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29 julho 2024

Empirismo e fé cristã: David Hume

Por Alcides Amorim

Se a relação de causa e efeito não é verdadeiramente racional, a prova que os deístas apresentam para mostrar a existência de Deus, no sentido de que tudo quanto existe há de ter uma causa primeira, não resulta ser tão racional como se pretende. Além disso, se a razão pura não nos permite falar de substâncias tais como Deus e alma, mas somente de experiências sem conexões, a intenção dos deístas de falar sobre Deus e alma em termos puramente racionais, cai desde sua base. Mais tarde, Kant diria que foi Hume quem o fez despertar de seu ‘sonho dogmático’…
(In: GONZÁLEZ) [1].

Continuando nossas reflexões sobre o empirismo e fé cristã, depois de destacarmos os filósofos John Locke George Berkeley, veremos agora um pouco sobre Hume. Dos filósofos empiristas listados por Brown (Nota 2), este é o que ocupa maior espaço em seu livro.

David Hume(1711-1776) [2] foi uma mistura estranha, Um contemporâneo pensava que parecia mais um "vereador comedor de carne de tartaruga do que um filósofo refinado". Num obituário que escreveu para si mesmo, descreveu-se como "homem de disposição branda, bem-humorado, capaz de formar afetos, mas pouco suscetível de inimizade, e de grande moderação em todas as minhas paixões. Até mesmo meu amor à fama literária, minha paixão dominante, nunca chegou a amargar minha disposição, a despeito das minhas frequentes decepções". Sem dúvida, ele tinha condições melhores para julgar do que nós no dia de hoje.

Nasceu em Edimburgo e entrou na universidade daquela cidade com doze anos de idade, e deixou-a dois ou três anos mais tarde. Desfrutou de uma carreira diversificada, que incluiu a tutela de um lunático, a posição de secretário de um general, e o cargo de bibliotecário em Edimburgo. Por algum tempo, fez parte da embaixada britânica na França, e ficou sendo figura familiar no cenário parisiense. Ao voltar para Londres, trouxe consigo Jean-Jacques Rousseau, que lhe recompensou com acusações de que estava pretendendo matá-lo.

Durante sua vida, Hume foi mais estimado como historiador do que como filósofo Segundo Bertrand Russell, a History of England de Hume, em muitos volumes, era dicada a comprovar a superioridade dos "Tories" aos "Whigs" e dos escoceses aos ingleses. O seu Treatise of Human Nature (1739-40)84 revelou-se uma grande decepção ao autor. Hume tinha esperado que despertaria controvérsia. Ao invés disto, "saiu nați-morto do prelo." Esta obra foi seguida pelas obras famosas Enquiry concerning Human Understanding (1751), An Enquiry concerning the Principles of Morals (1752), Dialogues Concerning Natural Religion (escrita antes de 1752, mas publicada postumamente 1779) e The Natural History of Religion (1757).

Talvez a chave a Hume seja seu ceticismo. Empregava a razão até aos limites para demonstrar as limitações da razão. Levou adiante a teoria representativa do conhecimento até às últimas consequências. Para ele, isto significava que você nem poderia comprovar a existência das coisas fora de si mesmo, nem sequer dentro de si mesmo. Para ele, a "ideia de uma substância... não é nada senão uma coletânea de ideias simples, que são unidas pela imaginação, e que têm um nome específico atribuído a elas, mediante o qual podemos relembrar, ou a nós mesmos ou a outros, aquela coletânea". Percebemos os dados dos nossos sentidos, mas não podemos saber que há qualquer coisa além. A ideia do próprio-eu humano era especialmente elusiva. "Da minha parte, quando entro mais intimamente naquilo que chamo de eu mesmo, sempre tropeço numa ou outra percepção específica, do calor ou do frio, da luz ou da sombra, do amor ou do ódio, da dor ou do prazer. Nunca posso em qualquer tempo apanhar a mim mesmo em flagrante sem uma percepção, e nunca observar qualquer coisa senão a percepção."

Isto talvez pareça esmagador para o leitor não-filosófico que sempre toma por certo que há uma coisa que ele mesmo é e que é mais para ele do que seu corpo. Hume, porém, tem em reserva coisas ainda mais explosivas. Seu maior paradoxo, que ele mesmo reconhece francamente que não aceitaria se não o tivesse comprovado, foi sua negação da causalidade.

