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10 outubro 2022

O Século Sertanejo

Por
DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]

Ciclo do gado [2]


Diferentemente dos intrusivos paulistas, os criadores de gado nordestinos adentraram não nas matas e alagados, mas nas vastas extensões de terra distantes do fértil litoral. Faziam-no mansamente. Faziam-no, aliás, desde a montagem dos primeiros engenhos. Em 1549, com a instalação do governo-geral, começou a lenta expansão da pecuária no Nordeste. Uma das figuras emblemáticas dessa forma de conquista do sertão foi o português Garcia d’Ávila, que, tendo recebido umas terras de pasto nos campos de Itapoã das mãos do governador Tomé de Souza, logo as estendeu até a enseada de Tatuapara, onde ergueu uma construção com traços medievais: a Casa da Torre. Em poucos anos, tornou-se um dos mais ricos homens da Bahia. Dele dizia-se ter tanto gado que “não lhe sabe o número, e só do bravo e perdido sustentou as armadas Del-Rei”. Devagarzinho, manadas baianas, imensas e silenciosas, percorreram léguas e léguas do território brasileiro, espalhando-se entre o que hoje é o Piauí e as nascentes do rio São Francisco, em Minas Gerais.

O sertão, significando na época as terras apartadas do litoral, era o palco dessa nova ocupação. A vida ali não era fácil. O cotidiano desenrolava-se sob sol ardente e em solo árido. De agosto a dezembro, a falta d’água era tanta que muitas pessoas quase não tinham o que beber. Junto com a seca vinham as crises de abastecimento. Quase nada florescia, nem crescia. A regularidade das estiagens era apavorante: anos como os de 1660, 1671, 1673 e 1735 deixaram marcas. Preocupadas, as autoridades anotavam em correspondências oficiais: “Há dois anos que se experimenta nesta capitania e em todo o Estado uma total falta de água, por cuja causa se destruíram as plantas e não produziram as safras, além do que há grande falta de carne e de farinha”. As dificuldades alimentares aparecem em outros registros, como aquele de 1697 em que um padre anotava sobre os sertanejos: “comem estes homens só carne de vaca com laticínios e algum mel que tiram pelos paus; a carne ordinariamente se come assada, porque não há panelas em que se coza. Bebem água de poços e lagoas, sempre turva e muito assalitrada. Os ares são muito grossos e pouco sadios. Desta sorte vivem esses miseráveis homens, vestindo couros e parecendo tapuias”. A pobreza sertaneja era um dado real, embora escapasse ao relato do padre europeu a luta dos homens para adaptar-se ao meio ambiente. Para ficar em poucos exemplos, que se pense no uso de fibras vegetais substituindo tecidos de vestir, nas redes de fibra de caroá, no cardápio agreste de carne de tatu ou peba e da paçoca de carne de sol pilada com farinha e rapadura.

Nas áreas menos atingidas pela seca, o gado dominava a terra. A imensidão das fazendas de gado do Nordeste já tinha chamado a atenção do jesuíta Antonil por se estenderem de Olinda à freguesia de Nossa Senhora da Vitória, no “certão do Peauhy”: “E posto que sejam muitos os currais da parte da Bahia, chegam a muito maior número os de Pernambuco, cujo sertão se estende pela costa desde a cidade de Olinda até o rio de São Francisco oitenta léguas, e continuando, da barra do rio de São Francisco até a barra do rio Iguaçu, contam-se duzentas léguas. De Olinda para o oeste até o Piauí, freguesia de Nossa Senhora da Vitória, cento e sessenta léguas, e pela parte do norte estende-se de Olinda até o Ceará Mirim oitenta léguas e daí até ao Açu trinta e cinco, e até o Ceará Grande oitenta. E por todas vem a estender-se desde Olinda até esta parte quase duzentas léguas”.

A cidade de Oeiras – primeira capital do Piauí – originou-se de uma única fazenda, denominada Cabrobó, fundada por sesmeiros dos descendentes de Garcia d’Ávila. O antigo núcleo da fazenda, seus casarões, currais e casas de moradores e agregados geraram a vila de Moxa, nome do riacho que banha a região e que serviu de primeira designação para a capital piauiense. Casas de barro cobertas de palha, currais de pedra ou madeira, pequenas roças de mandioca, feijão e milho funcionavam como âncora para o gado que se criava solto. Pastagens sem limites funcionavam como campos de engorda onde o vaqueiro só pisava para buscar bezerros novos e fazer nova choupana. Fazendas grandes agregavam tendas de ferreiro e carpinteiro, cercadas para separação de reses, reservas de pasto e lavouras de subsistência. Muitas delas ainda possuíam engenhos movidos a boi ou a água para a produção de açúcar mascavo, assim como dispunham de casas de farinhada e alpendres ou tendas com rodas de fiar algodão. Os fios eram tingidos com urucum, jenipapo ou caju. As que não tinham sal à flor da terra, compravam da barca do sal que subia e descia o Parnaíba. Na época das chuvas – anunciadas pelo desabrochar da flor do mandacaru –, aprontavam-se arreios, ferraduras e couros. Nos meses de abril e maio, conhecidos como fins d’água, floresciam juremas e magnólias a perfumar os caminhos. As campinas eram chamadas de campos mimosos. Nas noites escuras, o som agudo dos berrantes sinalizava a direção para os viajantes perdidos. Técnicas e equipamentos tão importantes nos engenhos eram substituídos pela habilidade específica do vaqueiro. Habilidade em tratar vaca parida, em cuidar de umbigo de bezerro, em evitar bicheiras, em serrar chifres pontiagudos, em marcar as ancas dos animais com ferro quente. O curral era o cenário para toda essa atividade: “Em cada fazenda”, explicava o ouvidor Durão, no século XVIII, em sua Descrição da Capitania de São José do Piauí, “deve haver pelo menos três currais que tomam diversos nomes conforme o serviço que presta. Chama curral de vaquejada àquele em que se recebe o gado que tem de ser vendido, onde se tira o leite e onde se faz o rol de porteiras; curral de apartar aquele em que se recebe todo gado indistintamente para ao depois ser distribuído pelas diferentes acomodações; curral de benefício onde se recolhem os garrotes para serem ferrados e para se fazer as partilhas dos vaqueiros”.

Um quarto dos bezerros pertencia ao vaqueiro. O tamanho dos currais variava de acordo com o rebanho e o número anual de bezerros, chegando até a mil metros quadrados. Uma fazenda de baixa produção amansava, anualmente, cem bezerros; uma grande, mil. Cercas eram feitas em aroeira, cedro, candeia, louro, jatobá, jacarandá, enfim, madeiras nobres que, então, eram abundantes. Junto aos vaqueiros livres trabalhavam escravos, homens e mulheres. Os de serviço trabalhavam nas diferentes atividades da fazenda: roçar, abrir picadas, destocar, semear, serviços domésticos, etc. Havia, contudo, escravos vaqueiros divididos, junto com os livres, por sua utilidade: vaqueiro cabeça de campo de gado ou vaqueiro cabeça de campo d’éguas. E também os curtidores e os serventes. Segundo os viajantes Spix e Martius, de passagem pelo Piauí, em 1820, para cada mil cabeças bastavam dez escravos. Casamentos ou uniões consensuais entre homens e mulheres escravos garantiam relativa estabilidade familiar nas fazendas de gado. Das crianças nascidas, a grande maioria era empurrada para o trabalho no campo desde cedo, e muitos meninos de sete anos aparecem nos documentos como pequenos vaqueiros. Outra característica da área de pecuária era o número elevado de escravos alforriados, sobretudo no século XIX.

