Translate

19 abril 2024

Revolução dos Bichos (VII)

Por George Orwell [1]

In: Gazeta do Povo [2]

Capítulo VII [3]

Foi um inverno amargo. As tempestades foram seguidas por chuva e neve, e depois por uma geada que não se dissipou até meados de fevereiro. Os animais continuaram a reconstrução do moinho da melhor maneira que conseguiam, bem conscientes de que o mundo exterior os observava e que os seres humanos invejosos se regozijariam e triunfariam se o moinho não fosse terminado a tempo.

Por maldade, os seres humanos fingiram não acreditar que Bola de Neve tinha destruído o moinho, dizendo que ele tinha caído porque as paredes eram muito finas. Os animais sabiam que não era o caso. Ainda assim, foi decidido construir as paredes com três metros de espessura no lugar do meio metro anterior, o que significava coletar uma quantidade muito maior de pedra. Durante muito tempo, a pedreira ficou cheia de neve e nada podia ser feito. Conseguiram avançar um pouco no clima seco e gelado que se seguiu, mas foi um trabalho cruel, e os animais não podiam se sentir tão esperançosos como se sentiam antes. Eles estavam sempre com frio, e geralmente também com fome. Somente Golias e Esperança não perderam o ânimo. Berro fez excelentes discursos sobre a alegria do serviço e a dignidade do trabalho, mas os outros animais encontraram mais inspiração na força do Golias e em seu grito infindável de “Vou trabalhar mais”!

Em janeiro, a comida ficou aquém das expectativas. A ração de milho foi drasticamente reduzida, e foi anunciado que uma ração extra de batata seria distribuída para compensá-la. Descobriu-se então que a maior parte da colheita de batata havia congelado nos sacos, que não haviam sido bem cobertos. As batatas ficaram moles e pálidas e apenas algumas eram comestíveis. Os animais tinham cada vez menos para comer, sobrando pouco além de palha e beterrabas. A inanição estava à espreita.

Era vital esconder este fato do mundo exterior. Encorajados pelo colapso do moinho de vento, os seres humanos estavam inventando novas mentiras sobre a Fazenda dos Animais. Voltaram a dizer que todos os animais estavam morrendo de fome e doenças, e que estavam continuamente lutando entre si e tinham recorrido ao canibalismo e ao infanticídio. Napoleão estava bem ciente dos maus resultados que poderiam se seguir se os fatos reais da situação alimentar fossem conhecidos, e ele decidiu fazer uso do Sr. Whymper para espalhar uma impressão contrária. Até então os animais tinham tido pouco ou nenhum contato com a Whymper em suas visitas semanais: agora, porém, alguns poucos animais selecionados, a maioria ovelhas, foram instruídos a comentar casualmente em sua presença que as rações tinham aumentado. Além disso, Napoleão ordenou que os silos quase vazios no galpão fossem enchidos quase até a borda com areia, que depois era coberta com o que restava do grão e da farinha. Sob algum pretexto adequado, Whymper foi conduzido através do galpão e permitiu que se vislumbrasse os silos. Ele foi enganado, e continuou a informar ao mundo exterior que não havia escassez de alimentos na Fazenda dos Animais.

No entanto, no final de janeiro tornou-se óbvio que seria necessário obter mais grãos de alguma maneira. Nesses dias, Napoleão raramente aparecia em público, mas passava todo seu tempo na casa, guardada em cada porta pelos cães de aparência feroz. Quando surgia, era de maneira cerimonial, com uma escolta de seis cães que o cercavam de perto e rosnavam se alguém se aproximasse demais. Com frequência, ele nem sequer aparecia nas manhãs de domingo, emitindo suas ordens através de um dos outros porcos, geralmente o Berro.

Numa manhã de domingo o Berro anunciou que as galinhas, que estavam começando a botar ovos agora, deveriam entregar cada um deles para os porcos. Napoleão havia aceitado, através da Whymper, um contrato de quatrocentos ovos por semana. O preço destes pagaria por grãos e refeições suficientes para manter a fazenda funcionando até o verão, quando a situação ficaria mais fácil.

Quando as galinhas ouviram isto, elas levantaram um clamor terrível. Elas haviam sido advertidas anteriormente de que este sacrifício poderia ser necessário, mas não tinham acreditado que isso realmente aconteceria. Elas estavam apenas começando a preparar suas ninhadas para a primavera, e protestaram que tirar os ovos agora era assassinato. Pela primeira vez desde a expulsão de Jones, houve algo que se assemelhava a uma rebelião. Lideradas por três jovens galinhas minorcas, elas fizeram um esforço determinado para frustrar os desejos de Napoleão. Seu método era voar até o caibro para depositar seus ovos, que se desfaziam em pedaços quando chegavam ao chão. Napoleão agiu rápido e sem piedade. Ele ordenou que a ração das galinhas fosse suspensa e decretou que qualquer animal que desse um grão de milho sequer a uma galinha seria punido com a morte. Os cães ficaram de guarda para que estas ordens fossem cumpridas. Durante cinco dias as galinhas resistiram, depois capitularam e voltaram para os ninhos. Nove galinhas haviam morrido nesse meio tempo. Seus corpos foram enterrados no pomar, e foi informado que elas haviam morrido de coccidiose. Whymper não ouviu nada sobre este caso, e os ovos foram devidamente entregues em uma carroça do merceeiro, que ia até a fazenda uma vez por semana para pegá-los.

Durante todo esse tempo, Bola de Neve não foi mais visto. Corriam rumores de que ele estaria escondido em uma das fazendas vizinhas, Foxwood ou Pinchfield. Napoleão tinha então melhorado levemente seu relacionamento com os outros fazendeiros. Acontece que havia no pátio uma quantidade razoável de madeira que havia sido empilhada lá dez anos antes quando um bosque de faias foi desmatado. A madeira estava bem temperada, e Whymper havia aconselhado Napoleão a vendê-la; tanto o Sr. Pilkington quanto o Sr. Frederick estavam interessados em comprá-la. Napoleão estava hesitante entre os dois, incapaz de se decidir. Sempre que estava perto de fechar um acordo com Frederick, dizia-se que Bola de Neve estava escondido em Foxwood, quando ele se inclinava a fechar com Pilkington, dizia-se que Bola de Neve estava em Pinchfield.

De repente, no início da primavera, uma coisa alarmante foi descoberta. Bola de Neve frequentava a fazenda secretamente à noite! Os animais estavam tão perturbados que mal conseguiam dormir em seus estábulos. Todas as noites, dizia-se, ele vinha rastejando sob a escuridão e fazia todo tipo de travessuras. Roubava o milho, derrubava baldes de leite, quebrava os ovos, pisoteava canteiros, roía a casca das árvores frutíferas. Sempre que alguma coisa ruim acontecia, era atribuída a Bola de Neve. Se uma janela quebrasse ou um ralo entupisse, alguém com certeza diria que Bola de Neve tinha feito isso durante a noite, e quando a chave do galpão foi perdida, toda a fazenda estava convencida de que Bola de Neve a jogara no poço. Curiosamente, eles continuaram acreditando nisso mesmo depois que a chave mal guardada foi encontrada sob um saco de refeição. As vacas declararam unanimemente que o Bola de Neve entrou em seus estábulos e as ordenhou enquanto dormiam. Os ratos, que tinham sido problemáticos naquele inverno, supostamente estavam no time de Bola de Neve.

Napoleão decretou que haveria uma investigação completa sobre as atividades do Bola de Neve. Com a presença de seus cães, ele partiu e fez uma cuidadosa visita de inspeção nas instalações da fazenda, seguido a uma distância respeitosa pelos outros animais. De vez em quando, Napoleão parava e raspava o chão em busca de vestígios das pegadas de Bola de Neve, que, segundo ele, podia sentir pelo cheiro. Ele farejava cada canto, no celeiro, no galpão, nos galinheiros e na horta, e encontrou vestígios de Bola de Neve em quase todos os lugares. Ele colocava seu focinho no chão, dava várias fungadas profundas e exclamava com uma voz terrível: “Bola de Neve já esteve aqui! Eu posso cheirá-lo”, e quando dizia “Bola de Neve” todos os cães soltaram rosnados assustadores e mostraram seus caninos.