Antes de nos reconciliarmos com esta doutrina, quantas vezes devemos repetir a nós mesmos, que o conceito simples de qualquer par de objetos ou ações, por mais que estejam relacionados entre si, nunca poderá nos dar qualquer ideia de poder, ou de uma conexão entre si; que esta ideia surge de uma repetição da sua união; que a repetição nem descobre nem causa qualquer coisa nos objetos, mas, sim, tem influência somente sobre a mente, por aquela transição costumária que produz; que esta transição costumária é, portanto, igual do poder e à necessidade; e são, consequentemente, qualidades de percepções, não de objetos, e são sentidas internamente pela alma, e não percebidas externamente nos corpos?

Noutras palavras, tudo aquilo que, segundo nosso hábito, pensamos em termos de causa e efeito é realmente uma questão de sequência. Não é alguma coisa que acontece entre os objetos. É realmente um hábito mental.

Hume nunca foi pessoa de se deixar sobrecarregar com uma ansiedade pela consistência. A própria razão de ser de muita coisa que estava dizendo era que a pessoa simplesmente não pode ser racionalmente consistente. Quando se voltava ao argumento cosmológico, aceitava o conceito da causalidade imposto pelo bom senso, mas depois negava que pudesse ter utilidade na prova racional da existência de Deus. Tinha dúvidas, com razão, se era possível “para uma causa ser conhecida somente pelo seu efeito”. E, conforme vimos ao discutir Aquino, Hume indicou que não temos o direito de atribuir a uma causa quaisquer capacidades senão aquelas que eram necessárias para produzir o respectivo efeito. Noutras palavras, não temos o direito de dizer que a causa ulterior de uma coisa é a mesma que a doutra coisa. Não temos o direito de dizer que ela é a mesma que o Deus dos cristãos. E não temos o direito de atribuir a uma causa prima (ainda que pudesse ser comprovada tal coisa) atributos morais. Hume estava fazendo uma consideração válida quando disse que a ideia de uma causa prima era “inútil, porque, visto que nosso conhecimento desta causa é derivado inteiramente do decurso da natureza, nunca poderemos, segundo as regras do raciocínio correto, voltar da causa com qualquer nova inferência, ou, fazendo acréscimo ao decurso comum e experimentado da natureza, estabelecer quaisquer princípios novos da conduta e do comportamento”. Mas, como também já vimos, ele estava em terreno menos firme quando ridicularizava a noção de desígnio no universo.

Hume também era cético no que dizia respeito aos milagres. Poderíamos ter pensado que a pessoa que negava a racionalidade da causalidade e, desta forma, subvertia a base da lei científica, dificilmente tivesse a presunção de invocar a lei científica como aliada. No seu ataque clássico contra milagres na Seção X da sua Enquiry, argumentava que os milagres contradiziam as leis da natureza, sendo, portanto, improváveis. A crença deve ser proporcionada pela evidência. Cem ocorrências do acontecimento contrário criavam a pressuposição de que o caso isolado estava dalguma forma errado. Concluiu: "O milagre é uma violação das leis da natureza e, já que a experiência firme e inalterável estabeleceu estas leis, a prova contra o milagre, pela própria natureza dos fatos, é tão integral quanto qualquer argumento tirado da experiência que é possível de imaginar.

Voltando-se (de modo um pouco generalizado) às evidências em prol dos milagres, Hume as pronunciou fracas. Havia uma falta geral de testemunhas discernentes e competentes com bom-senso suficiente para não serem logradas pela fraude. Além disto, devemos levar em conta a notória propensidade da natureza humana para exagerar, a qual forçosamente abala nossa confiança em muitas das histórias. Devemos perguntar, também, por que os milagres não acontecem em nossos próprios dias. Finalmente, devemos lembrar-nos de que todas as religiões alegam milagres, mas nem todos eles podem ser verdadeiros. Destarte, nunca se pode apelar a milagres como o fundamento de uma religião. Nunca podem ser usados para estabelecer a fé. Somente aqueles que já têm fé suficiente podem aceitá-los sem suspeitas.