O gado tinha várias funções: seu couro servia para o ensacamento da produção de fumo e embalagem de alimentos nas viagens ultramarinas, a fabricação de malas, bolsas, laços e redes. No engenho, os animais eram comumente usados para a lavragem das canas e para virar as pesadas rodas. Naqueles vastos territórios, quem tinha algumas reses era considerado pobre. Os animais eram utilizados até a exaustão. O gado alimentava vilas e cidades em Pernambuco e Bahia, mas também, via rio São Francisco, as populações que, no final do século XVII, se instalaram em Minas Gerais. A cidade de Juazeiro, na Bahia, por exemplo, ganhou esse nome pela quantidade de juás e tamarindeiros que abrigavam o gado na passagem do rio São Francisco. Era um antigo pouso de tropa. Fortunas imensas se constituíram na pecuária. Mas o mais importante é que o pequeno comércio de gado mantinha uma grande população de camaradas, vaqueiros, agregados, livres e forros ocupada e acumulando bens.

Tal como no Nordeste, a criação de gado, cem anos após o início da colonização, conquistou o Sul da Colônia. Nessa área, os jesuítas foram os principais responsáveis pela disseminação das reses. E o fizeram para alimentar os aldeamentos de catequese. Abatiam-se, com este propósito, milhares de reses por ano. Havia tanto gado pastando nos campos que qualquer estrangeiro tratava de registrar o fato em suas anotações: “rebanhos incontáveis de gado, inverno e verão”, como dizia o padre Antônio Sepp. Num sistema de trocas comerciais mantido com os paulistas, também permutavam reses por algodão, para vestir os índios das reduções. Nas épocas em que os preadores vindos de São Paulo abatiam-se sobre os aldeamentos, caçando indígenas, os jesuítas retaliavam abandonando seu gado à vida selvagem. A vacaria do mar, que se estende do litoral atlântico até o rio Uruguai, se formou, segundo um historiador, pela dispersão de centenas de vacas leiteiras, abandonadas pelos jesuítas em 1637. Tais vacarias multiplicaram-se e não poucas vezes foram atacadas pelos espanhóis em guerra com os portugueses. Amparados por soldados tapes, comedores de carne verde – termo referente ao gado recém- -abatido –, tais rebanhos foram alvo de constante cobiça. Em meio às tensões de suas metrópoles, lusos davam aos espanhóis licenças para vaquear. Muitos, porém, raramente se contentavam com sua cota, preferindo vagar por conta própria caçando gado.

O primeiro quartel do século XVIII encontrou as vacarias quase dizimadas. Prevenidos, os jesuítas deslocaram seu criatório para Pinhais, deixando seu gado intocado, em reprodução, por oito anos. Ao final, tinham centenas de milhares de cabeças, e nem os ataques de índios nem o consumo das missões diminuía esse ritmo de crescimento. Quando houve sua expulsão, em 1759, só na Estância Grande de Yapeyú, os inacianos possuíam mais de 500 mil cabeças de gado vacum, 4 mil cavalos e 70 mil ovelhas. Ao chegar, quinze ou vinte anos mais tarde, luso-brasileiros encontraram os campos repletos de gado. Iniciou-se, então, um processo de mão dupla: o Estado retomou os trabalhos das fazendas reais de Bojuru e Capão Comprido, existentes desde 1737, a fim de alimentar tropas e famílias de soldados que vinham concorrendo para povoar o Rio Grande. Durante a segunda metade do século XVIII, juntas, as duas fazendas chegaram a ter milhares de animais, mas a má administração logo pôs tudo a perder. A valorização do preço do couro promoveu uma verdadeira carniçaria; matavam-se milhares de animais, inclusive vacas prenhes e vitelinhas, para arrancar-lhes o precioso revestimento. Inúmeros vice-reis protestaram. Denúncias, como a feita por um certo Sebastião Francisco Betamio, em 1780, contra capatazes negligentes em relação à diminuição do rebanho, ou insensíveis aos maus-tratos impostos a vacas leiteiras e cavalos, somavam-se à necessidade de um regulamento sólido, como o que quis aplicar o vice-rei Luís de Vasconcellos. Tudo em vão. O Estado gastava uma fortuna para alimentar com carne e farinha os soldados e moradores de Sacramento, enquanto seus próprios criatórios se arruinavam, vítimas de roubos e descaso.

Na outra mão, ou seja, contrariando o processo de decadência, em várias áreas o rebanho se multiplicava. Nas estâncias, sobretudo as instaladas nas cercanias do rio Pardo, abrigavam-se moradores ricos e senhores de milhares de cabeças de gado. Currais constituídos por cercados de madeiras e gravetos, isolados nos pampas, funcionavam não como centro de engorda, mas de domesticação dos rebanhos. Impunha-se a lei da querência: as reses passando pelo rodeio, sujeitando-se à sua ação centralizadora e não mais se dispersando. A lança, o laço e a boleadeira, instrumentos de adestramento e captura dos animais, eram magnificamente manejados pelos grupos de solitários campeadores, conhecidos como bombeiros. O estancieiro, diferentemente do preador ou do traficante, era homem plantado em terra própria. Terra com casas grandes, pomares e campos de trigo. Invernadeiro, ele comprava gado do preador para vendê-lo ao comprador – com seus tropeiros e tropas – ou ao traficante, abrigado temporariamente sob tendas de couro. Esses dois grupos, pilhadores de cavalos e matadores de bois, por suas arriadas – roubo de gado –, eram o tormento das autoridades. Eram pejorativamente chamados de intrusos. Por outro lado, foi graças a eles que a planície platina foi varrida de espanhóis e índios. Em multidão surda e difusa, se espalhavam pelas fronteiras, empurrando-as. Estabelecidos em falsas querências com o fim único de revendê-las aos colonizadores, chegavam a apossar-se de pedaços das estâncias reais. Uma cultura singular nascia na Cisplatina: a valorização do cavalo bom, cantado em prosa e verso, a forma de arriar o pingo com ornamentos em prata, rosas, estrelas e corações, enfim, aperos para cabeçadas, testeiras e peitorais. O campeador gaúcho, o autêntico guasca, se caracteriza, então, por seu amor ao pago e à querência, o hábito da carneagem – esfolar a rês –, do churrasco, do mogango com leite, do sombreiro de feltro, das botas de couro com vistosas chilenas de prata, do agudo punhal de cabo floreado.

O contínuo movimento de comércio com os paulistas, iniciado no começo do século XVIII, tornava possível essa civilização gaúcha. Entre 1724 e 1726 – relata um historiador –, a importação paulista anual foi de mil muares, dobrando até 1750. Daí até 1780, passou a 5 mil e, de 1780 a 1800, dobrou mais uma vez. De 1826 a 1845, estava acima de 30 mil animais. Se os muares equivaliam a 49,8% dos animais drenados para São Paulo, os bois correspondiam a 28,2% das importações e os cavalos a 22%. Na outra ponta desse lucrativo comércio encontramos os tropeiros. Mas quem eram?