Os animais estavam completamente amedrontados. Parecia-lhes que Bola de Neve era uma espécie de influência invisível, pairando no ar sobre eles e ameaçando-os com todos os tipos de perigos. À noite, Berro os chamou e, com uma expressão alarmada em seu rosto, disse-lhes que tinha algumas notícias sérias a relatar.

“Camaradas!” gritou Berro, dando pequenos saltos nervosos, “uma coisa terrível foi descoberta. Bola de Neve se vendeu a Frederick da Fazenda Pinchfield, que está conspirando para nos atacar e tirar a fazenda de nós! Bola de Neve supostamente vai agir como guia quando o ataque começar. Mas fica pior. Tínhamos pensado que a rebelião de Bola de Neve era causada simplesmente por vaidade e ambição. Mas estávamos errados, camaradas. Sabem qual foi a verdadeira razão? Bola de Neve estava do lado de Jones desde o início! Era o agente secreto de Jones este tempo todo. Tudo isso foi provado por documentos que deixou para trás e acabamos de encontrar. Para mim isto explica muita coisa, camaradas. Não vimos por nós mesmos como ele tentou – por sorte sem sucesso – nos derrotar e nos destruir na Batalha do Estábulo?”

Os animais ficaram estupefatos. Esta foi uma maldade que ultrapassava de longe a destruição do moinho. Eles precisaram de alguns minutos para absorver completamente a notícia. Todos eles se lembravam, ou pensavam se lembrar, de ter visto Bola de Neve liderando a Batalha do Estábulo, como tinha se mobilizado e os encorajado a cada momento, e como ele não tinha parado nem mesmo por um instante quando os tiros da arma de Jones feriram suas costas. No início foi um pouco difícil entender como poderia estar do lado de Jones. Até mesmo Golias, que raramente fazia perguntas, ficou intrigado. Ele deitou-se, enfiou seus cascos dianteiros debaixo dele, fechou os olhos e, com um esforço duro, conseguiu formular seus pensamentos.

“Eu não acredito nisso”, disse ele. “Bola de Neve lutou bravamente na Batalha do Estábulo. Eu mesmo vi. Não lhe demos ‘Herói Animal, Primeira Classe’, logo depois?”.

“Esse foi o nosso erro, camarada. Pois sabemos agora – tudo está escrito nos documentos secretos que encontramos – que na realidade ele estava tentando nos atrair para a nossa derrota”.

“Mas ele estava ferido”, disse Golias. “Todos nós o vimos com sangue escorrendo”. “Isso era parte do arranjo”, gritou Berro. “O tiro de Jones só o acertou de raspão. Eu poderia mostrar isto por escrito, se você fosse capaz de ler. A ideia era que Bola de Neve, no momento crítico, desse o sinal de fuga para deixar o campo para o inimigo. E ele quase conseguiu – eu diria até mesmo, camaradas, ele teria conseguido se não fosse por nosso heroico líder, o camarada Napoleão. Você não se lembra como, exatamente no momento em que Jones e seus homens tinham entrado no pátio, Bola de Neve de repente virou e fugiu, e muitos animais o seguiram? E você não se lembra, também, que foi justamente naquele momento, quando o pânico se espalhava e tudo parecia perdido, que o camarada Napoleão avançou com um grito de ‘Morte à Humanidade’ e afundou seus dentes na perna de Jones? Certamente vocês se lembram disso, camaradas...” exclamou Berro, revirando-se de um lado para o outro.

Agora que Berro descreveu a cena de forma tão detalhada, parecia que os animais se lembravam dela. De qualquer forma, eles se lembraram que no momento crítico da batalha Bola de Neve havia se virado para fugir. Mas Golias ainda estava um pouco inquieto.

“Não acredito que Bola de Neve tenha sido um traidor desde o início”, disse finalmente. “O que ele tem feito desde então é diferente. Mas acredito que na Batalha do Estábulo ele era um bom camarada”.

“Nosso líder, Camarada Napoleão”, anunciou Berro, falando muito lenta e firmemente, “declarou categoricamente – categoricamente, camarada – que Bola de Neve foi o agente de Jones desde o início – sim, e desde muito antes da Revolução ter sido pensada”.

“Ah, isso é diferente”, disse Golias. “Se o camarada Napoleão diz, deve estar certo”.

“Esse é o verdadeiro espírito, camarada!” gritou Berro, mas se notou que ele lançou um olhar desconfiado para Golias com seus pequenos olhos cintilantes. Ele se virou para ir, depois fez uma pausa e acrescentou de forma impressionante: “Aviso todos os animais desta fazenda para manter seus olhos bem abertos. Pois temos razões para acreditar que alguns dos agentes secretos do Bola de Neve estão entre nós neste momento”!

Quatro dias mais tarde, no final da tarde, Napoleão ordenou que todos os animais se reunissem no pátio. Quando todos eles estavam reunidos, Napoleão emergiu da fazenda, vestindo todas as suas medalhas (pois ele havia se premiado recentemente tanto com “Herói Animal, Primeira Classe”, quanto com “Herói Animal, Segunda Classe”), e protegido por seus nove cães enormes, que emitiam rosnados que provocavam calafrios em todos os animais. Todos eles se acovardaram silenciosamente em seus lugares, parecendo saber antecipadamente que alguma coisa terrível estava prestes a acontecer.

Napoleão ficou de pé, vigiando com firmeza sua plateia; em seguida, proferiu um choramingar agudo. Imediatamente os cachorros se aproximaram, agarraram quatro porcos pela orelha. Guinchando de dor e terror, foram levados até os pés de Napoleão. As orelhas dos porcos estavam sangrando; os cães haviam provado sangue e por alguns momentos pareciam ter enlouquecido. Para o espanto de todos, três deles se atiraram sobre Golias. Ele os viu chegando e levantou seu grande casco, pegando um dos cães no ar e o prendendo ao chão. O cão gritou por misericórdia e os outros dois fugiram com o rabo entre as pernas. Golias olhou para Napoleão para saber se ele deveria esmagar o cão até a morte ou deixá-lo ir. Napoleão pareceu mudar de semblante, e ordenou com veemência que soltasse o cão, então Golias levantou o casco e o cão se afastou, machucado e uivando.

Então o tumulto acabou. Os quatro porcos esperaram, tremendo e com cara de culpados. Napoleão agora os convidava a confessar seus crimes. Eles eram os mesmos quatro porcos que haviam protestado quando Napoleão aboliu as reuniões dominicais. Sem mais, confessaram que estavam em contato secreto com Bola de Neve desde sua expulsão, que haviam colaborado com ele na destruição do moinho de vento e que haviam firmado um acordo com ele para entregar a Fazenda dos Animais ao Sr. Frederick. Acrescentaram que Bola de Neve havia admitido em particular que havia sido o agente secreto de Jones por muitos anos. Quando terminaram sua confissão, os cães prontamente arrancaram suas gargantas, e Napoleão perguntou, com uma voz terrível, se algum outro animal tinha algo a confessar.

As três galinhas que tinham sido as líderes da tentativa de rebelião dos ovos agora se apresentaram e declararam que Bola de Neve aparecera para elas em sonho e as incitara a desobedecer às ordens de Napoleão. Elas também foram massacradas. Então um ganso se apresentou e confessou ter roubado seis espigas de milho durante a colheita do ano passado e as comido durante a noite. Então uma ovelha confessou ter urinado no bebedouro – impelida, segundo ela, por Bola de Neve – e duas outras ovelhas confessaram ter assassinado um velho carneiro, um seguidor dedicado de Napoleão, perseguindo-o em volta de uma fogueira quando ele estava sofrendo de tosse. Todos eles foram mortos no local. E assim continuou a história das confissões e das execuções, até uma pilha de cadáveres se formar diante dos pés de Napoleão e o ar ficar pesado com o cheiro de sangue, que era desconhecido ali desde a expulsão de Jones.