Hume ainda não tinha acabado seu ataque contra a religião. Em The Natural History of Religion voltou a pegar em armas para atacar o ponto de vista de que a religião original da humanidade era um monoteísmo racional e moral. Hume não tinha mais conhecimento da antropologia do que seus oponentes. O que fez foi sugerir um tipo de hipótese evolucionária. Por meio de fazer uso do seu conhecimento dos clássicos, argumentava que os deuses e deusas do politeísmo (que eram simplesmente seres humanos aumentados) eram progressivamente creditados com diferentes atributos até que finalmente fossem ajuntados num só, e creditados com a infinidade. Lado a lado com este processo havia um aumento de fanatismo. Quanto mais único e sem igual Deus ficou sendo, tanto mais intolerantes ficavam Seus devotos (sejam maometanos, sejam cristãos).

Comentando Hume de modo geral, Bertrand Russell observa que "a filosofia de Hume seja verdadeira, seja falsa, representa a falência da razoabilidade do século XVIII. Subverte todo o pensamento racional, embora Hume, depois de assim ter feito, passou a empregar a razão para ridicularizar outros. De acordo com as premissas dele, ele não tem o direito de dizer que o fogo aquece, nem que a água refrigera. Talvez se trate de uma questão da crença, mas não da razão. Para quem é cético acerca da causalidade, não pode haver base racional para fazer um pronunciamento acerca de coisa alguma.

O próprio Hume tinha seus métodos particulares para tratar das suas dúvidas. Citando as palavras dele mesmo: “Muito felizmente acontece que, visto que a razão é incapaz de dissipar estas nuvens, a própria Natureza basta para este propósito, e me cura desta melancolia e delírio filosófico, ou por meio de relaxar esta tendência mental, ou por meio dalguma distração e viva impressão dos meus sentidos, que oblitera todas estas quimeras. Janto, jogo uma partida de gamão, converso, e me divirto com meus amigos e quando depois de três ou quatro horas de entretenimento, quero voltar a estas especulações, parecem tão frias, forçadas e ridículas, que não sinto no meu coração o ânimo de adentrar nelas mais profundamente.”

Sem dúvida Hume tinha razão em dizer: “Nada há entre qualquer objeto, considerado por si mesmo, que pode nos fornecer uma razão para tirar uma conclusão além dele.” Mas quando (por exemplo) temos encontrado o fogo tantas vezes, sendo que nos queima cada vez que tocamos nele, temos o direito racional de dizer mais do que simplesmente que a queimadura segue o contato com o fogo. O fogo realmente causa a queimadura.

Hume dá a impressão de ser franco ao ponto de aplacar os ânimos quando reconhece que “A natureza sempre é forte demais para o princípio.” No seu sentido literal é uma advertência salutar tanto aos edificadores de sistemas quanto aos destruidores de sistemas no sentido de não terem certeza arrogante nas suas afirmações globais nem nas suas negações globais. Mas a observação de Hume aqui é uma alegação implícita de que sua abordagem (por difícil que seja) é a única que é válida. Na realidade, o ceticismo de Hume está sujeito à suspeita em quase todos os pontos principais.

Já sugerimos que há uma alternativa melhor à teoria representativa da percepção, cuja conclusão lógica é o solipsismo. Quando Hume protestou que nunca poderia observar a si mesmo, estava pressupondo que o próprio-eu fosse um objeto que pudesse ser observado da mesma maneira que se percebe os objetos materiais. Mas, na realidade, denunciou seu segredo mediante o uso repetido da palavra "eu". O fato de que ele é um sujeito consciente, capaz da reflexão introspectiva deveria ter-lhe levado a acautelar-se contra uma negação arbitrária do próprio-eu.

No seu tratamento de milagres, Hume tinha razão em insistir que a crença deva ser proporcional à evidência. O problema não é que Hume era demasiado empírico; não era suficientemente empírico. A primeira vista, seu ensaio é muito plausível. Mas sua técnica é mais um caso de demolição através do blefe e da insinuação do que um caso de argumento exato. Certamente, deve-se prestar atenção às suas advertências contra a credulidade. Mesmo assim, devemos guardar-nos da mesma forma contra uma aceitação acrítica da linha de raciocínio de Hume. Não devemos deixar passar desapercebido que Hume habitualmente evita a discussão de qualquer caso de prova, como, por exemplo, a ressurreição de Jesus, com a qual o cristianismo fica em pé ou cai. Ao invés disto, fala em termos gerais, sempre aumentando a impressão de que nenhuma pessoa inteligente com respeito-próprio poderia levar os milagres a sério.