Basicamente, eram homens que viviam de tropear, ou seja, de comprar e vender diversos tipos de produtos. Podia ser gente do Nordeste ou do Sudeste. Enfocaremos, aqui, o papel dos tropeiros paulistas, responsáveis, junto com tropeiros mineiros, pelo enorme desenvolvimento da sociedade gaúcha. Denominavam-se paulistas os nativos da capitania, mas também portugueses e espanhóis que ali viviam. Os paulistas, dizia um cronista colonial, depois que lhes tiraram os terrenos auríferos, se voltaram em grande parte para o negócio e a criação de gados, aproveitando assim os muitos campos naturais da capitania e os feitais – campos feitos em detrimento da agricultura. Dedicaram-se também a comprar gados na capitania de São Pedro ou em Curitiba e, conduzindo-os por terra a essa capitania, vão vendê-las às outras. Tinham razão: os gados baianos que desciam o São Francisco não davam mais conta de alimentar as necessidades das populações nas áreas mineradoras. Além disso, o prodigioso desenvolvimento das correntes de circulação humana, durante o século XVIII, ensejava meios rápidos e abundantes de comunicação. Esses meios seriam cavalos e mulas. O problema de transporte desses grossos rebanhos foi assim resolvido: traziam as reses até Laguna e para galgar o paredão da Serra Geral, de maneira a oferecer-lhes o pasto que ia de Lages a Curitiba, abriram caminho acompanhando o rio Araranguá. O itinerário da cidade de São Paulo para o Continente do Viamão dá a medida da tremenda viagem das tropas: “Partiam de Sorocaba, seguiam na direção de Itapetininga, atravessavam o rio Itararé, tocavam em Ponta Grossa e nas proximidades de Curitiba e em seus campos povoados de currais; cortavam o vale do rio Negro, penetravam as florestas da serra do Espigão, entravam nas vastas regiões de Campos Novos Curitibanos e Lages. De lá, prosseguiam através dos rios das Canoas e das Caveiras até o estreito desfiladeiro do caudaloso Pelotas. Depois da garganta do Pelotas abriam-se os campos de Vacaria, na serra rio-grandense. Desciam cortando os rios das Antas e das Camisas até a verdejante planície do Guaíba. Por toda parte, de Sorocaba a Viamão, avistavam-se fazendas e currais de gado”.

Ao longo da estrada, pousos: pequenos núcleos de civilização e comércio. O milho, básico ao gado, era fonte de lucro. Aos domingos, um vigário rezava missa para locais e forasteiros. Nos ranchos – longos telheiros cobertos com varanda –, os tropeiros descarregavam, faziam-se fogueira e, num tripé à moda cigana, preparavam o de-comer: feijão com carne seca e angu de milho. A cachaça era usada em confraternizações ou como remédio. Grandes cestos ou bancos de madeira eram feitos de cama. Descarregados de seus fardos, os animais eram raspados com facão para tirar o pó e o suor. Prevalecia a regra da solidariedade: quem chegasse primeiro deixava lugar para as mulas de outras tropas, ajudando a descarregá-las quando necessário. Cargas eram arrumadas dentro do rancho com cuidados para não se misturar. As cangalhas secavam ao sol e eram depois empilhadas. Nas vendas encontrava-se um pouco de tudo para enfrentar a estrada: aguardente, doces, velas, livros de reza. Pelo chão, mantas de toucinho, pequenos barris de açúcar grosso e sal, espingardas e munição.

As mulas vindas do Sul eram comercializadas, grosso modo, na feira de Sorocaba. A dezoito léguas de São Paulo, a cidade foi o cenário das mais importantes feiras de muares dos séculos XVIII e XIX. Os animais partiam do Sul nos meses de chuva, quando as pastagens começam a verdejar. Uns preferiam vir direto, chegando entre janeiro e março, outros estacionavam nos campos de Lages, ao sul de Santa Catarina, para que os animais se refizessem. As tropas não eram trazidas para dentro da vila, estacionando nas imediações, nos currais dos campos d’El Rei. Tinha lugar para a engorda preparatória para a festa, além da domesticação dos burros, na qual os sorocabanos eram mestres. Uma escola de peões evoluiu junto com as feiras. Aprendia-se a domar mulas para a sela ou para a cangalha. No primeiro caso, exigia-se elegância no andar; no segundo, resistência e força. Junto aos animais, os peões e capatazes erguiam suas barracas. De dia, eram os exercícios de doma, a alimentação de milho e sal, o preparo de rédeas e correias. À noite, acendia-se o fogo, preparava-se o quentão, gemia a viola. Ali juntavam-se caboclos, peões e camaradas, nomes genéricos dos que não eram patrões. Os tropeiros iam para a cidade. Muito provavelmente detinham-se a examinar arreios e apetrechos que se vendiam nessas ocasiões: as sacadas, ou selas de madeira chapeadas a prata, facões, redes, ponchos, caronas de pele de onça e mantas sorocabanas. Pois é com essa aparatosa indumentária que Charles Landseer os pintou, orgulhosos e elegantes num rancho, em 1825. Seus lucros se perdiam em grossas apostas nas patas dos cavalos, pois não faltavam corridas nas raias de areia. Algumas ruas na saída da vila concentravam as “perdidas” nas casas de alcouce. Nelas, sexo, jogo e bebida se misturavam.

Uma vez vendidas, as mulas serviam para tudo. Carregavam gente, pedras ou produtos de subsistência, como cereais, carne, sal, açúcar. Portavam todos os instrumentos de trabalho utilizados na mineração ou nos engenhos. Levavam os produtos que, dos portos litorâneos, partiam para mercados no exterior: fumo, aguardente, açúcar, anil, algodão e, no início do século XIX, café. Transportavam pólvora e armamento e artigos de necessidade no cotidiano, como vestimentas, móveis, arreios, utensílios de casa. Levavam também artigos de luxo, como cravos – por assim dizer, o avô do piano – e livros franceses proibidos, por exemplo, os de Rousseau.

A importância econômica e social desse século sertanejo não deixa dúvidas. Sertanejos, guascas e tropeiros estiveram por trás do funcionamento de engenhos de açúcar, do desenvolvimento das atividades mineiras e do abastecimento do interior do Brasil. A circulação interna da Colônia, assim como o transporte de produtos e bens só podia ser feito em lombo de mula. O abastecimento de Minas e dos grupos militares estacionados no Sul dependia da carne bovina. A fazenda de gado do Nordeste criou uma massa de pequenos e médios proprietários. O mesmo se deu no Sul e no Sudeste. Aí, particularmente, essa gente alargou nossas fronteiras. Funcionando como uma verdadeira correia transmissora de negócios, valores e informações, tropas e tropeiros carregavam informações, cartas e recados, ligando as pessoas nos pontos mais diversos da Colônia. No século XVIII, as tropas de mulas foram responsáveis pela profunda animação que tomou conta do pequeno e do grande comércio, assim como da sociedade que começava a nascer nos sertões, antes tão ermos e tão longe do rei. Inúmeros registros dão conta da presença das tropas pelos caminhos. Em 1717, em viagem de São Paulo a Minas, o governador d. Pedro de Almeida observava ter cruzado com mais de mil animais em seu caminho, fora os oitocentos que vira arranchados em Guaratinguetá. Cem anos mais tarde, um cronista registrava tropas de cinquenta animais que viajavam, sem cessar, entre São João del-Rei e Rio de Janeiro. Em 1858, o tráfico entre Rio e São Paulo era feito no lombo de dezenas de milhares de bestas. A dívida do sertão em relação aos tropeiros estendeu-se até a chegada do trem na segunda metade do século XIX.

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Veja também:


Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

Notas:

  • [1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 54 a 60, Capítulo 8.
  • [2] Imagem disponível em: <https://www.resumoescolar.com.br/historia-do-brasil/pecuaria-no-brasil-colonial/>. Acesso em 28/09/2022.


04 outubro 2022

A Noite de São Bartolomeu

Qual a relação entre a religião e a política? Por que as pessoas fazem guerra em nome de sua religião, uma vez que – espera-se – as religiões pregam a paz?

Toda ação religiosa, se for coletiva, é, necessariamente, uma ação política também. E, no caso da França, como veremos, as guerras religiosas entre protestantes e católicos foram um somatório de interesses pelo poder, mais do que religiosos.