Quando tudo acabou, os animais restantes, exceto os porcos e os cães, foram embora juntos. Eles estavam abalados e inconsoláveis. Eles não sabiam o que era mais chocante – a traição dos animais que haviam se juntado a Bola de Neve ou a cruel retribuição que haviam acabado de testemunhar. Antigamente, havia muitas cenas igualmente terríveis de derramamento de sangue, mas parecia que era muito pior agora que isso estava acontecendo entre eles. Desde que Jones havia deixado a fazenda, nenhum animal havia matado outro animal até hoje. Nem mesmo um rato havia sido morto. Eles tinham se encaminhado para o pequeno morro onde estava o moinho de vento semipronto e, em comum acordo, todos se deitaram juntos e se aconchegaram – Esperança, Muriel, Benjamin, as vacas, as ovelhas e toda a ninhada de gansos e galinhas – todos, de fato, exceto a gata, que desaparecera de repente pouco antes de Napoleão chamar a reunião. Durante algum tempo, ninguém falou. Somente Golias permaneceu de pé. Ele se agitava de um lado para o outro, balançando sua longa cauda preta contra os lados e, ocasionalmente, proferindo um pequeno gemido de surpresa. Finalmente, ele disse:

“Eu não entendo. Eu não teria acreditado que coisas assim pudessem acontecer em nossa fazenda. Isso deve ser alguma falha em nós mesmos. A solução, a meu ver, é trabalhar com mais afinco. De agora em diante, vou me levantar uma hora mais cedo”.

E ele partiu em seu trote até a pedreira. Lá, recolheu duas cargas sucessivas de pedra e as arrastou para o moinho antes de repousar para a noite.

Os animais se amontoaram ao redor da Esperança sem falar nada. O monte onde estavam deitados dava-lhes uma ampla vista de toda a zona rural. A maior parte da Fazenda dos Animais estava dentro de sua visão – o longo pasto que se estendia até a estrada principal, o campo de feno, o bosque, o açude, os campos arados onde o trigo jovem crescia grosso e verde, e os telhados vermelhos dos edifícios da fazenda com a fumaça saindo das chaminés. Era uma noite clara de primavera. A grama e as cercas estavam douradas pelos raios de sol. A fazenda – e com uma espécie de surpresa eles se lembraram de que isso se tratava da sua própria fazenda, cada centímetro dela era própria propriedade dos animais – nunca pareceu mais desejável para eles. Enquanto Esperança olhava colina abaixo, seus olhos se encheram de lágrimas. Se ela pudesse expressar seu pensamento, teria dito que este não era o seu objetivo quando se propuseram, anos atrás, a trabalhar para derrubar a raça humana. Estas cenas de terror e massacre não eram o que eles esperavam naquela noite em que o velho Major os incitou pela primeira vez à rebelião. Se ela própria tinha alguma expectativa do futuro, tinha sido de uma sociedade de animais livres da fome e do chicote, todos iguais, cada um trabalhando de acordo com sua capacidade, os fortes protegendo os fracos, como ela tinha protegido a ninhada perdida de patinhos com sua perna dianteira na noite do discurso do Major. Em vez disso – ela não sabia por que – tinham chegado a um momento em que ninguém ousava falar o que pensava, em que cães bravos e ferozes vagavam por toda parte, em que se tinha que ver camaradas serem despedaçados depois de confessar crimes chocantes. Não havia nenhum pensamento de rebeldia ou desobediência em sua mente. Ela sabia que, mesmo assim, as coisas estavam muito melhor do que estavam nos dias de Jones e que o mais importante era impedir o retorno dos seres humanos. O que quer que acontecesse, ela permaneceria fiel, trabalharia duro, cumpriria as ordens que lhe foram dadas e aceitaria a liderança de Napoleão. Mas mesmo assim, não era isso que ela e os outros animais esperavam. Não era para isso que trabalhavam. Não era para isso que construíram o moinho e enfrentaram as balas da arma de Jones. Tais eram seus pensamentos, embora lhe faltassem as palavras para expressá-los.

Finalmente, acreditando que isso era um substituto para as palavras que não conseguia encontrar, ela começou a cantar “Animais da Inglaterra”. Os outros animais sentados ao seu redor pegaram a deixa e cantaram o hino três vezes – de forma afinada, mas lenta e em luto, de uma forma que nunca tinham cantado antes.

Eles tinham acabado de cantá-la pela terceira vez quando Berro, acompanhado por dois cães, se aproximou deles com cara de quem tinha algo importante a dizer. Ele anunciou que, por um decreto especial do camarada Napoleão, “Animais da Inglaterra” havia sido abolida. A partir de agora, era proibido cantá-la.

Os animais foram tomados de surpresa.

“Por quê?” gritou Muriel.

“Não é mais necessário, camarada”, disse Berro com firmeza. “’Animais da Inglaterra’ era a canção da Revolução, que já está completa. A execução dos traidores esta tarde foi o ato final. O inimigo, tanto externo quanto interno, foi derrotado. Em ‘Animais da Inglaterra’ expressamos nosso anseio por uma sociedade melhor nos dias que virão. Mas essa sociedade foi agora estabelecida. Claramente, esta canção não tem mais nenhum propósito”.

Por mais assustados que estivessem, alguns dos animais teriam protestado, mas neste momento as ovelhas emitiram seu habitual balido de “Quatro patas bom, duas patas ruim”, que durou vários minutos e pôs um fim à discussão.

Assim, “Animais da Inglaterra” não foi mais ouvida. Em seu lugar Minimus, o poeta, tinha composto outra canção que começou:

Fazenda dos Animais, Fazenda dos Animais,

Por mim não farás mal jamais!

e isto foi cantado todos os domingos de manhã após o içar da bandeira. Mas de alguma forma nem as palavras nem a melodia pareciam chegar aos pés de “Animais da Inglaterra”.

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Veja a seguir, o áudio do capítulo VII:


Notas:

  • [1George Orwell: “...escritor nascido em uma colônia inglesa na Índia, é considerado um dos mais importantes romancistas da vertente distópica da literatura mundial, caracterizada pela narração de enredos em que os personagens vivenciam situações em espaço e tempo futuros, nos quais não há possibilidade para a utopia, ou seja, para o sonho e para a esperança. Nessa linha, destacam-se suas duas obras-primas, traduzidas para vários idiomas e transpostas para as telas do cinema mais de uma vez: o romance A revolução dos bichos, publicado em 1945, e o romance 1984, publicado em 1949.” Veja mais aqui.
  • [2O que diz o livro Revolução dos Bichos? “O conhecido livro do inglês George Orwell, A Revolução dos Bichos (1945), é um dos legados atemporais mais importantes que escritores do século passado nos deixaram. Na obra, Orwell faz uma crítica ao stalinismo. Então socialista, o inglês – nascido na Índia durante o domínio britânico – se desilude com a ideologia ao ver o totalitarismo soviético e satiriza o sucessor de Lênin. Na alegoria, o autor apresenta uma revolução idealizada por um porco, o Major (que pode representar tanto Marx como Lênin), que convoca os bichos da granja em que vive a expulsar seu proprietário, o humano Sr. Jones (que seria Nicolau II, imperador do Czar). Porco Major morre em seguida e dois outros suínos tomam a frente: Napoleão (representando Stálin) e Bola de Neve (que seria Trotski). A estória segue o roteiro soviético… Napoleão expurga Bola de Neve, deturpa as leis a seu favor e se torna um ditador. Os demais bichos (galinhas, gado, cavalo…) se rendem à autocracia sem questionar, de forma passiva. Cada vez trabalham mais, exaustivamente e com alimento controlado; enquanto isso, Napoleão toma posse das dependências do Sr. Jones, agindo, portanto, de forma mais exploradora e cruel que o antigo chefe. A ironia está no fato de que a máxima da revolução era ‘duas pernas/patas mau’ – referindo-se a seres humanos”. Leia mais em: Rodrigo Constantino – Gazeta do Povo.com.
  • [3ORWELL, George. Revolução dos Bichos. Gazeta do Povo. Capítulo VII, pág. 86 a 104. Veja o livro completo aqui.