Ao fazer assim, Hume começou uma tendência que virtualmente se estabeleceu como ortodoxia intelectual, e assim alivia as pessoas da necessidade de pensar por si mesmas acerca dos milagres. Locke tinha argumentado que os milagres fornecem evidências para a fé. Hume inverteu o processo. Os milagres são tão prepósteros que somente aqueles que já têm fé podem aceitá-los. Esta linha de pensamento tem sido aceita não somente pelos agnósticos como também por muitos alegados defensores da fé cristã até ao dia de hoje. Mas não era o ponto de vista dos primeiros cristãos, que estariam de acordo com Locke quanto a isto. Ao tratar de um alegado milagre como a ressurreição de Jesus, o que é necessário não é generalizações mas, sim, um exame concreto das evidências históricas e das teorias alternativas. Se abordarmos o assunto com ideias preconcebidas (conforme Hume virtualmente confessa ao inculcar a lição que os milagres violam as leis da natureza), então nenhuma quantidade de evidências históricas prevalecerá. Se, porém, estivermos dispostos a levar a sério as evidências, o resultado será muito diferente.

Os milagres, no entanto, não são o único item a respeito de que muitos pensadores aceitaram as deixas de Hume. Meramente faz parte integrante da sua aversão ao sobrenatural, da sua insistência desafiadora de que nossos pensamentos não devessem desgarrar além do âmbito físico. David Hume quase ficou sendo o santo padroeiro dos filósofos agnósticos contemporâneos. Numa das suas passagens mais violentas, que veio a ser uma das prediletas entre os empiristas modernos, perguntou: “Quando passamos pelas bibliotecas, persuadidos por estes princípios, quanta devastação devemos fazer? Se tomarmos na mão qualquer volume de teologia ou de metafísica escolástica, por exemplo, perguntemos: Contém qualquer raciocínio abstrato a respeito da quantidade ou do número? Não. Contém qualquer raciocínio experimental a respeito de questões de fatos e de existência? Não. Entregue-o às chamas, portanto: pois nada mais pode conter senão sofismas e ilusões.” O jovem A.J. Ayer já via nestas palavras um esboço do programa do Positivismo Lógico… Basta dizer por enquanto que Hume é importante, não tanto por causa de quaisquer conclusões às quais tenha chegado, mas, sim, por causa da sua relevância histórica como patriarca do ceticismo moderno.

Veja também:



Notas / Referências bibliográficas:

  • [2] BROWN, Colin. Filosofia e Fé Cristã. São Paulo: Vida Nova, 1985, pág. 47 a51 (Texto adaptado).

22 julho 2024

Empirismo e fé cristã: Berkeley

Por Alcides Amorim


A doutrina básica de Berkeley é que para alguma coisa existir, ela deve ser percebida. Se algo for um odor, deve ser cheirado: ser for uma cor, precisa ser vista, etc. Além disso, as informações dos sentidos são a única base para o conhecimento. Não há maneira de alegar que há algum objeto material cuja existência postulamos, porque não podemos ir além dos nossos sentidos para verificar o caso...” (DEVRIES, P. H.) [1].


Já vimos um pouco, no nosso estudo sobre o empirismo e fé cristã, acerca do filósofo John Locke. E neste post, quero destacar outro filósofo: Berkeley.

George Berkeley (1685-1753) [2] nasceu na Irlanda. Tornou-se membro do Trinity College, Dublin, com vinte e dois anos de idade, e Deão de Derry em 1724. Quatro anos mais tarde, fez uma tentativa fracassada de estabelecer um colégio missionário nas Bermudas para a evangelização das Américas. Subsequentemente veio a ser Bispo de Cloyne. Quase toda sua obra filosófica foi completada até à idade de vinte e oito anos. Suas obras principais incluem An Essay towards a New Theory of Vision (1709), A Treatise concerning the Principles of Human Knowledge (1710), Three Dialogues between Hylas and Philonous (1713), e Alciphron or the Minute Philosopher (1732).