O fatídico casamento ocorrido na famosa Noite de São Bartolomeu, em 24 de agosto de 1572, representava apenas uma face do que foi a longa e sangrenta luta político-religiosa na França...

A Noite de São Bartolomeu, quadro de François Dubois (1529-1584)

 

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Acesse o texto completo em: A Noite de São Bartolomeu

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27 setembro 2022

Perto do Ouro e longe do Rei

Por

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]


O Ciclo do Ouro [2]

Entre fins do século XVII e início do XVIII, ocorreu o que um historiador denominou de o “ensimesmamento da América portuguesa”. A Colônia deu as costas ao litoral e começou a se entranhar sertões adentro. Com a queda do preço do açúcar, Bahia e Pernambuco não eram mais centros nevrálgicos, embora continuassem funcionando como relevantes eixos administrativos e sociais do decadente império português. Entre Olinda e Recife começam a aguçar-se as rivalidades entre a gente da terra e os reinóis. A tensão eclodiria em 1710 numa guerra civil. Enquanto no Nordeste se gestavam conflitos, nas serras e brenhas a oeste do litoral do Rio e de São Paulo ecoava o grito de “Ouro! Ouro!”. Paulistas, sertanejos do rio São Francisco e densa corrente imigratória vinda da metrópole começavam a ocupar os ermos sertões. Através de rios e córregos transformados em caminhos, homens em busca da mítica serra das esmeraldas subiam na direção do Nordeste, vasculhavam o vale do Amazonas e desciam a margem esquerda do rio da Prata. Começava sorrateiramente um dos capítulos mais emocionantes de nossa história. Vamos a ele.

Ao capitão Fernão Dias Paes escrevia, em 1664, o rei d. Afonso VI: “Eu, El Rei, vos envio muito saudar. Bem sei que não é necessário persuadir-vos a que concorrais de vossa parte com o que for necessário para o descobrimento das minas”. O monarca português rogava-lhe que devassasse os sertões do Paraná, Santa Catarina e do Rio Grande. Homens como Fernão Dias, posteriormente consagrados com exagero pela historiografia, eram muito familiarizados com os sertões. Seus antepassados já tinham se embrenhado nos matos do litoral em busca do ouro de lavagem. Alheios às exigências da Coroa, os paulistas pouco pagavam impostos e tentavam de todos os jeitos obstar o controle das autoridades sobre a mineração que praticavam. Na época em que Fernão Dias recebeu a carta real iniciou-se a rápida expansão em direção aos chapadões mineiros, goianos e mato-grossenses. De vilas e cidades como São Vicente, São Paulo e Taubaté, levas de homens começam a se deslocar em direção aos vales e serras mineiros, deixando para trás mulheres, velhos e crianças. As pequenas localidades mudavam de ritmo; os engenhos e lavouras entravam em hibernação. No comércio, no artesanato e na produção agrícola, mulheres começavam a substituí-los, tentando animar o resto de vida urbana que sobrara. Inúmeras delas ganhavam a vida e sustentavam famílias. Faziam de tudo: eram agricultoras, lavadeiras, costureiras, tintureiras, doceiras. Até a prostituição ajudava na luta pela sobrevivência.

Os bandos, organizados em bases militares, podendo ter de dez a centenas de homens, chamavam-se bandeiras. Neles se juntavam não apenas paulistas, mas estrangeiros, descontentes, desertores e fugitivos da justiça. “Espécie de bandidos e de gente libertina que vive sem governo”, no dizer de viajantes. Índios livres ou cativos eram largamente utilizados como batedores, guias, carregadores, coletores de alimentos ou guarda-costas. Longe da vistosa imagem que encontramos nas gravuras, os bandeirantes vestiam-se com um chapelão de abas largas, camisa e ceroulas. Às botas, preferiam sandálias indígenas ou caminhar descalços. Coletes de couro acolchoados, capazes de protegê-los das flechas mortíferas dos inimigos, eram a peça mais sofisticada da leve bagagem que portavam. O importante era carregar muitas armas, inclusive arcos e flechas, além de grãos, que, junto com a mandioca, eram sistematicamente plantados nas trilhas abertas.

Entre 1693 e 1695, faisqueiras mineiras foram encontradas, ao mesmo tempo, por variados grupos em trechos dos vales dos rios das Mortes e das Velhas. Para se chegar aí tomavam-se dois caminhos: o Geral do Sertão acompanhava o rio Paraíba do Sul, através da serra da Mantiqueira; o outro cobria a região norte do Rio Grande, onde afluentes desembocavam nas proximidades das terras minerais. Em poucos anos, foi aberto um atalho, entre o porto de Paraty e o alto da serra. Chamaram-no posteriormente Caminho Velho para distingui-lo do Caminho Novo. A primeira rota desembocava na trilha dos bandeirantes, que ia dar em Guaratinguetá, Pindamonhangaba, Taubaté e São Paulo. Esses vários trajetos eram árduos, pedregosos e íngremes, exigindo mulas bem treinadas e pernas fortes dos que as cavalgavam ou vinham a pé. Outra estrada corria paralela ao rio São Francisco, divisa entre as capitanias da Bahia e Pernambuco. O arraial de Mathias Cardoso recebia os viandantes provenientes do sertão baiano. Entrincheirados em suas faisqueiras, os paulistas olhavam com desconfiança os aventureiros que desembocavam de tais caminhos: “gente vaga e tumultuária, pela maior parte gente vil e pouco morigerada”, na descrição do governador-geral do Brasil, d. João de Lencastre.

Uma sombra pairava sobre as tão esperadas descobertas auríferas: a multidão de aventureiros que se espalhara por serras e grotões mostrava-se criminosa e desobediente aos ditames da Coroa ou da Igreja. Carregavam consigo tantos escravos que o preço da mão de obra começara a aumentar na Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro. Ao longo de dez anos, a tensão entre paulistas e forasteiros, entre autoridades e mineradores, só fazia aumentar. Todas as tentativas oficiais de controle falharam: de quase nada valendo a imposição de um passaporte ou o fechamento dos caminhos. Paralelamente a isso, o contrabando de ouro e a falta de alimentos cresciam. A fome espreitava, e não faltou quem morresse brigando pelo de-comer.

Em pouco mais de dez anos de colonização das áreas produtoras de ouro percebiam-se mudanças substantivas. Nas minas circulava um grupo que adquirira forte visibilidade: o dos emboabas, os não paulistas e, sobretudo, filhos de Portugal, gente que, anos antes, chegara paupérrima e conseguira entesourar cabedais. Tornaram-se, além de mineradores, mascates. Se os primeiros possuíam índios, carijós e tapuias para ajudá-los no trabalho, os segundos tinham escravos de origem africana. Tal como seus senhores, os cativos não se “bicavam”. Esgotadas as primeiras lavras de aluvião, uma mudança se impôs: o ouro que antes estava ao alcance da mão teria, a partir de então, que ser extraído do seio das montanhas. A nova modalidade de exploração custava caro. Os emboabas, todavia, estavam perfeitamente aparelhados para a empreitada. Comerciantes lusos estabelecidos no litoral davam cobertura às operações financeiras que a mudança exigia. O único obstáculo eram os privilégios paulistas. Uma carta régia de 1705 os aboliu, abrindo caminho para a ação dos emboabas. Até 1708, eles já dominavam duas das três zonas auríferas. Muitos paulistas, empobrecidos ou humilhados, retiraram-se para o distrito do Rio das Mortes ou buscaram sorte em aluviões distantes ou em currais de gado. Os que restaram, “faca no peito e pistola à cinta”, cercados por escravos mamelucos, afrontavam seus inimigos. Foi numa dessas demonstrações de guerra que teve início o confronto que ensanguentou os rios da região. Assassinatos, conflitos, um pequeno grupo de mamelucos esmagados no Capão da Traição, enfim, a situação fervia. Conta uma testemunha de época: “O negócio das Minas há muitos dias está parado; porque andam aqueles moradores com as armas nas mãos, divididos em duas facções, sendo capitão de uma delas, que são todos os que não são paulistas, um Manuel Nunes Viana, natural daquela vila e morador no sertão da Bahia. Este se acha com mais de três mil homens armados em campanha; é homem que leva consigo muita gente por ser muito rico, facinoroso e intrépido por cujas razões é o que introduz nas minas muitas e grandes tropas da Bahia para onde vai a maior parte do ouro que elas produzem contra as outras de Sua Majestade que Deus guarde, e com grande prejuízo de sua real fazenda porque não paga quintos. [...] O governador desta praça se resolveu passar aos sertões de Minas e ver se pode a sua pessoa sossegar aqueles moradores. Queira Deus que o consiga pelo muito que importa El Rei nosso senhor”.

