que agora surgia na Fazenda dos Animais. Foi divulgado que os animais praticavam canibalismo, torturaram-se uns aos outros com ferraduras vermelhas de fogo, e compartilhavam as fêmeas. Foi o resultado da Revolução contra as leis da natureza, disseram Frederick e Pilkington.

No entanto, nunca se acreditou completamente nestas histórias. Rumores de uma fazenda maravilhosa, onde os seres humanos tinham desaparecido e os animais administravam seus próprios negócios, continuaram a circular em formas vagas e distorcidas, e durante todo aquele ano uma onda de rebeldia correu pelo campo. Touros que sempre tinham sido fáceis subitamente se tornaram selvagens, ovelhas quebraram cercas e devoraram o pasto, vacas chutaram o balde, os cavalos se recusavam a pular os obstáculos e derrubavam seus cavaleiros para o lado. Acima de tudo, a melodia e até mesmo as palavras de “Animais da Inglaterra” eram conhecidas por todos os lugares. A música se espalhou com uma velocidade surpreendente. Os seres humanos não conseguiram conter sua fúria quando ouviam esta canção, embora fingissem que a achavam ridícula. Eles não conseguiam entender, diziam eles, como até mesmo os animais conseguiam cantar tais porcarias desprezíveis.

Qualquer animal que fosse pego cantando recebia um castigo imediato. E, mesmo assim, a canção era irreprimível. Os melros a assobiavam nas cercas, os pombos a murmuravam nos olmos. Ela se infiltrou nas marteladas dos ferreiros e na melodia dos sinos das igrejas. E quando os seres humanos a ouviam, tremiam secretamente, ouvindo nela uma profecia de sua futura desgraça.

No começo de outubro, quando o milho foi cortado e empilhado e parte dele já estava debulhado, um bando de pombos chegou rodopiando pelo ar e pousou no pátio da Fazenda dos Animais fazendo um grande alvoroço. Jones e todos os seus homens, além de alguns trabalhadores de Foxwood e Pinchfield, tinham entrado pelo portão de cinco grades e estavam subindo o caminho largo que dava na fazenda. Todos eles estavam carregando varas, exceto Jones, que estava marchando adiante com uma arma nas mãos. Obviamente, eles iam tentar recapturar a fazenda.

Os animais já esperavam isso há muito tempo e já tinham feito todos os preparativos. Bola de Neve, que havia estudado um livro velho sobre as campanhas de Júlio César que havia encontrado na fazenda, estava encarregado das operações defensivas. Ele deu suas ordens rapidamente, e em poucos minutos todos os animais estavam a postos.

Quando os seres humanos se aproximaram das instalações da fazenda, Bola de Neve lançou a primeira onda de ataque. Todos os pombos, um total de trinta e cinco, voaram de um lado para o outro sobre as cabeças dos homens, defecando neles em pleno ar; enquanto os homens lidavam com isso, os gansos, que estavam escondidos atrás da cerca, correram para fora e bicaram ferozmente suas panturrilhas. Entretanto, esta foi apenas uma manobra simples, destinada a criar uma pequena desordem, e os homens expulsaram os gansos com facilidade. Bola de Neve lançou agora sua segunda linha de ataque. Muriel, Benjamin e todas as ovelhas, Bola de Neve à frente, correram em direção aos homens, os espetando e dando chifradas por todos os lados, enquanto Benjamin se virou de costas e lhes deu vários coices com seus pequenos cascos. Mas mais uma vez os homens, com suas varas e botas com esporas, eram fortes demais para eles; e de repente, com um guincho do Bola de Neve, que era o sinal de retirada, todos os animais se viraram e fugiram pelo portão de entrada para o pátio.