É o destino de Berkeley ser lembrado principalmente por levar adiante a abordagem de Locke. Aceitou a teoria representativa da percepção, mas deu-lhe um jeito novo. Concordou que aquilo que realmente percebemos não é o mundo externo das coisas materiais mas, sim, ideias ou percepções. A partir daí, passou a argumentar que as coisas existem à medida em que são percebidas. Mas isto não significa que os objetos simplesmente cessam de existir quando não há ninguém por perto para percebê-los. Pois sempre são percebidos pela mente infinita, Deus.

A posição de Berkeley é caricaturizada pelos famosos versos no estilo folclórico Ronald Knox:

Havia um jovem que dizia, "Deus:

Deves achar deveras estranho

Se alguém achar que esta árvore

Continua a existir

Quando não há ninguém no quintal."


RESPOSTA

Prezado Jovem:

Estranho a sua estranheza:

Eu sempre estou presente no quintal.

E por isso a árvore

Continuará a existir

Pois é observada por mim.

DEUS

O próprio Berkeley colocou o caso em linguagem mais sóbria “A mesa em que escrevo, digo eu, existe, ou seja: eu a vejo e toco nela; e se eu estivesse fora do meu escritório, diria que existia, e com isto quereria dizer que se eu estivesse no meu escritório, poderia percebê-la, ou que algum outro espírito realmente a percebe”. Para Berkeley, existir significava ou ser percebido (no caso de objetos) ou perceber (no caso de pessoas, inclusive Deus).

Assim, com um só ousado golpe de mestre, Berkeley engenhosamente negara a existência da matéria e comprovara a existência de Deus. Era uma novidade, e brilhante. Mas era uma tese carregada de dificuldades. Berkeley não deixou claro (nem poderia deixar claro) se os objetos percebidos por nossas mentes finitas eram os mesmos que aqueles que a Mente Infinita percebia. Tornou ocos os objetos da nossa percepção. Nada havia por detrás deles. Nem ficou claro como vieram a estar ali já de começo. Violava as pressuposições do nosso comportamento quotidiano, que dalguma maneira ou outra a matéria existe e que a realidade não é imaterial. A conclusão lógica do conceito representativo do conhecimento é o solipsismo [3]; que o único conhecimento possível é aquele acerca de si mesmo e das suas percepções. Não podemos, pois, ficar fora de nós mesmos e dos dados fornecidos por nossos sentidos. Não temos meios de demonstrar que objetos ou pessoas têm qualquer existência fora das nossas próprias mentes.

A esta altura teria sido mais sábio, conforme sugeriu E.L. Mascall [4], se os filósofos tivessem parado para indagarem a si mesmos se este conceito do conhecimento estava no caminho certo. É realmente verdade que o que percebemos não são objetos mas, sim, meramente sensações dentro de nós que nos fizeram tirar apressadamente a conclusão de que os objetos realmente existem fora de nós? Não seria mais razoável tratar os dados dos nossos sentidos, não como tipo de fim em si mesmo mas, sim, um tipo de meio mediante o qual a mente capta uma realidade inteligível? Contrastando sua abordagem com a dos empiristas, Mascall escreve: "Ora, contra esta pressuposição quero adiantar o ponto de vista, que tem antecedentes muito reputáveis embora sua existência tenha sido passada por cima pela maioria dos filósofos modernos, que o elemento intelectual não-sensório na percepção não consiste simplesmente de inferência, mas, sim, de apreensão. De acordo com este ponto de vista, não há (normalmente, de qualquer maneira, pois não estamos nos ocupando neste momento com a experiência mística) nenhuma percepção sem sensação, mas o objeto sensível (o objeto dos sentidos ou o dado dos sentidos, ou, conforme diriam os escolásticos, a espécie sensível) não é o término da perceção, não o objectum quod, para empregar outra frase escolástica, mas, sim, o objectum quo, através do qual o intelecto capta, numa atividade direta porém mediana, a realidade inteligivel extra-mental, que é a coisa verdadeira”. Mas, segundo parece, nem Berkeley desenvolveu seu empirismo na direção do imaterialismo e do idealismo. David Hume foi levado por ele ao ceticismo radical.