Manuel Nunes Viana, homens armados e suas tropas... tais assuntos nos levam além de Minas. Enquanto nos flancos da serra do Espinhaço veios auríferos faziam crescer a população, aumentar o tráfico de escravos, diversificar as atividades econômicas e, consequentemente, as pressões da Metrópole sobre a Colônia, nos distantes sertões se escrevia outra história. Esta, como dizia um historiador, bem “longe do rei”. Uma vez consolidado o povoamento da costa, o movimento de colonização empurrava os homens para as vastidões internas do continente. Na busca de pedras preciosas, índios para apresar ou tocando preguiçosas manadas de boi, homens livres e escravos ocupavam efetivamente tais ermos, fazendo jus ao princípio romano do uti possidetis (“tudo o que tens ocupado”). Portugal passava, então, a ser dono do vasto sertão, e é para lá que vamos agora...

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Veja também:


Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

Notas:

[1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 50 a 53, Capítulo 7.

[2] O Ciclo do Ouro: “Os principais mecanismos de controle foram:
  • Quinto: 20% de toda a produção do ouro caberiam ao rei de Portugal;
  • Derrama: uma quota de aproximadamente 1.500 kg de ouro por ano que deveria ser atingida pela colônia, caso contrário, penhoravam-se os bens dos senhores de lavras;
  • Capitação: imposto pago pelo senhor de lavras por cada pessoa escravizada que trabalhava em seus lotes.” Imagem e texto disponíveis em: <https://www.todamateria.com.br/ciclo-do-ouro/>. Acesso em 27/09/2022.

26 setembro 2022

Quilombos e Quilombolas

Por

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]

Quilombo [2]


Ao percorrer o Brasil, o leitor encontrará nos estados de Mato Grosso, Maranhão, Bahia, Minas Gerais e até na Amazônia localidades chamadas Quilombo, Quilombinho ou Quilombola. Trata-se de comunidades originalmente constituídas por negros fugidos, instaladas, hoje, nas áreas onde houve luta e resistência contra a escravidão. Palmares foi o maior quilombo colonial, nascido no bojo das guerras do açúcar; e antes dele, contudo, movimentos de resistência já tinham se esboçado na própria África. Entre 1568 e 1573, por exemplo, a conhecida como Longa Marcha dos Jaga, que reuniu milhares de guerreiros, homens e mulheres, para lutar contra o invasor português, teve como pontos de apoio acampamentos fortificados denominados kilombos. Deles emanava uma forte organização política, religiosa e militar, capaz de agir em vastas regiões. Ao longo de suas expedições, invadiram e devastaram o Congo; seu objetivo era a destruição dos reinos aliados dos europeus. Na Guiné, atuaram com o mesmo propósito, os bijagós. Na América do Norte, Central e do Sul, os revoltosos intitulavam-se palenques, mambises, cumbes, saramakas, cimarrones, mocambolas ou quilombolas.

No Nordeste, desde os fins do século XVI, foram registradas fugas de escravos. Sabia-se, então, que os fugitivos se concentravam na área que se estendia entre o norte do curso inferior do rio São Francisco, em Alagoas, às vizinhanças do cabo São Agostinho, em Pernambuco. Tratava-se de uma região acidentada, coberta de mata tropical onde abundava a palmeira pindoba, daí o nome: Palmares. Em 1602, a primeira expedição punitiva, comandada por Bartolomeu Bezerra, tentou pôr um fim a esses ajuntamentos de fugidos. Em vão, pois, a partir de 1630, a desarticulação dos engenhos, graças às guerras do açúcar, acelerou o crescimento do quilombo. Nessa mesma década, na Bahia, os ajuntamentos de negros fugidos, localizados no Rio Vermelho e Itapicuru, também cresciam. Durante o tempo dos flamengos, quilombos menos importantes do que Palmares formaram-se também na Paraíba. Reunidos em Craúnas e Cumbe, os negros provocavam desordens, invadindo e queimando casas, incitando a fuga de outros cativos.

Entre 1644 e 1645, os holandeses, sob o comando de Rodolfo Baro e João Blaer, atacaram Palmares. Em 1671, o governador de Pernambuco, Fernão de Souza Coutinho, chegou a escrever para Portugal afirmando que os negros eram muito mais temidos do que os holandeses porque os moradores, “nas suas mesmas casas e engenhos, têm inimigos que podem os conquistar”. Como se vê, a percepção das tensões entre os grupos livres e escravos era evidente!

Gaspar Barléu, cronista e amigo de Nassau, deixou uma detalhada descrição da sociedade palmariana: “Há dois desses quilombos” – explica –,“o Palmares Grande e o Palmares Pequeno. Este (Palmares Pequeno) é escondido no meio das matas, às margens do rio Gungouí, afluente do célebre Paraíba. Distam da Alagoas vinte léguas, e da Paraíba, para o norte, seis. Conforme se diz, contam 6 mil habitantes, vivendo em choças numerosas, mas de construção ligeira, feitas de ramos de capim. Por trás dessas habitações há hortas e palmares. Imitam a religião dos portugueses, assim como seu modo de governar: àquela presidem os seus sacerdotes, e ao governo, os seus juízes. Qualquer escravo que leva de outro lugar um negro cativo fica alforriado; mas consideram-se emancipados todos quanto espontaneamente querem ser recebidos na sociedade. As produções da terra são os frutos das palmeiras, feijões, batatas-doces, mandioca, milho, cana-de-açúcar. Por outro lado, o rio setentrional das Alagoas fornece peixes com fartura. Deleitam-se os negros com carne de animais silvestres, por não terem a dos domésticos. Duas vezes por ano, faz- -se o plantio e a colheita do milho [...] O Palmares Grande, à raiz da serra Behé (serra da Barriga), dista trinta léguas de Santo Amaro. São habitados por cerca de 5 mil negros que se estabeleceram nos vales. Moram em casas esparsas, por eles construídas nas próprias entradas das matas, onde há portas escusas que, em casos duvidosos, lhes dão caminho, cortado através das brenhas, para fugirem e se esconderem. Cautos, examinam por vigias se o inimigo se aproxima”.