Os homens deram um grito de triunfo. Eles viram, ou ao menos assim pensavam, seus inimigos em fuga, e correram atrás deles em desordem. Isto era exatamente o que Bola de Neve queria. Assim que se encontravam no meio do pátio, os três cavalos, as três vacas e o resto dos porcos, que estavam deitados numa emboscada no estábulo, de repente emergiram em sua retaguarda, fechando-lhes o caminho. Bola de Neve deu agora o sinal para o ataque. Ele mesmo foi direto para Jones. Jones o viu chegar, levantou a arma e atirou, deixando marcas sangrentas nas costas de Bola de Neve. Uma ovelha caiu morta. Sem parar por um instante, Bola de Neve atirou seus quase 100 quilos contra as pernas de Jones. Jones foi jogado em uma pilha de esterco e a arma voou de suas mãos. Mas o espetáculo mais assustador de todos foi Golias, levantando-se sobre suas patas traseiras e golpeando com seus grandes cascos de ferro como um garanhão. Seu primeiro golpe acertou um rapaz que trabalhava com Foxwood bem no crânio, o derrubando na lama sem vida. Vendo isso, vários homens soltaram seus bastões e tentaram fugir. O pânico os atingiu, e no momento seguinte todos os animais os perseguiam juntos em volta do pátio. Eles foram chifrados, chutados, mordidos, pisoteados. Não havia um animal na fazenda que não se vingasse deles da sua própria maneira. Até mesmo a gata saltou de repente de um teto para os ombros de um dos fazendeiros, afundando suas garras em seu pescoço, fazendo com que ele desse um grito horrível. Assim que o portão ficou livre, os homens ficaram felizes em sair correndo em disparada do pátio em direção à rua principal. E assim, depois de cinco minutos de invasão, eles vergonhosamente se retiraram da mesma maneira com que vieram, com um bando de gansos assobiando atrás deles e bicando suas pernas durante todo o caminho.

Todos os homens tinham ido embora, exceto um. De volta ao pátio, Golias cutucava o jovem rapaz de leve com seu casco, tentando virá-lo para cima. O garoto não se mexeu.

“Ele está morto”, disse Golias tristemente. “Eu não queria fazer isso. Esqueci que estava usando ferraduras de ferro. Quem vai acreditar que eu não fiz isso de propósito?”

“Sem sentimentalismos, camarada!” gritou Bola de Neve, cujas feridas ainda sangravam. “Guerra é guerra. Ser humano bom é ser humano morto”.

“Eu não tenho desejo de tirar a vida de ninguém, nem mesmo dos homens”, repetiu Golias com os olhos cheios de lágrimas.

“Onde está a Mollie?” exclamou alguém.

Mollie, de fato, tinha desaparecido. Por um breve momento houve um grande alarde; temia-se que os homens a tivessem prejudicado de alguma forma, ou até mesmo a levado com eles. No entanto, ela foi no fim encontrada escondida em seu estábulo com a cabeça enterrada entre o feno na manjedoura. Ela fugiu assim que a arma disparou. E quando os outros pararam de procurá-la, descobriram que o rapaz, que na verdade estava apenas atordoado, já havia se recuperado e fugido.

Os animais agora tinham se reunido com grande excitação, cada um recontando suas próprias façanhas na batalha a plenos pulmões. Uma celebração improvisada de vitória foi organizada imediatamente. A bandeira foi hasteada e “Animais da Inglaterra” foi cantada várias vezes, e depois a ovelha morta recebeu um funeral solene – um espinheiro também foi plantado em seu túmulo. Bola de Neve fez um pequeno discurso, enfatizando a necessidade de que todos os animais estivessem prontos para morrer pela Fazenda dos Animais, se fosse necessário.

Os animais decidiram por unanimidade criar uma condecoração militar, “Herói Animal, Primeira Classe”, que foi conferida ali mesmo a Bola de Neve e Golias. Consistia em uma medalha de latão (na realidade, eram algumas placas para os cavalos que foram encontradas na sala de arreio), para ser usada nos domingos e feriados. Havia também o “Herói Animal, Segunda Classe”, que foi conferido postumamente à ovelha morta.

Havia muita discussão sobre como chamar a batalha. No final, o nome escolhido foi “Batalha do Estábulo”, já que foi lá que a emboscada havia sido desencadeada. A arma do Sr. Jones havia sido encontrada na lama, e sabia-se que havia um suprimento de cartuchos dentro da casa. Foi decidido posicionar a arma aos pés do mastro, como uma peça de artilharia, e dispará-la duas vezes ao ano – no dia 12 de outubro, o aniversário da Batalha do Estábulo, e no Solstício de Verão, o aniversário da Revolução.