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Sugiro o vídeo a seguir, do portal Saber em foco, que faz um excelente comentário sobre George Berkeley. Este

“… rejeitou a noção de ideias abstratas e afirmou que todas as ideias eram de coisas particulares. Ele propôs a ideia de que ‘ser é perceber e ser percebido’, defendendo a imaterialidade do mundo e a garantia divina do conhecimento. Berkeley inaugurou o fenomenismo, uma corrente filosófica que estuda a realidade tal como se apresenta à consciência, focando nos fenômenos percebidos pelos sentidos. Ele representou uma importante contribuição à história da filosofia, mesmo que sua concepção da existência de Deus não tenha sido justificada de forma convincente…”.

Mais em:


Notas /  Referências bibliográficas:

  • [1] GONZÁLEZ, Justo L. E até aos confins da Terra: uma história ilustrada do Cristianismo: a era dos dogmas e das dúvidas – Vol. 8. São Paulo: Vida Nova, 1984 (1ª ed.), pág. 132 e 133). In:<A era dos dogmas e das dúvidas: a opção racionalista>. Acesso em: 12/07/2024.

  • [2BROWN, Colin. Filosofia e Fé Cristã. São Paulo: Vida Nova, 1985, pág. 46 a 47 (Texto adaptado).

  • [3] Solipsismo “… é a concepção filosófica de que, além de nós, só existem as nossas experiências. O solipsismo é a consequência extrema de se acreditar que o conhecimento deve estar fundado em estados de experiência interiores e pessoais, não se conseguindo estabelecer uma relação direta entre esses estados e o conhecimento objetivo de algo para além deles. O ‘solipsismo do momento presente’ estende este ceticismo aos nossos próprios estados passados, de tal modo que tudo o que resta é o eu presente…” (In: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Solipsismo>. Acesso em: 16/07/2024.

  • [4Eric Lionel Mascall, “… um importante teólogo e sacerdote na tradição anglo-católica da Igreja da Inglaterra. Ele foi um expoente filosófico da tradição tomista e foi professor de Teologia Histórica no King's College London…” (In: https://en.wikipedia.org/wiki/Eric_Lionel_Mascall, Acesso em: 16/07/2024).


15 julho 2024

Empirismo e fé cristã: John Locke

Por Colin Brown [1]


Locke havia lido as obras de Descartes e estava tão convencido como o filósofo francês de que a ordem do mundo corresponde a ordem do pensamento. Mas não cria que houvesse tal cousa como ideias inatas. Segundo ele, todo conhecimento procede da experiência. Essa experiência pode ser tanto a que nos dão os sentidos como a que nos dá nossa mente ao conhecer-se a si mesma (o que ele chama ‘sentido interno’). Mas na mente não existe ideia alguma antes que a experiência nos conduza a ela…” (GONZÁLEZ) [2].

Continuando nosso estudo sobre o empirismo, queremos destacar neste post o pioneiro do movimento chamado John Locke.

John Locke (1632-1704) [3] era filho de um pequeno proprietário de terras no interior, que também era advogado. Foi para a universidade de Oxford quando o puritanismo [4] estava nos seus dias áureos, e o vice-chanceler da Universidade era o grande John Owen. Entre outras coisas, Locke estudou medicina, e acabou ganhando seu doutorado nesta matéria, John Locke também era uma figura semipública. Mas nos últimos anos da dinastia real dos Stuart, achou mais prudente morar na Holanda, e não voltou senão depois da Gloriosa Revolução de 1688 [5]. Enquanto estava na Holanda teve tempo e tranquilidade para completar seu tratado filosófico importantíssimo, An Essay Concerning Human Understanding (1690), e sua primeira Letter on Toleration (1689). Publicou subsequentemente outras cartas sobre a mesma matéria, e tratados sobre a educação e o governo civil. The Reasonableness of Christianity (1695) foi seguido pelas obras póstumas Paraphrase and Notes on the Epistles of St. Paul (1705-7) e A Discourse on Miracles (1706).