16 abril 2024

Revolução dos Bichos (VI)

Por George Orwell [1]

In: Gazeta do Povo [2] 

Durante todo o ano, os animais trabalharam como escravos. Mas eles eram felizes trabalhando; não se opunham a fazer nenhum esforço ou sacrifício, conscientes de que tudo o que faziam era em benefício próprio e daqueles de sua espécie que ainda nasceriam, e não em benefício de um bando de seres humanos ociosos e ladrões.

Durante a primavera e o verão eles trabalharam sessenta horas por semana e em agosto Napoleão anunciou que trabalhariam também nas tardes de domingo. Este trabalho era estritamente voluntário, mas qualquer animal que se ausentasse teria sua ração reduzida pela metade. Mesmo assim, precisaram abrir mão de certas tarefas. A colheita não foi tão bem sucedida quanto no ano anterior, e dois campos que deveriam ter sido semeados com raízes no início do verão não foram porque a terra não fora arada a tempo. Já dava para prever que o inverno seria bem difícil.

O moinho de vento apresentou muitas dificuldades inesperadas. Havia uma boa pedreira de calcário na fazenda, e tinham encontrado muita areia e cimento em um dos galpões, de modo que todos os materiais para a construção estavam à mão. Mas o problema que os animais não conseguiam resolver a princípio era como quebrar a pedra em pedaços de tamanho adequado. Não parecia haver maneira de fazer isso, exceto com picaretas e pés-de-cabra, que nenhum animal conseguia usar, pois nenhum animal ficava de pé em suas patas traseiras. Foi somente depois de semanas de esforço em vão que uma boa ideia ocorreu a alguém – usar a força da gravidade. Grandes rochas, grandes demais para serem usadas como eram, estavam espalhadas por todo o leito da pedreira. Os animais amarravam cordas ao redor delas e então puxavam com uma lentidão desesperadora, todos juntos, vacas, cavalos, ovelhas e qualquer outro animal que pudesse segurar a corda – até mesmo os porcos se juntavam em momentos críticos – até o topo da pedreira, de onde as pedras eram derrubadas para se despedaçarem em pedaços menores abaixo. Transportar a pedra depois de quebrada era relativamente simples. Os cavalos as carregavam em carroças, as ovelhas arrastavam uma por uma, e até mesmo Muriel e Benjamin usavam uma charrete velha e faziam sua parte. Até o final do verão acumularam um estoque suficiente de pedras e então a construção começou, sob a supervisão dos porcos.

Mas foi um processo lento e laborioso. Frequentemente era necessário um dia inteiro de esforço exaustivo para conseguirem arrastar uma única pedra até o topo da pedreira, e nem sempre elas quebravam quando caiam. Eles nunca teriam conseguido sem o Golias, cuja força parecia igual à de todos os outros animais juntos. Quando as pedras começaram a escorregar encosta abaixo e os animais gritavam desesperados ao se verem arrastados pela colina, era sempre ele que fazia força para segurar a corda e conseguia parar a pedra. Vê-lo trabalhar na encosta, subindo de pouco a pouco, com a respiração rápida, as pontas de seus cascos o segurando no chão e seus grandes flancos cheios de suor, deixava todos admirados. Esperança o advertiu algumas vezes para não se esforçar demais, mas Golias nunca a ouvia. Seus dois lemas, “Vou trabalhar mais” e “Napoleão está sempre certo”, pareciam-lhe uma resposta suficiente para todos os problemas. Tinha feito arranjos com o galo para ser acordado três quartos de hora mais cedo de manhã, ao invés de meia hora. E em seus momentos de lazer, tão raros hoje em dia, ele ia sozinho à pedreira, recolhia um carregamento de pedras quebradas e arrastava até o local de construção do moinho sem nenhuma ajuda.

O verão não foi tão ruim assim para os animais, apesar do trabalho duro. Se não tinham mais comida do que tinham nos dias de Jones, pelo menos não tinham menos. A vantagem de só ter que se alimentar e não ter que suportar cinco seres humanos extravagantes também era tão grande que os fracassos compensavam. E em muitos aspectos, o método animal de fazer as coisas era mais eficiente e poupava trabalho. Trabalhos como capinar, por exemplo, podiam ser feitos com uma minuciosidade impossível para os seres humanos. E novamente, como nenhum animal roubava agora, era desnecessário cercar o pasto da terra arável, o que poupava muito trabalho na manutenção de cercas e portões. No entanto, com o passar do verão, a escassez imprevista de algumas coisas começaram a ser percebidas. Havia necessidade de óleo de parafina, pregos, cordel, biscoitos para cães e ferraduras para os cavalos, todos itens que não poderiam ser produzidos na fazenda. Mais tarde haveria também necessidade de sementes e adubos artificiais, além de várias ferramentas e, finalmente, a maquinaria para o moinho de vento. Como estas seriam adquiridas, ninguém conseguia imaginar.

Numa manhã de domingo, quando os animais se reuniram para receber suas instruções, Napoleão anunciou que havia adotado uma nova política. A partir de agora, a Fazenda dos Animais se dedicaria ao comércio com as fazendas vizinhas: não, é claro, para qualquer propósito comercial, mas simplesmente para obter certos materiais que eram urgentemente necessários. As necessidades do moinho de vento devem se sobrepor a tudo o resto, disse ele. Ele estava, portanto, tomando providências para vender uma pilha de feno e parte da safra de trigo do ano corrente, e mais tarde, se mais dinheiro fosse necessário, eles teriam que vender ovos, sempre muito requisitados em Willingdon. As galinhas, disse Napoleão, deveriam acolher este sacrifício como sua própria contribuição especial para a construção do moinho de vento.

Mais uma vez os animais estavam conscientes de um vago mal-estar. Não tratar com seres humanos, não fazer comércio, não usar dinheiro – não foram estas as primeiras resoluções aprovadas naquela reunião triunfante depois da expulsão de Jones? Todos os animais se lembravam de ter aprovado tais resoluções: ou pelo menos pensavam que se lembravam disso. Os quatro jovens porcos que haviam protestado quando Napoleão aboliu as Reuniões levantaram timidamente suas vozes, mas foram prontamente silenciados por um tremendo rosnado dos cães. Então, como de costume, as ovelhas gritaram “Quatro patas bom, duas patas ruim!” e o constrangimento momentâneo foi suavizado. Finalmente, Napoleão levantou sua pata para pedir silêncio e anunciou que já havia feito todos os arranjos. Não haveria necessidade dos animais entrarem em contato com seres humanos, o que seria claramente indesejável. Ele pretendia assumir todo o fardo sobre seus próprios ombros. Um tal de Sr. Whymper, um advogado residente em Willingdon, tinha concordado em agir como intermediário entre a Fazenda dos Animais e o mundo exterior, e visitaria a fazenda toda segunda-feira de manhã para receber suas instruções. Napoleão terminou seu discurso com seu habitual grito de “Viva a Fazenda dos Animais!” e após o canto de “Animais da Inglaterra”, os animais foram dispensados.

Em seguida, Berro fez uma ronda na fazenda e acalmou a mente dos animais. Ele lhes assegurou que a resolução contra o comércio e o uso de dinheiro nunca havia sido aprovada, ou mesmo sugerida. Era pura imaginação, provavelmente originada nas mentiras circuladas por Bola de Neve. Alguns animais ainda se sentiam um pouco duvidosos, mas Berro lhes perguntou com astúcia: “Vocês têm certeza de que isto não é algo que vocês sonharam, camaradas? Vocês têm algum registro de tal resolução? Está escrito em algum lugar?” E como certamente era verdade que nada do tipo existia por escrito, os animais estavam satisfeitos com a explicação que tinham se equivocado.

