“Se
a relação de causa e efeito não é verdadeiramente racional, a
prova que os deístas apresentam para mostrar a existência de Deus,
no sentido de que tudo quanto existe há de ter uma causa primeira,
não resulta ser tão racional como se pretende. Além disso, se a
razão pura não nos permite falar de substâncias tais como Deus e
alma, mas somente de experiências sem conexões, a intenção dos
deístas de falar sobre Deus e alma em termos puramente racionais,
cai desde sua base. Mais tarde, Kant diria que foi Hume quem o fez
despertar de seu ‘sonho dogmático’…
”
(In:
GONZÁLEZ) [1].
Continuando nossas reflexões sobre o empirismo e fé cristã, depois de destacarmos os filósofos John Locke e George Berkeley, veremos agora um pouco sobre Hume. Dos filósofos empiristas listados por Brown (Nota 2), este é o que ocupa maior espaço em seu livro.
David Hume(1711-1776) [2] foi uma mistura estranha, Um contemporâneo pensava que parecia mais um "vereador comedor de carne de tartaruga do que um filósofo refinado". Num obituário que escreveu para si mesmo, descreveu-se como "homem de disposição branda, bem-humorado, capaz de formar afetos, mas pouco suscetível de inimizade, e de grande moderação em todas as minhas paixões. Até mesmo meu amor à fama literária, minha paixão dominante, nunca chegou a amargar minha disposição, a despeito das minhas frequentes decepções". Sem dúvida, ele tinha condições melhores para julgar do que nós no dia de hoje.
Nasceu em Edimburgo e entrou na universidade daquela cidade com doze anos de idade, e deixou-a dois ou três anos mais tarde. Desfrutou de uma carreira diversificada, que incluiu a tutela de um lunático, a posição de secretário de um general, e o cargo de bibliotecário em Edimburgo. Por algum tempo, fez parte da embaixada britânica na França, e ficou sendo figura familiar no cenário parisiense. Ao voltar para Londres, trouxe consigo Jean-Jacques Rousseau, que lhe recompensou com acusações de que estava pretendendo matá-lo.
Durante sua vida, Hume foi mais estimado como historiador do que como filósofo Segundo Bertrand Russell, a History of England de Hume, em muitos volumes, era dicada a comprovar a superioridade dos "Tories" aos "Whigs" e dos escoceses aos ingleses. O seu Treatise of Human Nature (1739-40)84 revelou-se uma grande decepção ao autor. Hume tinha esperado que despertaria controvérsia. Ao invés disto, "saiu nați-morto do prelo." Esta obra foi seguida pelas obras famosas Enquiry concerning Human Understanding (1751), An Enquiry concerning the Principles of Morals (1752), Dialogues Concerning Natural Religion (escrita antes de 1752, mas publicada postumamente 1779) e The Natural History of Religion (1757).
Talvez a chave a Hume seja seu ceticismo. Empregava a razão até aos limites para demonstrar as limitações da razão. Levou adiante a teoria representativa do conhecimento até às últimas consequências. Para ele, isto significava que você nem poderia comprovar a existência das coisas fora de si mesmo, nem sequer dentro de si mesmo. Para ele, a "ideia de uma substância... não é nada senão uma coletânea de ideias simples, que são unidas pela imaginação, e que têm um nome específico atribuído a elas, mediante o qual podemos relembrar, ou a nós mesmos ou a outros, aquela coletânea". Percebemos os dados dos nossos sentidos, mas não podemos saber que há qualquer coisa além. A ideia do próprio-eu humano era especialmente elusiva. "Da minha parte, quando entro mais intimamente naquilo que chamo de eu mesmo, sempre tropeço numa ou outra percepção específica, do calor ou do frio, da luz ou da sombra, do amor ou do ódio, da dor ou do prazer. Nunca posso em qualquer tempo apanhar a mim mesmo em flagrante sem uma percepção, e nunca observar qualquer coisa senão a percepção."