Na época em que Barléu fez sua descrição, os holandeses tramavam a invasão do quilombo. Chegaram a introduzir em Palmares Pequeno Bartolomeu Lintz, encarregado de conhecer seu modo de vida e, depois, atraiçoar os antigos companheiros. Sua aceitação entre os quilombolas significa que estes estavam acostumados com a convivência com outros grupos étnicos. Problemas de ordem política retardaram o ataque, só realizado em 1644. Tendo à frente Rodolfo Baro, a expedição reunia cem tapuias bem armados. Palmares Grande foi parcialmente destruído, a ferro e fogo, mas se recompôs com rapidez. Em 1675, contava com cerca de 10 mil habitantes, tendo sofrido, depois da expulsão dos holandeses, apenas escaramuças com bandos armados enviados por senhores de engenho.

Por essa época, as autoridades portuguesas puseram em funcionamento um plano de destruição sistemática de Palmares. Expedições anuais às aldeias e missões de reconhecimento visavam não apenas combater os rebeldes, como também impedir os contatos entre os negros fugidos e os colonos que os abasteciam de comida e armas. Entre 1670 e 1678, o quilombo foi governado por Ganga Zumba, ou o Grande Senhor, que vivia na cerca real do Macaco, erguida em 1642. Contra ele bateram-se Antônio Bezerra, Cristóvão Lins e Manoel Lopes. No ataque desfechado por este último, em 1675, a resistência fora organizada com grande brilho pelo sobrinho de Ganga Zumba, Zumbi. Seu nome em banto, nzumbi, referia-se ao seu provável papel de guerreiro e líder espiritual na comunidade. Em 1676 e 1677, novas expedições encontraram pela frente aldeias fortificadas que tinham sido queimadas e abandonadas, técnica, aliás, largamente empregada pelos rebeldes. Na última, chefiada por Fernão Carrilho, foram feitos prisioneiros dois filhos de Ganga Zumba. Logo após esse episódio, representantes de Palmares e portugueses se encontraram em Recife para celebrar a paz. Em troca da legalização das terras como sesmarias, Ganga Zumba prometeu devolver às autoridades os membros da comunidade que não houvessem nascido no quilombo. O desfecho, contudo, não agradou a alguns líderes quilombolas, entre os quais Zumbi, que foi, então, proclamado “rei”, ao passo que seu tio e ex-líder foi, em 1680, assassinado por envenenamento. Os quinze anos seguintes caracterizaram-se por combates violentos, enquanto inúmeros capitães tentavam, sem sucesso, dobrar os negros fugidos e seus aliados índios, brancos, cafuzos e mulatos. Ao explicar por que tinham conseguido expulsar os holandeses, fracassando, todavia, diante dos aquilombados, Carrilho dizia: “na guerra contra os flamengos pelejava-se contra homens”. Em Palmares, a luta era contra “o sofrimento”, “a fome do sertão”, “o inacessível dos montes”, “o impenetrável dos bosques” e “os brutos que os habitam”. Ele descrevia Palmares como “um bosque de tão excessiva grandeza [...] maior do que Portugal”, no interior do qual se podia viver seguro, sem “domicílio certo” para não ser descoberto. Ganhava aí a guerra do mato. A mesma que vencera os flamengos. Em 1685, o bandeirante paulista Domingos Jorge Velho pedia autorização para conquistar os indígenas da capitania de Pernambuco. Em vez de usá-lo contra os bugres, as autoridades decidiram lançá-lo contra Palmares. Afinal, dizia-se dos paulistas, na época, ser “gente bárbara e indômita que vive do que rouba”. Seriam bárbaros contra bárbaros; ladrões contra ladrões. Um acordo sobre o destino dos cativos e das terras palmarinas foi selado entre o governador João da Cunha Souto Maior e o bandeirante. O alvo era a destruição do quilombo que resistia havia cem anos. Como prêmio, Velho podia reivindicar os prisioneiros de guerra, fazendo jus à tradição da guerra justa (possuía-se o que se conquistasse em batalhas militares). Em fevereiro de 1694, depois de 42 dias sitiado, a cerca real do Macaco caiu. Milhares de quilombolas morreram, outros tantos foram capturados e vendidos para fora da capitania. Zumbi, que conseguira escapar, foi capturado no dia 20 de novembro de 1695; executado, teve a cabeça exposta em praça pública. Era uma advertência: escravos deviam obedecer, e não desafiar o sistema escravista.

Os invasores encontraram casas, ruas, capelas, estátuas, estábulos e até toscas construções, denominadas “palácios”; além das plantações mencionadas pelo cronista holandês, encontraram também fundições e oficinas. Os conhecimentos que os índios detinham sobre o fabrico de cerâmicas e redes, o processamento da mandioca e técnicas de pesca foram muito importantes para dar autonomia ao quilombo. Mas Palmares não foi único. Tampouco Zumbi.

Na época em que Palmares sucumbia, descobria-se ouro em Minas Gerais. A drenagem sistemática de escravos para trabalhar nas lavras provocou o mesmo tipo de resistência, e os quilombos começaram a se multiplicar na região. A reação das autoridades, familiarizadas com o problema, foi instantânea: multiplicação de alvarás, bandos e proibições combatiam esses perigosos ajuntamentos, assim como estimulavam a criação de uma tropa especializada, os capitães do mato, encarregados de perseguir os fugitivos. Os primeiros eram remunerados mediante a apresentação de provas: o quilombola recuperado ou sua cabeça decepada. Seu pagamento chamava-se tomadia. Uma prática comum nessa função foi a utilização de ex-escravos, pois eram conhecedores dos hábitos e dos comportamentos dos fugitivos. Por isso mesmo, tais agentes repressores nunca gozavam totalmente da confiança das autoridades. Houve capitães do mato que preferiam usar escravos capturados para ganho e uso próprio ou apresentar a cabeça de escravos que não eram fugitivos. Outros, mais bem-sucedidos, como o renomado mestre de campo Inácio Correia Pamplona, saíam-se bem na destruição de quilombos mineiros, ganhando por isso direitos sobre terras doadas pelas autoridades e sobre os escravos capturados. A recompensa pela caça ao negro fugido era a sesmaria.

Tal como em Palmares, esses quilombos tinham chefias. A correspondência dos governadores revela a existência de mocambos de “negros alevantados com reis que os governam” ou menciona “mulatos intitulados reis” com concubinas e filhos. Havia rainhas a quem também era rendida obediência. Muitos deixaram seu nome nos documentos de época: Bateiro, Cascalho ou Beiçudo. Os quilombos que comandavam podiam ser imensos, considerados “quase um reino”, caso do Ambrósio – próximo ao atual Triângulo Mineiro –, com mil negros adultos, além de mulheres e crianças. Os ajuntamentos de cativos fujões também podiam ser pequenos, anônimos, capazes de se desfazer antes da chegada de seus perseguidores. Era o caso daqueles que cresciam nas serras em torno da capital, Vila Rica. Outros tantos se espalhavam por Pitangui, Pedra Bonita, serra do Caraça, Campo Grande, etc. Os moradores reagiam com pavor à presença dos quilombolas: temiam saques, assaltos e depredações que, com o passar do tempo, poderiam se tornar corriqueiros. Petições eram encaminhadas às câmaras, alertando para a fuga de cativos e, sobretudo, para o fato de que os fugidos andavam armados, “ameaçando brancos e matando escravos destes que iam apanhar lenha e capim”. Temendo pelas vidas em perigo, autoridades tentavam controlar a situação brandindo punições – cortar a mão ou o tendão de Aquiles de quilombolas –, assim como sancionando proibições: venda de chumbo e pólvora a negros e mestiços. O controle sobre a ação dos quilombolas era tão ineficiente, que houve episódios em que eles, armados de mosquetes, pistolas e facas, bloquearam o tráfego de mercadorias em estradas importantes, encarecendo produtos ou fazendo-os desaparecer dos mercados. Mas por que uma ação tão sem barreiras? Em Minas Gerais do século XVIII, percebe-se com nitidez uma característica que se encontra em outras regiões do Brasil: a inserção dos quilombos na vida comunitária. Apesar das violências cometidas, os escravos fugidos costumavam conviver pacificamente com certos grupos sociais, prestando serviços, comprando suprimentos e fazendo escambo; no caso mineiro, diamantes e ouro contra alimentos e bens variados. Taberneiros e estalajadeiros, nas imediações de vilas e arraiais, aproveitavam para fornecer-lhes armas, e suas vendas eram os lugares ideais para informações sobre assaltos e roubos. O fruto era dividido entre uns e outros. Usando, enfim, dos mais variados expedientes, quilombolas tentavam ampliar sua rede de relações sociais e econômicas: negociavam, trocavam, vendiam, fazendo qualquer coisa para garantir sua autonomia e liberdade. Isso os colocava ao lado de outros tantos homens e mulheres destituídos de posses que, aos milhares, lutavam na Colônia contra as duras condições de vida que lhes eram impostas pela Metrópole.