Toda segunda-feira, o Sr. Whymper visitava a fazenda como havia sido combinado. Ele era um homenzinho de aparência manhosa com bigodes laterais, um despachante de negócios pequenos, mas afiado o suficiente para ter percebido antes de qualquer outro que a Fazenda dos Animais precisaria de um corretor e que valeria a pena ter as comissões. Os animais observavam suas idas e vindas com uma espécie de pavor, e o evitavam o máximo possível. No entanto, a visão de Napoleão, de quatro, entregando ordens à Whymper, que estava de pé, em duas pernas, despertou seu orgulho e os reconciliou parcialmente com o novo arranjo. Suas relações com a raça humana agora não eram exatamente as mesmas que eram antes. Os seres humanos não odiavam menos a Fazenda dos Animais agora que ela estava prosperando; de fato, eles odiavam-na mais do que nunca. Todo ser humano tinha fé que a fazenda iria à falência mais cedo ou mais tarde, e, acima de tudo, que o moinho seria um fracasso. Eles se reuniam nos bares e provavam uns aos outros por meio de diagramas que o moinho estava destinado a cair ou, que se ele se mantivesse em pé, nunca funcionaria. No entanto, contra sua vontade, eles tinham desenvolvido um certo respeito pela eficiência com que os animais estavam administrando seus próprios negócios. Um sintoma disso foi que eles começaram a chamar a Fazenda dos Animais pelo nome próprio e deixaram de fingir que ela se chamava Fazenda Solar. Eles também haviam abandonado a simpatia a Jones, que havia perdido a esperança de ter sua fazenda de volta e ido morar em outra parte do condado. Exceto por Whymper, ainda não havia contato entre a Fazenda dos Animais e o mundo exterior, mas havia constantes rumores de que Napoleão estava prestes a firmar um acordo comercial definitivo com o Sr. Pilkington de Foxwood ou com o Sr. Frederick de Pinchfield – mas nunca, como se notou, com ambos simultaneamente.

Foi mais ou menos nessa época que os porcos se mudaram de repente para a casa da fazenda e passaram a morar lá. Os animais pareciam se lembrar novamente que uma resolução contra isto havia sido aprovada nos primeiros dias, e novamente Berro conseguiu convencê-los de que este não era o caso. Era absolutamente necessário, disse ele, que os porcos, os cérebros da fazenda, tivessem um lugar tranquilo para trabalhar. Também era mais adequado à dignidade do Líder (pois, nos últimos tempos, ele havia começado a se referir a Napoleão como “Líder”) viver em uma casa do que em uma simples pocilga. No entanto, alguns dos animais ficaram perturbados quando souberam que os porcos não só comiam suas refeições na cozinha e usavam a sala de visitas como sala de recreação, mas também dormiam nas camas. Golias se acalmou com o “Napoleão está sempre certo!”, como sempre, mas Esperança, que achava que se lembrava de uma decisão definitiva contra as camas, foi até o final do celeiro e tentou decifrar os Sete Mandamentos que estavam inscritos ali. Não conseguindo ler mais do que algumas letras específicas, ela foi buscar Muriel.

“Muriel”, disse ela, “leia para mim o Quarto Mandamento. Não diz algo sobre nunca dormir em uma cama?”.

Muriel leu com alguma dificuldade. “Diz: ‘Nenhum animal deve dormir em uma cama com lençóis’”, ela anunciou finalmente.

Curiosamente, Esperança não se lembrava do Quarto Mandamento mencionar lençóis; mas como estava ali na parede, devia ser assim. E Berro, que por acaso estava passando por ali neste momento, acompanhado por dois ou três cães, foi capaz de colocar todo o assunto em perspectiva.

“Vocês ouviram então, camaradas”, disse ele, “que nós porcos agora dormimos nas camas da fazenda? E por que não? Vocês não supuseram, certamente, que alguma vez houve uma decisão contra as camas? Uma cama significa apenas um lugar para dormir. Uma pilha de palha em uma baia é uma cama, quando se para para pensar. A regra era contra os lençóis, que são uma invenção humana. Tiramos os lençóis das camas da fazenda, e dormimos entre cobertores. E olha, são camas muito confortáveis! Mas não mais confortáveis do que precisamos, posso dizer-lhes, camaradas, com todo o trabalho intelectual que temos que fazer hoje em dia. Vocês não nos roubariam o nosso descanso, não é, camaradas? Vocês não deixariam que ficássemos cansados demais para cumprir nossas obrigações? Com certeza nenhum de vocês deseja ver Jones de volta, não é?”

Os animais confirmaram imediatamente que não, não queriam, e não se falou mais nada sobre os porcos dormindo nas camas da fazenda. E quando, alguns dias depois, foi anunciado que a partir de agora os porcos se levantariam uma hora mais tarde pela manhã do que os outros animais, ninguém reclamou.

No outono, os animais estavam cansados, mas felizes. Eles tinham tido um ano difícil, e após a venda de parte do feno e do milho, o estoque de alimentos para o inverno não era abundante, mas o moinho de vento compensava tudo. Agora a construção estava quase na metade. Após a colheita, houve um período de tempo claro e seco e os animais trabalhavam mais do que nunca, achando que valia a pena arrastar blocos de pedra o dia inteiro se ao fazer isso eles pudessem levantar mais um pouco as paredes da construção. Golias até saía à noite e trabalhava por uma ou duas horas sozinho à luz da lua cheia. Em seu tempo livre, os animais andavam em volta do moinho semipronto, admirando a força e perpendicularidade de suas paredes e maravilhando-se com o fato de que foram capazes de construir algo tão imponente. Apenas o velho Benjamin se recusava a ficar entusiasmado com o moinho, embora, como de costume, ele não dissesse nada além do comentário misterioso de que os burros vivem muito tempo.

Chegou o mês de novembro, com os ventos raivosos do sudoeste. A construção teve que parar porque agora estava muito úmido para misturar o cimento. Finalmente chegou uma noite em que o vendaval foi tão violento que as instalações da fazenda balançaram sobre suas fundações e várias telhas foram arrancadas do telhado do celeiro. As galinhas despertaram em terror porque todas haviam sonhado simultaneamente que ouviam uma arma disparar ao longe. Pela manhã, os animais saíram de suas baias para descobrir que o mastro da bandeira havia sido derrubado e um olmo no pé do pomar havia sido arrancado como se fosse um rabanete. Eles tinham acabado de perceber isso quando um grito de desespero saiu da garganta de cada um dos animais. Todos viram algo terrível. O moinho de vento estava em ruínas.

Eles se precipitaram rapidamente para o local. Napoleão, que quase nunca saía para caminhar, correu à frente de todos eles. Sim, lá estava o moinho, fruto de todas as suas lutas, levado às suas fundações; as pedras que haviam quebrado e carregado tão laboriosamente estavam espalhadas por toda parte. Incapazes de falar a princípio, eles ficaram olhando em luto para o monte de pedras caídas. Napoleão andava de um lado para o outro em silêncio, ocasionalmente cheirando o chão. Sua cauda se enrijeceu, se torcendo bruscamente de um lado para o outro, sinal de intensa atividade mental. De repente, ele parou, como se tivesse tomado uma decisão.

“Camaradas”, disse ele silenciosamente, “vocês sabem quem é o responsável por isto? Vocês sabem quem é o inimigo que veio na noite e derrubou nosso moinho de vento? BOLA DE NEVE!” ele bramiu repentinamente com uma voz de trovão. “Bola de Neve fez isto! Em pura maldade, pensando em atrasar nossos planos e vingar-se de sua desonrosa expulsão, este traidor rastejou até aqui sob a cobertura da noite e destruiu nosso trabalho de quase um ano. Camaradas, aqui e agora eu pronuncio a sentença de morte de Bola de Neve. Ofereço uma ordem ‘Herói Animal, Segunda Classe’ e meio alqueire de maçãs a qualquer animal que o leve à justiça. Um alqueire cheio para qualquer um que o capturar com vida”!

Os animais ficaram mais do que chocados ao saber que Bola de Neve poderia ser culpado de tal ação. Houve um grito de indignação e todos começaram a pensar em maneiras de capturar o Bola de Neve se ele voltasse algum dia. Quase imediatamente as pegadas de um porco foram descobertas na grama a uma pequena distância do monte. Elas só podiam ser rastreadas por alguns metros, mas pareciam levar a um buraco na sebe. Napoleão farejou profundamente a região e pronunciou que as pegadas eram de Bola de Neve. E afirmou que, na sua opinião, Bola de Neve provavelmente tinha vindo da direção da Fazenda Foxwood.