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Veja também a leitura do capítulo 4 do livro em:


Notas:

  • [1George Orwell: “...escritor nascido em uma colônia inglesa na Índia, é considerado um dos mais importantes romancistas da vertente distópica da literatura mundial, caracterizada pela narração de enredos em que os personagens vivenciam situações em espaço e tempo futuros, nos quais não há possibilidade para a utopia, ou seja, para o sonho e para a esperança. Nessa linha, destacam-se suas duas obras-primas, traduzidas para vários idiomas e transpostas para as telas do cinema mais de uma vez: o romance A revolução dos bichos, publicado em 1945, e o romance 1984, publicado em 1949.” Veja mais aqui.
  • [2O que diz o livro Revolução dos Bichos? “O conhecido livro do inglês George Orwell, A Revolução dos Bichos (1945), é um dos legados atemporais mais importantes que escritores do século passado nos deixaram. Na obra, Orwell faz uma crítica ao stalinismo. Então socialista, o inglês – nascido na Índia durante o domínio britânico – se desilude com a ideologia ao ver o totalitarismo soviético e satiriza o sucessor de Lênin. Na alegoria, o autor apresenta uma revolução idealizada por um porco, o Major (que pode representar tanto Marx como Lênin), que convoca os bichos da granja em que vive a expulsar seu proprietário, o humano Sr. Jones (que seria Nicolau II, imperador do Czar). Porco Major morre em seguida e dois outros suínos tomam a frente: Napoleão (representando Stálin) e Bola de Neve (que seria Trotski). A estória segue o roteiro soviético… Napoleão expurga Bola de Neve, deturpa as leis a seu favor e se torna um ditador. Os demais bichos (galinhas, gado, cavalo…) se rendem à autocracia sem questionar, de forma passiva. Cada vez trabalham mais, exaustivamente e com alimento controlado; enquanto isso, Napoleão toma posse das dependências do Sr. Jones, agindo, portanto, de forma mais exploradora e cruel que o antigo chefe. A ironia está no fato de que a máxima da revolução era ‘duas pernas/patas mau’ – referindo-se a seres humanos”. Leia mais em: Rodrigo Constantino – Gazeta do Povo.com.
  • [3ORWELL, George. Revolução dos Bichos. Gazeta do Povo. Capítulo IV, pág. 44 a 52. Veja o livro completo aqui.

07 abril 2024

Revolução dos Bichos (III)

Por George Orwell [1]

In: Gazeta do Povo [2]

    Capítulo III [3]

Como eles trabalharam e suaram para colher o feno! Mas seus esforços foram recompensados, pois a colheita foi um sucesso ainda maior do que esperavam.

Às vezes o trabalho era árduo; os instrumentos tinham sido projetados para seres humanos, não para animais, e era um grande inconveniente que nenhum deles fosse capaz de usar qualquer ferramenta que envolvesse ficar de pé em suas patas traseiras. Mas os porcos eram tão espertos que podiam pensar em uma maneira de contornar cada dificuldade. Já os cavalos conheciam cada centímetro do campo e, de fato, entendiam muito mais de ceifar e arar do que Jones e seus homens. Os porcos não chegaram a trabalhar, mas gerenciavam e supervisionavam os outros. Com sua sabedoria superior, era natural que eles assumissem a liderança. Golias e Esperança se arreavam sozinhos no cortador ou no arado (não precisavam de freios ou rédeas nestes dias, é claro) e davam a volta completa ao redor do campo, com um porco os seguindo gritando “Arre, camarada!” ou “Opa, camarada!”, dependendo do caso. E todos os animais, até os mais modestos, trabalhavam para virar o feno e recolhê-lo. Até mesmo os patos e galinhas trabalhavam o dia todo debaixo do sol, carregando pequenos pedaços de feno em seus bicos. No final, eles terminaram a colheita dois dias antes do que Jones e seus homens normalmente fariam. Além disso, foi a maior colheita que a fazenda já havia visto. Não houve nenhum desperdício; as galinhas e os patos com seus olhos afiados haviam recolhido até o último talo. E nenhum animal da fazenda roubou uma bocada que fosse.

Durante todo aquele verão, o trabalho da fazenda funcionou como a engrenagem de um relógio. Os animais nunca imaginaram que seriam tão felizes. Cada bocada de comida era um enorme prazer, agora que o alimento era deles de verdade, produzido por eles para eles mesmos, e não para um mestre rancoroso. Com o desaparecimento dos seres humanos parasitas e inúteis, havia mais para comer. Eles também descansavam mais, apesar da inexperiência. Eles tiveram muitas dificuldades – por exemplo, quando colheram o milho no final do ano: tiveram que esmigalhar os grãos no estilo antigo e soprar o joio com o próprio fôlego, já que a fazenda não possuía nenhuma debulhadora – mas os porcos com sua esperteza e o Golias com seus tremendos músculos sempre davam um jeito de terminar. Todos admiravam Golias. Ele já trabalhava duro na época do Jones, mas agora parecia ter se desdobrado em três; havia dias em que todo o trabalho da fazenda parecia ser feito por ele. Ele empurrava e puxava, sempre no lugar onde o trabalho era mais difícil, do começo da manhã até o fim da noite. Tinha até feito um acordo com um dos galos para acordá-lo meia hora antes dos outros de manhã, para trabalhar voluntariamente em algo que lhe parecia necessário antes do começo da jornada normal de trabalho. Sua resposta para cada problema ou contratempo era “Vou trabalhar mais” – o que tinha adotado como lema pessoal.