Isto talvez pareça esmagador para o leitor não-filosófico que sempre toma por certo que há uma coisa que ele mesmo é e que é mais para ele do que seu corpo. Hume, porém, tem em reserva coisas ainda mais explosivas. Seu maior paradoxo, que ele mesmo reconhece francamente que não aceitaria se não o tivesse comprovado, foi sua negação da causalidade.
Antes de nos reconciliarmos com esta doutrina, quantas vezes devemos repetir a nós mesmos, que o conceito simples de qualquer par de objetos ou ações, por mais que estejam relacionados entre si, nunca poderá nos dar qualquer ideia de poder, ou de uma conexão entre si; que esta ideia surge de uma repetição da sua união; que a repetição nem descobre nem causa qualquer coisa nos objetos, mas, sim, tem influência somente sobre a mente, por aquela transição costumária que produz; que esta transição costumária é, portanto, igual do poder e à necessidade; e são, consequentemente, qualidades de percepções, não de objetos, e são sentidas internamente pela alma, e não percebidas externamente nos corpos?
Noutras palavras, tudo aquilo que, segundo nosso hábito, pensamos em termos de causa e efeito é realmente uma questão de sequência. Não é alguma coisa que acontece entre os objetos. É realmente um hábito mental.
Hume nunca foi pessoa de se deixar sobrecarregar com uma ansiedade pela consistência. A própria razão de ser de muita coisa que estava dizendo era que a pessoa simplesmente não pode ser racionalmente consistente. Quando se voltava ao argumento cosmológico, aceitava o conceito da causalidade imposto pelo bom senso, mas depois negava que pudesse ter utilidade na prova racional da existência de Deus. Tinha dúvidas, com razão, se era possível “para uma causa ser conhecida somente pelo seu efeito”. E, conforme vimos ao discutir Aquino, Hume indicou que não temos o direito de atribuir a uma causa quaisquer capacidades senão aquelas que eram necessárias para produzir o respectivo efeito. Noutras palavras, não temos o direito de dizer que a causa ulterior de uma coisa é a mesma que a doutra coisa. Não temos o direito de dizer que ela é a mesma que o Deus dos cristãos. E não temos o direito de atribuir a uma causa prima (ainda que pudesse ser comprovada tal coisa) atributos morais. Hume estava fazendo uma consideração válida quando disse que a ideia de uma causa prima era “inútil, porque, visto que nosso conhecimento desta causa é derivado inteiramente do decurso da natureza, nunca poderemos, segundo as regras do raciocínio correto, voltar da causa com qualquer nova inferência, ou, fazendo acréscimo ao decurso comum e experimentado da natureza, estabelecer quaisquer princípios novos da conduta e do comportamento”. Mas, como também já vimos, ele estava em terreno menos firme quando ridicularizava a noção de desígnio no universo.
Hume também era cético no que dizia respeito aos milagres. Poderíamos ter pensado que a pessoa que negava a racionalidade da causalidade e, desta forma, subvertia a base da lei científica, dificilmente tivesse a presunção de invocar a lei científica como aliada. No seu ataque clássico contra milagres na Seção X da sua Enquiry, argumentava que os milagres contradiziam as leis da natureza, sendo, portanto, improváveis. A crença deve ser proporcionada pela evidência. Cem ocorrências do acontecimento contrário criavam a pressuposição de que o caso isolado estava dalguma forma errado. Concluiu: "O milagre é uma violação das leis da natureza e, já que a experiência firme e inalterável estabeleceu estas leis, a prova contra o milagre, pela própria natureza dos fatos, é tão integral quanto qualquer argumento tirado da experiência que é possível de imaginar.