“Chega de atrasos, camaradas!” gritou Napoleão quando as pegadas haviam sido examinadas. “Há trabalho a ser feito. Vamos começar a reconstruir o moinho de vento nesta manhã mesmo e vamos construir durante todo o inverno, chuva ou sol. Vamos ensinar a este miserável traidor que ele não pode desfazer nosso trabalho tão facilmente. Lembrem-se, camaradas, não deve haver alteração em nossos planos: eles devem ser realizados no prazo. Avante, camaradas! Viva o moinho de vento! Viva a Fazenda dos Animais”!

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Veja o vídeo sobre a leitura do capítulo VI a seguir:



Notas:

  • [1George Orwell: “...escritor nascido em uma colônia inglesa na Índia, é considerado um dos mais importantes romancistas da vertente distópica da literatura mundial, caracterizada pela narração de enredos em que os personagens vivenciam situações em espaço e tempo futuros, nos quais não há possibilidade para a utopia, ou seja, para o sonho e para a esperança. Nessa linha, destacam-se suas duas obras-primas, traduzidas para vários idiomas e transpostas para as telas do cinema mais de uma vez: o romance A revolução dos bichos, publicado em 1945, e o romance 1984, publicado em 1949.” Veja mais aqui.
  • [2O que diz o livro Revolução dos Bichos? “O conhecido livro do inglês George Orwell, A Revolução dos Bichos (1945), é um dos legados atemporais mais importantes que escritores do século passado nos deixaram. Na obra, Orwell faz uma crítica ao stalinismo. Então socialista, o inglês – nascido na Índia durante o domínio britânico – se desilude com a ideologia ao ver o totalitarismo soviético e satiriza o sucessor de Lênin. Na alegoria, o autor apresenta uma revolução idealizada por um porco, o Major (que pode representar tanto Marx como Lênin), que convoca os bichos da granja em que vive a expulsar seu proprietário, o humano Sr. Jones (que seria Nicolau II, imperador do Czar). Porco Major morre em seguida e dois outros suínos tomam a frente: Napoleão (representando Stálin) e Bola de Neve (que seria Trotski). A estória segue o roteiro soviético… Napoleão expurga Bola de Neve, deturpa as leis a seu favor e se torna um ditador. Os demais bichos (galinhas, gado, cavalo…) se rendem à autocracia sem questionar, de forma passiva. Cada vez trabalham mais, exaustivamente e com alimento controlado; enquanto isso, Napoleão toma posse das dependências do Sr. Jones, agindo, portanto, de forma mais exploradora e cruel que o antigo chefe. A ironia está no fato de que a máxima da revolução era ‘duas pernas/patas mau’ – referindo-se a seres humanos”. Leia mais em: Rodrigo Constantino – Gazeta do Povo.com.
  • [3ORWELL, George. Revolução dos Bichos. Gazeta do Povo. Capítulo VI, pág. 71 a 84. Veja o livro completo aqui.

13 abril 2024

Revolução dos Bichos (V)

Por George Orwell [1]

In: Gazeta do Povo [2]

    Capítulo V [3]

À medida que o inverno avançava, Mollie se tornava cada vez mais problemática. Ela chegava atrasada ao trabalho todo dia de manhã e se desculpava dizendo que tinha dormido demais. Se queixava também de dores misteriosas, embora seu apetite fosse excelente. Fugia do trabalho com algum pretexto qualquer e ia para o lago, onde ficava encarando tolamente para seu próprio reflexo na água. Mas havia rumores de algo mais sério. Um dia, enquanto Mollie caminhava alegremente pelo pátio, balançando sua longa cauda e mastigando um pedaço de feno, Esperança a levou para o lado.

“Mollie”, disse ela, “tenho algo muito sério para conversar com você. Esta manhã eu vi você olhando por cima da cerca que divide a Fazenda dos Animais de Foxwood. Um dos homens do Sr. Pilkington estava de pé do outro lado da cerca. E – eu estava muito longe, mas estou quase certa de ter visto isto – ele estava falando com você e você deixava ele acariciar seu nariz. O que isso significa, Mollie?”

“Ele não fez nada! Eu também não! Não foi assim!” gritou Mollie, ficando agitada e batendo a pata no chão.

“Mollie! Olhe bem para mim. Você me dá sua palavra de honra de que aquele homem não estava acariciando seu nariz?”

“Não foi assim!” repetiu Mollie sem olhar Esperança nos olhos e, no momento seguinte, ela se empinou e galopou para o campo.

Uma ideia tomou conta de Esperança. Sem dizer nada aos outros, ela foi para a baia da Mollie e remexeu a palha com seu casco. Uma pequena pilha de torrões de açúcar e várias fitas coloridas estavam ali embaixo.

Três dias depois, Mollie desapareceu. Durante algumas semanas nada se sabia de seu paradeiro, então os pombos relataram que a haviam visto do outro lado de Willingdon. Ela estava entre os eixos de uma charrete vermelha e preta elegante, em frente a uma casa pública. Um homem gordo de rosto vermelho, de calça xadrez e polainas, com pinta de funcionário público, estava acariciando seu nariz e alimentando-a com açúcar. Sua crina estava recém-cortada e ela usava uma fita escarlate ao redor de seu topete. Parecia estar se divertindo, ao menos assim contaram os pombos. Os animais nunca mais falaram sobre a Mollie.

Janeiro trouxe um clima miserável. A terra estava dura como ferro, e nada podia ser feito nos campos. Muitas reuniões foram realizadas no grande celeiro, e os porcos se ocupavam em planejar o trabalho da estação seguinte. Tinham aceitado que os porcos, que eram claramente mais espertos que os outros animais, deveriam decidir todas as questões de política agrícola, embora suas decisões tivessem que ser ratificadas pela maioria de votos. Este arranjo até teria funcionado bem se não fossem as disputas entre Bola de Neve e Napoleão. Os dois discordavam em todos os pontos em que era possível discordar. Se um deles sugerisse semear uma área maior com cevada, o outro certamente exigiria uma área maior de aveia, e se um deles dissesse que tal e tal campos eram adequados para couves, o outro declararia que eram inúteis para qualquer coisa, exceto raízes. Cada um tinha seus próprios seguidores e houve alguns debates violentos. Nas Reuniões, Bola de Neve frequentemente conquistava a maioria com seus discursos brilhantes, mas Napoleão era melhor em buscar apoio para si mesmo entre as falas. Ele foi especialmente bem sucedido com as ovelhas. Ultimamente as ovelhas baliam “Quatro patas bom, duas patas ruim” em qualquer momento, e frequentemente interrompiam a Reunião com isso. Notou-se que gritavam “Quatro patas bom, duas patas ruim” em momentos particularmente cruciais dos discursos de Bola de Neve. Ele havia estudado de perto alguns volumes antigos da revista “Agricultor e Criador de Rebanho” que ele havia encontrado na fazenda, e estava cheio de planos para inovações e melhorias. Ele falou com grande conhecimento sobre esgoto de campo, ensilagem e escória básica, e tinha elaborado um esquema complexo para que todos os animais largassem seu esterco diretamente no campo, em um local diferente a cada dia, para evitar o trabalho de transporte. Napoleão não produziu nenhum esquema próprio, mas disse calmamente que os planos de Bola de Neve não dariam em nada, dando a impressão de que seu tempo já tinha passado. Mas de todas as controvérsias, nenhuma foi tão intensa como a que ocorreu sobre o moinho de vento.

No longo pasto, não muito afastado das instalações da fazenda, havia um pequeno monte que era o ponto mais alto do terreno. Depois de fazer o levantamento do terreno, Bola de Neve declarou que este era o lugar perfeito para um moinho de vento, que podia ser feito para alimentar um dínamo e abastecer a fazenda com energia elétrica. Isto permitiria que as baias tivessem luz e fossem aquecidas no inverno, além de operar uma serra circular, um cortador de palha, um cortador de raízes e uma ordenhadeira elétrica. Os animais nunca tinham ouvido falar sobre esse tipo de coisa (pois a fazenda era antiquada e tinha apenas uma maquinaria bem primitiva), e eles ouviam com espanto enquanto Bola de Neve invocava imagens de máquinas fantásticas que fariam seu trabalho por eles enquanto pastavam à vontade nos campos ou melhoravam suas mentes com leitura e conversação.