Em Mato Grosso, onde se achou ouro em 1719, às margens do rio Coxipó, não faltaram escravos e, consequentemente, quilombos. Utilizados nos serviços da mineração, agricultura e pecuária, esses cativos também trabalhavam duro na construção de obras públicas. Os que se encontravam em regiões de fronteira, como Guaporé, eram estimulados pelas autoridades espanholas a fugir, pois, do outro lado da linha demarcatória, encontrariam a liberdade. Outra característica da resistência negra nessa região foi a aliança com os indígenas. Os quilombos de Quariterê, Sepotuba e Rio Manso abrigavam índios, negros e mestiços – os caburés – vivendo em harmonia. Entre os negros, havia libertos convivendo com fugidos. Como em toda parte, os quilombolas desenvolviam agricultura de subsistência, plantando milho, feijão, mandioca, amendoim, cará, banana e ananases. Decorrente de sua forma de organização, a produtividade alimentar dessas comunidades contrastava com a penúria de cidades importantes como Cuiabá, onde as crises de abastecimento eram frequentes. O elevado número de negros livres nessas regiões de fronteira dificultava a identificação de quilombolas. Em cidades como Crixás, Pilar, Tocantins ou Arraias, em cujos arredores instalaram-se quilombos, aproximadamente 70% da população era constituída por “pretos”. Somavam-se a tudo isso as características naturais de Goiás e o atual Tocantins, marcadas pela presença de densa malha fluvial – o Araguaia, o Tocantins e o Paranaíba do Sul e seus afluentes – que permitia não se deixar rastros das fugas em canoa. Chapadas e montanhas multiplicavam esconderijos, e a vegetação de cerrado complicava as buscas dos capitães do mato.

No Rio Grande do Sul também foram registrados quilombos. Nessa região, escravos contrabandeados da província espanhola de Sacramento faziam funcionar estâncias e charqueadas. Em época de abate de gado, o trabalho era estafante, mantendo-se os cativos ocupados graças ao rebenque do capataz e goles de aguardente. Topônimos como arroio do Quilombo ou ilha do Mocambo atestam a resistência a um regime que, nos finais do século XVIII, começa a dar mostras de impaciência com fugas e deserções. Multiplicam-se, então, editais para a contratação de capitães do mato capazes de deter “a multidão de escravos fugidos metidos em quilombos”. A Câmara de Porto Alegre registrava em sua ata de 2 de janeiro de 1793: “Nesta vereança [...] se mandou fazer uma marca F para marcar os escravos apanhados em quilombos, e assim mais um tronco, para o capitão do mato segurar os escravos que forem apanhados em quilombos, para neles se fazer a execução que a lei determina, antes de entrarem na cadeia”. Os fugidos agrupavam-se nas muitas ilhas fluviais dos rios e lagunas que banhavam a região. Na primeira metade do século XIX, a situação era de pânico. Não faltaram informes de autoridades sobre o terror em que viviam as populações: “dia a dia se aumentam os roubos, incêndios, assassinatos perpetrados pelos quilombolas, que ousada e astuciosamente têm aterrado os pacíficos moradores da serra dos Tapes e feito abandonar casas e lavouras, tendo-se perdido muitas colheitas de milho e feijão, que infalivelmente farão falta considerável no consumo da população desse município”. A queixa procedia, pois ataques a propriedades, ranchos e chácaras, lutas entre quilombolas e escravos, além de sequestros de mulheres, tinham se tornado correntes. Mesmo os pequenos proprietários negros não eram poupados.

No Rio de Janeiro, a situação não era diferente. Rios, como o Iguaçu e o Sarapuí, no recôncavo carioca, hidratavam engenhocas e engenhos, além de escoarem considerável produção agrícola voltada para o abastecimento da capital carioca. O encaminhamento de tais produtos fazia-se por essas verdadeiras estradas fluviais, cruzadas por barqueiros escravos, sob o comando de comerciantes. Pântanos, afluentes e meandros consistiam, por sua vez, numa segunda estrada, por onde hortaliças frescas e lenha abasteciam a cidade. E conduziam para a liberdade. Liberdade nos quilombos que infestavam a região de Iguaçu e que aparecem na documentação do início do século XIX sob várias denominações: do Iguassu, do Pilar, da Barra do Rio Sarapuí, do Bomba, da Estrela e do Gabriel. Nessa região, os aquilombados desenvolviam um ativo comércio de lenha e, graças aos serviços prestados e trocados com vendeiros, escravos remadores, libertos donos de embarcações, pequenos lavradores, fazendeiros e cativos de propriedades, mantinham sua autonomia. De suas roças de feijão, banana, batata-doce e cana enviavam, através dessa rede de contatos, produtos para abastecer pequenos mercados ou a mesa do grande proprietário de terras. Adquiriam, em troca, sal, pólvora para caçadas, aguardente e roupas. Os beneditinos, que mantinham um engenho em terras iguaçuanas, por exemplo, fechavam os olhos para as comunicações entre seus escravos e os aquilombados. A pesca abundante nos rios garantia-lhes ainda mais do que comer, vender e viver. O comércio era tão lucrativo que tornava os pequenos comerciantes e barqueiros seus aliados. A complexidade dessas organizações se evidencia no caso do quilombo do rio Moquim, no norte fluminense: cerca de trezentas pessoas mantinham enormes lavouras de milho, mandioca e feijão, criavam galinhas e porcos, possuíam uma ferraria para a construção de ferramentas de trabalho, além de oratórios e um cemitério. Seus moradores habitavam “senzalas arruadas” e as crianças ali nascidas eram batizadas por um padre pardo, foragido da justiça mineira.

Na Paraíba, destacaram-se as comunidades de negros fugidos denominadas Craúnas e Cumbe. Na Bahia, tais agrupamentos também não foram raros. Inseridos nas franjas dos centros urbanos, esses quilombos viviam um cotidiano marcado por negociações e conflitos. Como o do Orobó, o do Andaraí e o do Oitizeiro, instalados nas cercanias de Barra do Rio de Contas, e que deram algum trabalho às autoridades. Em fins do século XVII, também existiam mocambos instalados em Camamu, Cairu e Ilhéus, localizando-se numa área de mangues pouco policiada e despovoada; atacados por tropas de índios cariris – o hábito de atacar quilombos com índios mantinha-se desde o início de Palmares –, esses agrupamentos, nas vésperas de 1700, dispersaram-se.