Mas todos trabalhavam de acordo com sua capacidade. As galinhas e os patos, por exemplo, economizaram cinco alqueires de milho na colheita, recolhendo os grãos que se perderam pelo caminho. Ninguém roubou, ninguém resmungou por causa da quantidade de ração e as brigas, mordidas e ciúmes tão frequentes nos velhos tempos quase desapareceram. Ninguém se esquivou – ou quase ninguém. Mollie, era verdade, não gostava de acordar muito cedo, e dava um jeito de escapar do trabalho tão logo uma pedra ficasse presa em seu casco. E o comportamento da gata era um tanto peculiar. Logo se percebeu que quando havia trabalho a ser feito ninguém conseguia encontrá-la.

Ela desaparecia por horas a fio e depois reaparecia na hora das refeições, ou à noite, depois que o trabalho tivesse terminado, como se nada tivesse acontecido. Mas ela sempre dava desculpas tão boas, e miava tão carinhosamente, que era impossível não acreditar em suas boas intenções. O velho Benjamin, o burro, parecia bastante inalterado desde a Revolução. Ele fazia seu trabalho da mesma forma lenta e obstinada como sempre havia feito no tempo de Jones, nunca se esquivando do trabalho, mas também nunca se voluntariando para qualquer coisa extra. Ele também não expressava nenhuma opinião sobre a Revolução e seus resultados. Quando lhe perguntavam se ele não estava mais feliz agora que Jones tinha partido, ele dizia apenas: “Os burros vivem muito tempo. Nenhum de vocês jamais viu um burro morto”, e os outros tinham que se contentar com esta resposta enigmática.

Aos domingos, não havia trabalho. O café da manhã era uma hora mais tarde que o habitual, e depois da refeição havia uma cerimônia que era respeitada todas as semanas sem falta. Ela começava com o hasteamento da bandeira. Bola de Neve tinha encontrado na sala de arreio uma velha toalha verde de mesa da Sra. Jones e tinha pintado nela um casco e um chifre brancos. Era hasteada no mastro da fazenda todos os domingos de manhã. A bandeira era verde, explicou Bola de Neve, para representar os campos verdes da Inglaterra, enquanto o casco e o chifre significavam a futura República dos Animais, que surgiria quando a raça humana tivesse sido finalmente deposta. Após o hasteamento da bandeira, todos os animais entravam no grande celeiro para uma assembleia geral que ficou conhecida como Reunião. Aqui o trabalho da semana seguinte era planejado e as resoluções eram apresentadas e debatidas. As resoluções sempre eram apresentadas pelos porcos. Os outros animais davam conta de votar, mas nunca conseguiam pensar em alguma resolução por conta própria. Bola de Neve e Napoleão eram, de longe, os mais ativos nos debates. Mas notava-se que os dois nunca estavam de acordo: qualquer que fosse a sugestão de um deles, o outro com certeza se oporia a ela. Mesmo quando resolveram separar o cercado atrás do pomar como um lar de descanso para animais que já tinham passado da fase de trabalhar – medida à qual ninguém se opunha – houve um debate conturbado sobre a idade correta de aposentadoria para cada classe de animais. A Reunião sempre terminava com o canto de “Animais da Inglaterra”, e a tarde era dedicada ao lazer.

Os porcos tinham reservado a sala de arreios para si próprios como sede. Era ali que, à noite, estudavam ferraria, carpintaria e outros ofícios necessários em livros que haviam trazido da casa de Jones. Bola de Neve também se ocupava em organizar os outros no que ele chamava de Comitês de Animais. Ele não se cansava. Ele formou o Comitê de Produção de Ovos para as galinhas, a Liga dos Rabos Limpos para as vacas, o Comitê de Reintegração dos Camaradas Selvagens (com objetivo de domesticar os ratos e coelhos), o Movimento da Lã Branca para as ovelhas, e vários outros, além de instituir aulas de leitura e escrita. De modo geral, estes projetos foram um fracasso. A tentativa de domar as criaturas selvagens, por exemplo, deu por água abaixo quase que imediatamente. Eles continuaram se comportando como antes e, quando tratados com generosidade, simplesmente tiraram proveito disso. A gata entrou para o Comitê de Reintegração e foi muito ativa nele durante alguns dias. Ela foi vista um dia sentada em um telhado falando com alguns pardais que estavam fora de seu alcance. Ela estava lhes dizendo que agora todos os animais eram camaradas e que qualquer pardal que quisesse poderia vir e se empoleirar em sua pata; mas os pardais mantiveram uma certa distância.