Em poucas semanas, os planos de Bola de Neve para o moinho de vento foram totalmente elaborados. Os detalhes mecânicos vieram principalmente de três livros que tinham pertencido ao Sr. Jones: “Mil coisas úteis a fazer sobre a casa”, “Cada homem é seu próprio pedreiro” e “Eletricidade para iniciantes”. Bola de Neve usou como seu estudo um galpão que já havia sido usado para incubadoras e tinha um piso de madeira liso, adequado para desenhos. Ele ficava ali fechado por horas e horas. Com livros abertos em cima de uma pedra e um pedaço de giz preso entre os nós dos dedos de sua pata, ele se movia rapidamente de um lado para o outro, desenhando linha após linha e emitindo pequenos gemidos de excitação. Aos poucos os planos foram se transformando em uma complicada massa de manivelas e rodas dentadas, cobrindo mais da metade do piso, o que os outros animais achavam completamente ininteligível, mas muito impressionante. Todos eles vinham ver os desenhos de Bola de Neve pelo menos uma vez por dia. Até mesmo as galinhas e os patos vieram e se esforçaram para não pisar nas marcas de giz. Somente Napoleão se manteve distante. Ele havia se declarado contra o moinho de vento desde o início. Um dia, porém, ele chegou inesperadamente para examinar os planos. Ele andou bastante pelo galpão, olhando atentamente cada detalhe dos planos e os examinando uma ou duas vezes, ficando de pé por algum tempo para contemplá-los pelo canto do olho; de repente levantou a perna, urinou sobre os planos e saiu sem pronunciar uma palavra.

Toda a fazenda estava profundamente dividida em relação ao moinho de vento. Bola de Neve não negou que construí-lo seria difícil. Teriam que carregar pedras para as paredes, fazer as velas e lidar com os dínamos e cabos. (Bola de Neve não especificou como o material seria adquirido). Mas ele defendeu que tudo poderia ser feito dentro de um ano. E depois disso, declarou, economizariam tanta mão-de-obra que os animais precisariam trabalhar apenas três dias por semana. Napoleão, por outro lado, argumentou que a grande necessidade do momento era aumentar a produção de alimentos, e que se eles perdessem tempo no moinho, todos eles morreriam de fome. Os animais se separaram em dois grupos, cada uma com um slogan: “Vote em Bola de Neve e na semana de três dias” e “Vote em Napoleão e na manjedoura cheia”. Benjamin era o único animal que não estava do lado de nenhum dos dois. Ele se recusava a acreditar que a comida se tornaria mais abundante ou que o moinho de vento economizaria trabalho. Com moinho de vento ou sem moinho de vento, disse ele, a vida continuaria como sempre tinha sido – ou seja, ruim.

Além das disputas sobre o moinho de vento, havia a questão da defesa. Todos compreenderam que, embora os seres humanos tivessem sido derrotados na Batalha do Estábulo, eles poderiam fazer outra tentativa mais preparada de reconquistar a fazenda e reintegrar a posse do Sr. Jones. Eles tinham ainda mais razões para fazer isso porque a notícia de sua derrota se espalhou pelo campo, deixando os animais das outras fazendas mais inquietos do que nunca. Como de costume, Bola de Neve e Napoleão não concordavam. Segundo Napoleão, os animais deveriam adquirir armas de fogo e treinar tiro. Segundo Bola de Neve, eles deveriam enviar mais pombos mensageiros e promover a revolução entre os animais das outras fazendas. Um argumentou que se não conseguissem se defender, seriam conquistados, o outro argumentou que se as rebeliões acontecessem em todos os lugares eles não teriam necessidade de se defender. Os animais ouviram primeiro Napoleão, depois Bola de Neve, e não conseguiam decidir o que era melhor; na verdade, sempre se encontravam de acordo com aquele que estava falando no momento.

Finalmente, chegou o dia em que os planos de Bola de Neve foram concluídos. Na Reunião do domingo seguinte, a questão de começar ou não os trabalhos do moinho de vento seria colocada à votação. Quando os animais se reuniram no grande celeiro, Bola de Neve se levantou e, embora tenha sido ocasionalmente interrompido pelos balidos das ovelhas, expôs suas razões para defender a construção do moinho de vento. Então Napoleão se levantou para responder. Ele disse muito silenciosamente que o moinho era um disparate e não aconselhou ninguém a votar nele, voltando a se sentar prontamente; ele havia falado por apenas trinta segundos, e parecia quase indiferente ao efeito produzido. Nisso, Bola de Neve se levantou e, gritando para as ovelhas, que estavam balindo de novo, proferiu um apelo apaixonado em favor do moinho de vento. Até agora, os animais estavam divididos igualmente em suas simpatias, mas a eloquência de Bola de Neve apagou qualquer dúvida. Com frases brilhantes, ele pintou um quadro de como seria a Fazenda dos Animais quando o trabalho sórdido fosse retirado das costas dos animais. Sua imaginação tinha agora corrido muito além dos cortadores de palha e raízes. A eletricidade, disse ele, podia operar máquinas debulhadoras, arados, grades, rolos, colheitadeiras e aglutinadores, além de fornecer a cada estábulo sua própria luz elétrica, água quente e fria, e um aquecedor elétrico. Quando ele terminou de falar, não havia dúvidas quanto ao caminho a ser seguido para a votação. Mas exatamente neste momento Napoleão se levantou e, lançando um olhar peculiar de Bola de Neve, proferiu um guincho agudo, de um tipo que ninguém jamais havia ouvido antes.

Isso foi seguido por um terríveis latidos vindos de fora, e nove cachorros enormes usando coleiras de latão chegaram no celeiro. Eles correram direto para Bola de Neve, que saiu de seu lugar a tempo de fugir das mandíbulas estalando. De repente ele já estava do lado de fora da porta, com os cachorros em seu encalço. Surpresos e assustados demais para falar, todos os animais se amontoaram na porta para assistir a perseguição. Bola de Neve estava correndo pelo longo pasto que dava na estrada. Ele estava correndo como só um porco pode correr, mas os cães estavam chegando perto. Então ele escorregou e parecia certo que a corrida chegaria ao fim. Mas conseguiu se levantar e correu mais rápido do que nunca. Mas não adiantou: os cachorros já estavam perto novamente. Um deles quase mordeu o rabo de Bola de Neve, que a desviou bem na hora. Ele deu um último gás e, com poucos centímetros de vantagem, escapou por um buraco na cerca, não sendo mais visto.

Silenciosos e aterrorizados, os animais se arrastaram de volta para o celeiro. Os cachorros voltaram logo atrás, latindo. No início, ninguém foi capaz imaginar de onde vieram essas criaturas, mas o problema logo foi resolvido: eles eram os filhotes de cachorro que Napoleão havia separado de suas mães e criado. Embora ainda não tivessem crescido completamente, eles eram cães enormes, com uma aparência tão feroz quanto lobos.

Eles se mantiveram perto de Napoleão. Notou-se que eles abanavam suas caudas para ele da mesma forma que os outros cães costumavam fazer com o Sr. Jones.

Napoleão, com os cães seguindo-o, estava agora na parte mais alta do lugar, onde o Major tinha anteriormente parado para fazer seu discurso. Ele anunciou que a partir de agora as reuniões de domingo de manhã não seriam mais realizadas. Elas eram desnecessárias, disse ele, e desperdiçavam tempo. No futuro, todas as questões relacionadas ao funcionamento da fazenda seriam resolvidas por um comitê especial de porcos, presidido por ele mesmo. Estes se reuniriam em particular e depois comunicariam suas decisões aos demais. Os animais ainda se reuniriam aos domingos de manhã para saudar a bandeira, cantar “Animais da Inglaterra” e receber as ordens para a semana; mas não haveria mais debates.