Voltando-se (de modo um pouco generalizado) às evidências em prol dos milagres, Hume as pronunciou fracas. Havia uma falta geral de testemunhas discernentes e competentes com bom-senso suficiente para não serem logradas pela fraude. Além disto, devemos levar em conta a notória propensidade da natureza humana para exagerar, a qual forçosamente abala nossa confiança em muitas das histórias. Devemos perguntar, também, por que os milagres não acontecem em nossos próprios dias. Finalmente, devemos lembrar-nos de que todas as religiões alegam milagres, mas nem todos eles podem ser verdadeiros. Destarte, nunca se pode apelar a milagres como o fundamento de uma religião. Nunca podem ser usados para estabelecer a fé. Somente aqueles que já têm fé suficiente podem aceitá-los sem suspeitas.
Hume ainda não tinha acabado seu ataque contra a religião. Em The Natural History of Religion voltou a pegar em armas para atacar o ponto de vista de que a religião original da humanidade era um monoteísmo racional e moral. Hume não tinha mais conhecimento da antropologia do que seus oponentes. O que fez foi sugerir um tipo de hipótese evolucionária. Por meio de fazer uso do seu conhecimento dos clássicos, argumentava que os deuses e deusas do politeísmo (que eram simplesmente seres humanos aumentados) eram progressivamente creditados com diferentes atributos até que finalmente fossem ajuntados num só, e creditados com a infinidade. Lado a lado com este processo havia um aumento de fanatismo. Quanto mais único e sem igual Deus ficou sendo, tanto mais intolerantes ficavam Seus devotos (sejam maometanos, sejam cristãos).
Comentando Hume de modo geral, Bertrand Russell observa que "a filosofia de Hume seja verdadeira, seja falsa, representa a falência da razoabilidade do século XVIII. Subverte todo o pensamento racional, embora Hume, depois de assim ter feito, passou a empregar a razão para ridicularizar outros. De acordo com as premissas dele, ele não tem o direito de dizer que o fogo aquece, nem que a água refrigera. Talvez se trate de uma questão da crença, mas não da razão. Para quem é cético acerca da causalidade, não pode haver base racional para fazer um pronunciamento acerca de coisa alguma.
O próprio Hume tinha seus métodos particulares para tratar das suas dúvidas. Citando as palavras dele mesmo: “Muito felizmente acontece que, visto que a razão é incapaz de dissipar estas nuvens, a própria Natureza basta para este propósito, e me cura desta melancolia e delírio filosófico, ou por meio de relaxar esta tendência mental, ou por meio dalguma distração e viva impressão dos meus sentidos, que oblitera todas estas quimeras. Janto, jogo uma partida de gamão, converso, e me divirto com meus amigos e quando depois de três ou quatro horas de entretenimento, quero voltar a estas especulações, parecem tão frias, forçadas e ridículas, que não sinto no meu coração o ânimo de adentrar nelas mais profundamente.”
Sem dúvida Hume tinha razão em dizer: “Nada há entre qualquer objeto, considerado por si mesmo, que pode nos fornecer uma razão para tirar uma conclusão além dele.” Mas quando (por exemplo) temos encontrado o fogo tantas vezes, sendo que nos queima cada vez que tocamos nele, temos o direito racional de dizer mais do que simplesmente que a queimadura segue o contato com o fogo. O fogo realmente causa a queimadura.
Hume dá a impressão de ser franco ao ponto de aplacar os ânimos quando reconhece que “A natureza sempre é forte demais para o princípio.” No seu sentido literal é uma advertência salutar tanto aos edificadores de sistemas quanto aos destruidores de sistemas no sentido de não terem certeza arrogante nas suas afirmações globais nem nas suas negações globais. Mas a observação de Hume aqui é uma alegação implícita de que sua abordagem (por difícil que seja) é a única que é válida. Na realidade, o ceticismo de Hume está sujeito à suspeita em quase todos os pontos principais.
Já sugerimos que há uma alternativa melhor à teoria representativa da percepção, cuja conclusão lógica é o solipsismo. Quando Hume protestou que nunca poderia observar a si mesmo, estava pressupondo que o próprio-eu fosse um objeto que pudesse ser observado da mesma maneira que se percebe os objetos materiais. Mas, na realidade, denunciou seu segredo mediante o uso repetido da palavra "eu". O fato de que ele é um sujeito consciente, capaz da reflexão introspectiva deveria ter-lhe levado a acautelar-se contra uma negação arbitrária do próprio-eu.