Hoje, Locke é principalmente lembrado por ser o pioneiro da abordagem empirista ao conhecimento. Em Oxford, ficou impressionado com a leitura de Descartes, mas sua própria abordagem foi seguindo uma direção bem diferente. Rejeitou a ideia racionalista de que a mente tinha carimbadas sobre ela, desde o nascimento, certas noções primárias, evidentes por si mesmas. Pelo contrário, retratava a mente como sendo uma peça em branco que recebia de fora as suas impressões. “Suponhamos, portanto,” escreveu na sua retórica característica do século XVII, que a mente é, por assim dizer, um papel branco isento de caracteres, sem quaisquer ideias, como vem a ser suprida? De onde obtém aquela vasta quantidade que a imaginação ativa e ilimitada do homem pintou sobre ela com uma variedade quase infinita? De onde todas as matérias da razão e do conhecimento? Respondo a isto com uma só palavra: da experiência; nela, todo o nosso conhecimento é fundamentado e a partir dela, em última análise, a própria menta deriva. Nossa observação empregada em questões de objetos externos e sensíveis, ou nas operações internas da nossa mente, percebidas por nós mesmos, e sobre as quais nós mesmos refletimos, é aquilo que fornece ao nosso entendimento matérias para pensar. Estes dois grupos de questões são as fontes de todo o conhecimento, de onde emanam todas as ideias que temos, ou podemos naturalmente ter. Noutras palavras, o que conhecemos são ou ideias (impressões na mente de “amarelo, branco, calor, frio, macio, duro, amargo doce, e todas aquelas qualidades que chamamos de sensíveis) ou as reflexões da própria mente sobre elas. A partir dai, Locke tirou a conclusão que a mente humana não tem outro objetivo imediato senão suas próprias ideias e de que “o conhecimento é a percepção da concordância ou discordância de duas Ideias”.

Ao argumentar assim, Locke estava adiantado naquilo que às vezes é chamada a teoria representativa do conhecimento. A própria mente não tem conhecimento direto do mundo externo, porque nunca tem a capacidade de passar por cima dos sentidos e ficar fora deles. Aquilo que a mente percebe são os dados que os sentidos transmitem a ela, para então trabalhar com eles e interpretá-los. Antes de questionarmos a validade desta abordagem e voltarmos nossa atenção ao modo segundo o qual foi desenvolvida por empiristas posteriores, vale a pena fazer uma pausa para ver como Locke defendia a cristianismo contra os céticos dos seus dias.

Locke fazia uma distinção entre a fé e a razão. Definia esta última [a razão] como sendo “a descoberta da certeza ou probabilidade das proposições ou verdades as quais a mente chega por meio da dedução feita de tais ideias, que obteve por meio das suas faculdades naturais, viz, pela sensação ou pela reflexão. A , por outro lado, é o assentimento dado a qualquer proposição não calculada assim pelas deduções da razão, mas, sim, por causa de o proponente merecer crédito, como proveniente de Deus através dalgum modo extraordinário da comunicação. A este modo de os homens descobrirem as verdades chamamos de Revelação”.

Uma ou duas páginas antes, Locke tinha feito a distinção adicional entre aquilo que é de acordo com a razão, aquilo que está acima da razão, e aquilo que é contrário à razão. De acordo com a razão, são as proposições cuja veracidade podemos descobrir, por examinarmos e seguirmos até a origem ideias que temos a partir da sensação e da reflexão; e por dedução natural acharmos verdadeiras ou prováveis. Acima da razão, estão as proposições cuja veracidade ou probabilidade não podemos derivar mediante a razão, a partir daqueles princípios. Contrárias à razão, são as proposições que são inconsistentes com, ou irreconciliáveis com, nossas ideias claras e distintas. Destarte, a existência de um Deus único está de acordo com a razão; a existência de mais de um Deus, contrária [ou contraria] à razão; a ressurreição dos mortos, acima da razão.

Os pensadores talvez discordem quanto àquilo que deve ser colocado em cada compartimento. Eu mesmo desejaria qualificar mais aquilo que quero dizer com "razão” e “ser razoável”. Uma ideia é razoável quando se pode comprovar sua veracidade de antemão. Também pode ser chamado razoável se é justificado pela experiência. Pode ser que contenha implicações que não foram sondadas ou que somos incapazes de examinar no momento. Mesmo assim, se a observação e a experiência justificarem a conclusão, pode ser dito que esta é racional. É neste sentido que eu concordaria com Locke que a existência de Deus está em conformidade com a razão. Há porém, muitos aspectos da fé cristã que, conforme indica Locke, estão acima da razão. O método de Locke era aceitar tais coisas pela autoridade daquilo em que podia acreditar mediante a razão.