Apesar do choque causado pela expulsão de Bola de Neve, os animais ficaram desolados com este anúncio. Vários deles teriam protestado se pudessem encontrar os argumentos certos. Até mesmo Golias ficou vagamente perturbado. Suas orelhas estavam ligeiramente viradas para trás e ele abanava o topete várias vezes, tentando arduamente organizar seus pensamentos; mas no final, ele não conseguiu pensar em nada para dizer. Mas alguns dos porcos eram, no entanto, mais articulados. Quatro jovens porcos na fila da frente gritavam estridentemente em tom de desaprovação, e todos os quatro se levantaram e começaram a falar ao mesmo tempo. Mas de repente os cães sentados ao redor de Napoleão soltaram rosnados profundos e ameaçadores, e os porcos se calaram e sentaram novamente. Em seguida, as ovelhas se lançaram em um tremendo balido de “Quatro patas bom, duas patas ruim!” que durou quase um quarto de hora e pôs fim a qualquer possibilidade de discussão.

Em seguida, Berro foi enviado para explicar o novo arranjo aos outros.

“Camaradas”, disse ele, “espero que cada animal aqui valorize o sacrifício que o camarada Napoleão fez ao tomar para si este trabalho extra. Não imaginem, camaradas, que a liderança é um prazer! Pelo contrário, é uma responsabilidade difícil e pesada. Ninguém acredita mais firmemente do que o camarada Napoleão que todos os animais são iguais. Ele ficaria muito feliz em deixar vocês tomarem suas próprias decisões. Mas às vezes vocês podem acabar tomando as decisões erradas, camaradas, e então, onde estaríamos? Vamos supor que vocês tivessem decidido seguir Bola de Neve, com seu sonho de moinhos de vento – Bola de Neve que, como sabemos agora, não passava de um criminoso?”.

“Ele lutou bravamente na Batalha do Estábulo”, disse alguém.

“Bravura não basta”, disse Berro. “Lealdade e obediência são mais importantes. E quanto à Batalha do Estábulo, acredito que chegará o momento em que descobriremos que o papel de Bola de Neve nela foi muito exagerado. Disciplina, camaradas, disciplina de ferro! Essa é a palavra de ordem para hoje. Um passo em falso, e nossos inimigos estarão sobre nós. Com certeza, camaradas, vocês não querem Jones de volta”.

Mais uma vez, este argumento era incontestável. Certamente, os animais não queriam Jones de volta; se era possível que a realização dos debates nas manhãs de domingo contribuíssem para a volta de Jones, então os debates deveriam parar. Golias, que agora tinha tido tempo para refletir, expressou o sentimento geral dizendo: “Se o camarada Napoleão diz, deve estar certo”. E a partir daí ele adotou a máxima: “Napoleão está sempre certo”, além de seu lema pessoal: “Vou trabalhar mais”.

Nessa época, o tempo já estava mudando e a aragem da primavera havia começado. O galpão onde Bola de Neve havia traçado seus planos do moinho de vento havia sido fechado e se supunha que os planos tinham sido apagados do chão. Todos os domingos de manhã, às dez horas, os animais se reuniam no grande celeiro para receber suas ordens para a semana. O crânio do velho Major, agora já sem qualquer resquício de carne, havia sido desenterrado do pomar e exposto em um toco ao pé da bandeira, ao lado da arma. Após o hasteamento da bandeira, os animais eram obrigados a passar pelo crânio de forma reverente antes de entrar no celeiro. Agora já não sentavam todos juntos como antes. Napoleão, assim como Berro e um outro porco chamado Minimus, que tinha um dom notável para compor canções e poemas, sentavam-se na frente da plataforma elevada, com os nove cachorros jovens formando um semicírculo à sua volta e os outros porcos sentados atrás. O resto dos animais sentou-se de frente para eles na parte principal do celeiro. Napoleão leu as ordens para a semana em estilo militar áspero e, depois de um único canto de “Animais da Inglaterra”, todos os animais se dispersaram.

No terceiro domingo após a expulsão de Bola de Neve, os animais ficaram um pouco surpresos ao ouvir Napoleão anunciar que o moinho de vento seria construído no fim das contas. Ele não deu nenhuma razão para ter mudado de ideia, simplesmente avisou os animais que esta tarefa extra significaria muito trabalho árduo, podendo até mesmo ser necessário reduzir suas rações. Os planos, entretanto, tinham sido todos preparados, até o último detalhe. Um comitê especial de porcos estava trabalhando neles durante as últimas três semanas. A construção do moinho de vento, além de várias outras melhorias, deveria levar dois anos.

Naquela noite, Berro explicou em particular para os outros animais que Napoleão nunca se opôs ao moinho de vento. Pelo contrário, foi ele quem o tinha defendido no início, e o plano que Bola de Neve tinha desenhado no chão do galpão tinha sido, na verdade, roubado de Napoleão. O moinho de vento foi, de fato, uma criação do próprio Napoleão. Por que então, perguntou alguém, ele havia falado tão fortemente contra o plano? Agora Berro parecia muito dissimulado. Isso, disse ele, era a astúcia do camarada Napoleão. Parecia que ele tinha se oposto ao moinho de vento simplesmente como uma manobra para se livrar de Bola de Neve, que era uma figura perigosa e uma má influência. Agora que estava fora do caminho, o plano podia ir adiante sem sua interferência. Isto, disse Berro, era algo chamado de tática. Ele repetiu várias vezes, “Tática, camaradas, tática!” pulando e balançando sua cauda com uma alegre gargalhada. Os animais não tinham certeza do que a palavra significava, mas Berro foi tão persuasivo, e os três cães que estavam com ele rosnaram tão ameaçadoramente, que aceitaram sua explicação sem mais perguntas.

- - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Veja também o capítulo 5 no vídeo a seguir:



Notas:

  • [1George Orwell: “...escritor nascido em uma colônia inglesa na Índia, é considerado um dos mais importantes romancistas da vertente distópica da literatura mundial, caracterizada pela narração de enredos em que os personagens vivenciam situações em espaço e tempo futuros, nos quais não há possibilidade para a utopia, ou seja, para o sonho e para a esperança. Nessa linha, destacam-se suas duas obras-primas, traduzidas para vários idiomas e transpostas para as telas do cinema mais de uma vez: o romance A revolução dos bichos, publicado em 1945, e o romance 1984, publicado em 1949.” Veja mais aqui.

  • [2O que diz o livro Revolução dos Bichos? “O conhecido livro do inglês George Orwell, A Revolução dos Bichos (1945), é um dos legados atemporais mais importantes que escritores do século passado nos deixaram. Na obra, Orwell faz uma crítica ao stalinismo. Então socialista, o inglês – nascido na Índia durante o domínio britânico – se desilude com a ideologia ao ver o totalitarismo soviético e satiriza o sucessor de Lênin. Na alegoria, o autor apresenta uma revolução idealizada por um porco, o Major (que pode representar tanto Marx como Lênin), que convoca os bichos da granja em que vive a expulsar seu proprietário, o humano Sr. Jones (que seria Nicolau II, imperador do Czar). Porco Major morre em seguida e dois outros suínos tomam a frente: Napoleão (representando Stálin) e Bola de Neve (que seria Trotski). A estória segue o roteiro soviético… Napoleão expurga Bola de Neve, deturpa as leis a seu favor e se torna um ditador. Os demais bichos (galinhas, gado, cavalo…) se rendem à autocracia sem questionar, de forma passiva. Cada vez trabalham mais, exaustivamente e com alimento controlado; enquanto isso, Napoleão toma posse das dependências do Sr. Jones, agindo, portanto, de forma mais exploradora e cruel que o antigo chefe. A ironia está no fato de que a máxima da revolução era ‘duas pernas/patas mau’ – referindo-se a seres humanos”. Leia mais em: Rodrigo Constantino – Gazeta do Povo.com.

  • [3ORWELL, George. Revolução dos Bichos. Gazeta do Povo. Capítulo V, pág. 54 a 69. Veja o livro completo aqui.