No seu tratamento de milagres, Hume tinha razão em insistir que a crença deva ser proporcional à evidência. O problema não é que Hume era demasiado empírico; não era suficientemente empírico. A primeira vista, seu ensaio é muito plausível. Mas sua técnica é mais um caso de demolição através do blefe e da insinuação do que um caso de argumento exato. Certamente, deve-se prestar atenção às suas advertências contra a credulidade. Mesmo assim, devemos guardar-nos da mesma forma contra uma aceitação acrítica da linha de raciocínio de Hume. Não devemos deixar passar desapercebido que Hume habitualmente evita a discussão de qualquer caso de prova, como, por exemplo, a ressurreição de Jesus, com a qual o cristianismo fica em pé ou cai. Ao invés disto, fala em termos gerais, sempre aumentando a impressão de que nenhuma pessoa inteligente com respeito-próprio poderia levar os milagres a sério.
Ao fazer assim, Hume começou uma tendência que virtualmente se estabeleceu como ortodoxia intelectual, e assim alivia as pessoas da necessidade de pensar por si mesmas acerca dos milagres. Locke tinha argumentado que os milagres fornecem evidências para a fé. Hume inverteu o processo. Os milagres são tão prepósteros que somente aqueles que já têm fé podem aceitá-los. Esta linha de pensamento tem sido aceita não somente pelos agnósticos como também por muitos alegados defensores da fé cristã até ao dia de hoje. Mas não era o ponto de vista dos primeiros cristãos, que estariam de acordo com Locke quanto a isto. Ao tratar de um alegado milagre como a ressurreição de Jesus, o que é necessário não é generalizações mas, sim, um exame concreto das evidências históricas e das teorias alternativas. Se abordarmos o assunto com ideias preconcebidas (conforme Hume virtualmente confessa ao inculcar a lição que os milagres violam as leis da natureza), então nenhuma quantidade de evidências históricas prevalecerá. Se, porém, estivermos dispostos a levar a sério as evidências, o resultado será muito diferente.
Os milagres, no entanto, não são o único item a respeito de que muitos pensadores aceitaram as deixas de Hume. Meramente faz parte integrante da sua aversão ao sobrenatural, da sua insistência desafiadora de que nossos pensamentos não devessem desgarrar além do âmbito físico. David Hume quase ficou sendo o santo padroeiro dos filósofos agnósticos contemporâneos. Numa das suas passagens mais violentas, que veio a ser uma das prediletas entre os empiristas modernos, perguntou: “Quando passamos pelas bibliotecas, persuadidos por estes princípios, quanta devastação devemos fazer? Se tomarmos na mão qualquer volume de teologia ou de metafísica escolástica, por exemplo, perguntemos: Contém qualquer raciocínio abstrato a respeito da quantidade ou do número? Não. Contém qualquer raciocínio experimental a respeito de questões de fatos e de existência? Não. Entregue-o às chamas, portanto: pois nada mais pode conter senão sofismas e ilusões.” O jovem A.J. Ayer já via nestas palavras um esboço do programa do Positivismo Lógico… Basta dizer por enquanto que Hume é importante, não tanto por causa de quaisquer conclusões às quais tenha chegado, mas, sim, por causa da sua relevância histórica como patriarca do ceticismo moderno.
Veja também:
Notas / Referências bibliográficas:
- [1] GONZÁLEZ, Justo L. E até aos confins da Terra: uma história ilustrada do Cristianismo: a era dos dogmas e das dúvidas – Vol. 8. São Paulo: Vida Nova, 1984 (1ª ed.), pág. 138). In:<A era dos dogmas e das dúvidas: a opção racionalista >. Acesso em: 18/07/2024.
- [2] BROWN, Colin. Filosofia e Fé Cristã. São Paulo: Vida Nova, 1985, pág. 47 a51 (Texto adaptado).