As aulas de leitura e escrita, no entanto, foram um grande sucesso. No outono, quase todos os animais da fazenda já estavam alfabetizados em algum nível.

Quanto aos porcos, eles já sabiam ler e escrever perfeitamente. Os cães aprenderam a ler bastante bem, mas não estavam interessados em ler nada além dos Sete Mandamentos. Muriel, a cabra, sabia ler um pouco melhor que os cães, e às vezes lia pedaços de jornal que ela encontrava no monte de lixo para os outros à noite. Benjamin sabia ler tão bem quanto qualquer porco, mas nunca exerceu sua faculdade. Até onde ele sabia, disse ele, não havia nada que valesse a pena ser lido. Esperança aprendeu o alfabeto inteiro, mas não conseguia juntar as palavras. Golias não podia ir além da letra D. Ele desenhava A, B, C, D na poeira com seu grande casco, e depois ficava olhando as letras com as orelhas para trás, balançando seu topete, tentando lembrar o que vinha a seguir com todas as suas forças sem sucesso. Em várias ocasiões, de fato, ele conseguiu aprender E, F, G, H, mas só para descobrir que tinha esquecido A, B, C, e D. Finalmente ele decidiu ficar satisfeito com as primeiras quatro letras, e as escrevia uma ou duas vezes por dia para refrescar sua memória. Mollie se recusou a aprender qualquer uma, exceto pelas letras do seu próprio nome. Ela conseguia escrever seu nome muito bem no chão com pedaços de galho, e depois decorava com uma flor ou duas e andava ao redor admirando sua obra.

Nenhum outro animal da fazenda conseguiu passar da letra A. Também descobriram que os animais mais estúpidos, como as ovelhas, as galinhas e os patos, eram incapazes de decorar os Sete Mandamentos. Depois de pensar muito, Bola de Neve declarou que os Sete Mandamentos poderiam ser reduzidos a uma máxima única, ou seja: “Quatro patas bom, duas patas ruim”. Essa frase, disse ele, continha o princípio essencial do animalismo. Quem o tivesse compreendido a fundo, estaria a salvo das influências humanas. As aves a princípio se opuseram, já que lhes parecia que também tinham duas patas, mas Bola de Neve lhes provou que não era bem assim.

“A asa de uma ave, camaradas”, disse ele, “é um órgão de propulsão, não de manipulação. Portanto, deve ser considerada como uma perna. A marca distintiva do homem é a MÃO, o instrumento com o qual ele perpetua toda sua maldade”.

As aves não entenderam as longas palavras de Bola de Neve, mas aceitaram sua explicação, e todos os animais mais modestos se puseram a trabalhar para decorar a nova máxima. Quatro patas bom, duas patas ruim, estava inscrita na parede final do celeiro, acima dos Sete Mandamentos e em letras maiores. Depois que conseguiram decorar, as ovelhas desenvolveram uma grande simpatia por esta máxima e muitas vezes, quando estavam no campo, todas começavam a balir “Quatro patas bom, duas patas ruim! Quatro patas bom, duas patas ruim!” e continuavam por horas a fio, sem nunca se cansar dela.

Napoleão não se interessou pelos comitês do Bola de Neve. Ele disse que a educação dos jovens era mais importante do que qualquer coisa que pudesse ser feita por aqueles que já eram adultos. Aconteceu que tanto Mimi quanto Lulu tinham parido logo após a colheita de feno, dando à luz nove filhotes robustos de cachorro. Assim que foram desmamados, Napoleão os tirou de suas mães, dizendo que ele se tornaria responsável pela educação deles. Ele os levou para um pombal que só podia ser alcançado por uma escada na sala de arreio, e lá os manteve em tal reclusão que o resto da fazenda logo se esqueceu de sua existência.