A razão é a revelação natural, mediante a qual o Pai da luz, e Fonte de todo o conhecimento, comunica a humanidade aquela porção da verdade que colocou dentro do alcance das faculdades naturais; a revelação é a razão natural estendida por um novo grupo de descobertas comunicadas imediatamente por DEUS, cuja veracidade é garantida pela razão por causa do testemunho e provas que elas dão quanto a terem vindo da parte de DEUS.

Para Locke, os milagres do cristianismo não eram (conforme parecem ser para muitos que gostariam de ser apologistas do cristianismo hoje) algo pelo qual se pede desculpas. Depois de a sua credibilidade ter sido devidamente examinada os milagres são evidências em prol da fé cristã. “Onde o milagre é admitido, a doutrina não pode ser rejeitada, acompanha a certeza de uma atestação divina dada àquele que aceita o milagre, e não podemos questionar a sua veracidade”. Voltaremos a esta questão na ocasião de discutirmos Hume.

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Na verdade, John Locke foi um personagem tão importante, que podemos dizer que ele não foi apenas o pai do empirismo, mas também o pai do liberalismo político, precursor do iluminismo inglês e, ainda influenciador intelectual (jurídico) da Independência dos Estados Unidos. As ideias de Locke no campo político foram revolucionárias. Enquanto criticava o direito absolutistas dos reis, afirmava que a soberania não reside no Estado mas na população, através dos poderes Executivo, Legislativo (o mais importante deles) e Judiciário. Veja, por exemplo estas frases abaixo e o vídeo na sequência:

  • Os indivíduos têm o direito natural de possuir propriedade, e isso nunca pode ser tirado deles sem o próprio consentimento”.

  • Onde não há lei, não há liberdade”.

  • "Consideramos estas verdades como evidentes, que todos os homens são criados iguais, que seu Criador lhes concede certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade" (Declaração de Independência dos EUA, inspirada em John Locke).

  • Não se revolta um povo inteiro a não ser que a opressão seja geral”.




Notas / Referências bibliográficas:

  • [1O Dr. Colin Brown é professor de Teologia Sistemática no Fuller Theological Seminary, em Pasadena, Califórnia, USA. Entre outros livros, é autor de Karl Barth and the Christian Message. Editor de History, Criticism and Faith e o responsável pela edição em inglês do Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, publicado por esta Editora [Vida Nova], ao qual também contribuiu vários artigos.” (BROWN. In: Nota 3, contracapa).
  • [2] GONZÁLEZ, Justo L.E até aos confins da Terra: uma história ilustrada do Cristianismo: a era dos dogmas e das dúvidas – Vol. 8. São Paulo: Vida Nova, 1984 (1ª ed.), pág. 132 e 133). In:<A era dos dogmas e das dúvidas: a opção racionalista >. Acesso em: 12/07/2024.
  • [3BROWN, Colin. Filosofia e Fé Cristã. São Paulo: Vida Nova, 1985, pág. 44 a 46 (Texto adaptado). 
  • [4] O puritanismo foi “… um movimento de reforma, frouxamente organizado, que se originou durante a Reforma inglesa do século XVI. O nome surgiu dos esforços para ‘purificar’ a Igreja da Inglaterra realizados por aqueles que achavam que a reforma ainda não tinha sido completada. Posteriormente, os puritanos também passaram a buscar a purificação de si mesmos e da sociedade…” (RENNIE, I. S. Puritanismo. In: Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. III. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág. 208 e 209. Sobre o contexto histórico e religioso da época, na Inglaterra, veja o texto de Justo González, em A era dos dogmas e das dúvidas (IV): a revolução puritana. Acesso em: 11/07/2024.
  • [5A Revolução Gloriosa foi a última fase da Revolução Inglesa, iniciada em 1642, que ocorreu com a deposição de Jaime II e a ascensão de Guilherme de Orange ao poder na Inglaterra, e que pôs fim ao poder absolutista e dando origem à monarquia constitucional, ou seja, o rei permaneceria no trono inglês, mas com poderes reduzidos. Veja mais em: González, A revolução puritana. In: Nota 4.