O mistério de para onde ia o leite foi logo esclarecido. Ele era misturado todos os dias no purê dos porcos. As primeiras maçãs estavam agora amadurecendo, e a grama do pomar estava repleta de frutos. Os animais imaginaram, naturalmente, que elas seriam distribuídas igualmente; um dia, no entanto, foi ordenado que todos os animais coletassem as maçãs e as levassem para a sala de arreios para consumo dos porcos. Alguns animais murmuraram, mas isso não serviu para nada. Todos os porcos estavam de comum acordo, até mesmo Bola de Neve e Napoleão. Berro foi o mensageiro das explicações.

“Camaradas!” gritou ele. “Vocês não imaginam, espero eu, que nós, porcos, estamos fazendo isso com espírito de egoísmo e privilégio, certo? Muitos de nós não gostam tanto assim de leite e maçãs. Eu mesmo não gosto muito. Nosso único objetivo ao tomar posse dessas coisas é preservar nossa saúde. O leite e as maçãs (isto foi provado pela Ciência, camaradas) contêm substâncias absolutamente necessárias para o bem-estar de um porco. Nós, porcos, somos trabalhadores do cérebro. Toda a administração e organização da fazenda depende de nós. Dia e noite. Estamos zelando pelo seu bem-estar dia e noite. É por sua causa que nós bebemos esse leite e comemos essas maçãs. Você sabe o que aconteceria se nós, porcos, falhássemos em nosso dever? Jones voltaria! Sim, Jones voltaria! Certamente, camaradas”, gritou Berro quase que suplicando, pulando de um lado para o outro e balançando sua cauda, “e certamente não há ninguém entre vocês que queira ver Jones voltar”…

Agora, se havia alguma coisa de que os animais estavam certos é de que não queriam Jones de volta. Quando a situação foi apresentada a eles sob esta luz, eles não tinham mais nada a dizer. A importância de manter os porcos em boa saúde era muito óbvia. Portanto, foi acordado, sem mais argumentos, que o leite e as maçãs que se soltaram das árvores (e também a safra principal de maçãs, quando amadurecessem) deveriam ser reservados apenas para os porcos.

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Veja também a leitura do capítulo 3 do livro em:


Notas:

  • [1George Orwell: “...escritor nascido em uma colônia inglesa na Índia, é considerado um dos mais importantes romancistas da vertente distópica da literatura mundial, caracterizada pela narração de enredos em que os personagens vivenciam situações em espaço e tempo futuros, nos quais não há possibilidade para a utopia, ou seja, para o sonho e para a esperança. Nessa linha, destacam-se suas duas obras-primas, traduzidas para vários idiomas e transpostas para as telas do cinema mais de uma vez: o romance A revolução dos bichos, publicado em 1945, e o romance 1984, publicado em 1949.” Veja mais aqui.
  • [2O que diz o livro Revolução dos Bichos? “O conhecido livro do inglês George Orwell, A Revolução dos Bichos (1945), é um dos legados atemporais mais importantes que escritores do século passado nos deixaram. Na obra, Orwell faz uma crítica ao stalinismo. Então socialista, o inglês – nascido na Índia durante o domínio britânico – se desilude com a ideologia ao ver o totalitarismo soviético e satiriza o sucessor de Lênin. Na alegoria, o autor apresenta uma revolução idealizada por um porco, o Major (que pode representar tanto Marx como Lênin), que convoca os bichos da granja em que vive a expulsar seu proprietário, o humano Sr. Jones (que seria Nicolau II, imperador do Czar). Porco Major morre em seguida e dois outros suínos tomam a frente: Napoleão (representando Stálin) e Bola de Neve (que seria Trotski). A estória segue o roteiro soviético… Napoleão expurga Bola de Neve, deturpa as leis a seu favor e se torna um ditador. Os demais bichos (galinhas, gado, cavalo…) se rendem à autocracia sem questionar, de forma passiva. Cada vez trabalham mais, exaustivamente e com alimento controlado; enquanto isso, Napoleão toma posse das dependências do Sr. Jones, agindo, portanto, de forma mais exploradora e cruel que o antigo chefe. A ironia está no fato de que a máxima da revolução era ‘duas pernas/patas mau’ – referindo-se a seres humanos”. Leia mais em: Rodrigo Constantino – Gazeta do Povo.com.
  • [3ORWELL, George. Revolução dos Bichos. Gazeta do Povo. Capítulo I, pág. 32 a 42. Veja o livro completo aqui.

Revolução dos Bichos: características gerais

  Por Alcides Barbosa de Amorim Porco Major [1] O livro Revolução dos Bichos (1945), do indiano George Orwell, nascido durante o domínio b...