E na distante Amazônia? Lá o escravo negro foi fortemente substituído pela escravidão e trabalho compulsório do indígena. As mais diversas leis, cartas régias ou bulas papais não evitaram a compra e venda clandestina de índios, comércio, diga-se, que beneficiava vários grupos. Transformados em trabalhadores de segunda classe, esses índios eram convertidos à força ao cristianismo, brutalmente explorados e “pagos” com cachaça ou quinquilharias. Os “salários” raramente chegavam às suas mãos. Agrupados em corporações, estavam sujeitos a castigos caso fugissem ou faltassem ao trabalho. À medida que se expandia tal regime, cresciam as formas de resistência. As fugas eram espetaculares: escapavam grupos de até oitenta indivíduos entre homens, mulheres e crianças. No século XVIII, a denominação amocambado começava a aparecer insistentemente nos documentos oficiais, que registram, para o período, gastos com soldados para a captura de fugitivos. Muitos moradores davam-lhes abrigo para poder, posteriormente, usá-los em próprio benefício ou fazê-los parceiros na luta pela sobrevivência. O roubo de canoas, instrumento de fuga mais comum, era constante.

Conforme podemos notar, várias regiões da Colônia conviveram com quilombos. Isolados como Palmares ou inseridos nas periferias das vilas e cidades, agressivos ou pacíficos, reunindo gente de diferentes etnias, cor e credo. O que lhes importava era resistir, e, para isso, a presença de laços de solidariedade ou de parentesco, assim como a vivência de práticas religiosas, foram muito importantes. Inúmeras pesquisas dão conta da presença de mulheres e crianças quilombolas, atestando assim a existência de ligações estáveis dentro da instabilidade que significava viver fugido. Brigas de faca, castigos exemplares, surras em mulheres infiéis comprovam a existência de regras e de valores no seio dessas comunidades. Fugas temporárias alimentavam os encontros entre os que viviam dentro e os que viviam fora do quilombo. Fugas transitórias permitiam aos cativos negociar com os senhores melhores condições de vida dentro do cativeiro. Laços de amizade ligavam comerciantes e aquilombados, permitindo aos últimos ter acesso a armas e alimentos ou a informações capazes de garantir-lhes a sobrevivência ante seus perseguidores. Como bem lembrou um historiador, embora em menor número, as mulheres quilombolas destacaram-se na manutenção material de suas comunidades, zelando pelo suprimento de alimentos, confeccionando roupas e utensílios para uso doméstico. Cabia-lhes cuidar de roças e de animais domésticos, assim como preparar a comida. Seu papel nas funções religiosas era preponderante: através de rituais ancestrais, fortaleciam o espírito combativo dos homens. Preparavam-lhes amuletos e banhos de ervas, ofereciam sacrifícios rituais e dominavam as propriedades das plantas medicinais capazes de debelar doenças e curar ferimentos. Acompanhavam os quilombolas em caçadas ou enfrentamentos com os temidos capitães do mato e, então, exerciam função de apoio ao conduzir pólvora e armamentos, assim como levando e trazendo recados.

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Veja também:


Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

 

Notas:

  • [1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 42 a 49. O título original do capítulo (6) é: Quilombos e Quilombas.
  • [2] Quilombos: “Estes locais eram conhecidos como quilombos. Nestas comunidades, eles viviam de acordo com sua cultura africana, plantando e produzindo em comunidade. Na época colonial, o Brasil chegou a ter centenas destas comunidades espalhadas, principalmente, pelos atuais estados da Bahia, Pernambuco, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais e Alagoas”. Imagem e texto disponíveis em: <https://www.sohistoria.com.br/ef2/culturaafro/p2.php>. Acesso em 26/09/2022.


23 setembro 2022

Engenhos, Escravos e Guerras

Por DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]


Engenho de açúcar no Brasil colonial [2]


O plantio e o trato da cana-de-açúcar significavam a possibilidade de participar ativamente na estrutura de poder colonial. Como era, porém, a vida social dos primeiros senhores de engenho? De que era feito seu cotidiano e que tipo de problemas enfrentavam? Se aceitarmos a opinião dos letrados da época, podemos afirmar que, apesar da aparência em contrário, mesmo os fazendeiros ricos alimentavam-se mal, comendo em excesso dura carne-seca. Só uma vez ou outra degustavam frutos. Mais raramente ainda legumes. A falta de boa comida era compensada pelos excessos de doces: goiabadas, marmeladas, doces de caju e mel de engenho e cocadas. Na passagem de um padre, abriam-se, com esforço, as despensas e matavam-se os animais de criação: patos, leitões e cabritos. Em Pernambuco, conta-nos um cronista, “escravos pescadores” eram, nessas ocasiões, encarregados de buscar “todo o gênero de pescado e marisco”. A abundância registrada em alguns engenhos não era a norma. Os que se davam ao luxo de mandar vir alimentos do Reino consumiam víveres malconservados. O senhor de engenho sofria com doenças do estômago, atribuídas pelos doutores da época não à precária alimentação, mas aos “maus ares” do trópico. A saúva, as enchentes ou a seca dificultavam ainda mais o suprimento de alimentos frescos. A sífilis marcava-lhes o corpo, deixando-o vincado com as suas chagas.
A maior parte dos engenhos aninhava-se na mata, não muito distante dos centros portuários, o que se explica pela maior fertilidade dos terrenos e pela abundância de lenha, necessária às fornalhas famintas, alimentadas por um trabalho, que às vezes ocupava o dia e a noite, de oito a nove meses, normalmente de julho/agosto de um ano a abril/maio do seguinte. E não deviam se afastar muito do litoral, sob pena de, sendo único o preço dos gêneros de exportação, não poder competir com os engenhos vizinhos aos portos, cujo produto não se amesquinhava com as despesas de transporte. Em Pernambuco, instalavam-se ao longo dos rios que se concentram na vertente do Atlântico do planalto da Borborema, na Zona da Mata, em que predominam arredondados morros e colinas. O corolário da terra era a água. Se a irrigação era desnecessária graças ao rico massapé, tanto o gado quanto as pessoas precisavam de água doce. Usavam-na também nos engenhos e trapiches, nas prensas e moinhos. Não à toa, a maior parte dos engenhos localizava-se à beira de rios como o Paraguaçu, o Jaguaribe e o Sergipe, na Bahia, e o Beberibe, o Jaboatão, o Una e o Serinhaém, em Pernambuco.
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No interior das verdadeiras fortalezas de adobe e taipa, que eram as casas-grandes, vigia a simplicidade e até o desconforto. O mobiliário era pobre e escasso: camas, baús, móveis e cabides. Todas peças toscas, feitas pelo carpinteiro do engenho. Alguns preferiam a doçura das redes, solução refrescante nas noites quentes. Varandas entaladas no meio da fachada principal e pequenos alpendres davam ao senhor de engenho a vista sobre sua terra, cana e gente. Pavimentos térreos, verdadeiros depósitos fechados, iluminados por pequenas frestas nas paredes, permitiam-lhe se defender melhor do inimigo. Não faltavam, contudo, observadores de época capazes de entusiasmar-se com a imponência do conjunto: engenho de água muito adornado de edifícios, engenho com grandes edifícios e uma igreja, engenho ornado de edifícios com uma ermida mui concertada e formosos canaviais, diria o cronista e senhor de engenho português Gabriel Soares de Sousa, descrevendo-os em 1587. À rigidez da casa opunha-se, em dias de festa, o exagero das vestimentas: “vestem-se, e as mulheres e os filhos de toda a sorte de veludos, damascos e outras sedas, e nisso tem muito excesso [...] os guiões e selas dos cavalos eram das mesmas sedas que iam vestidos”, comentava um enlevado Cardim, na fase de expansão canavieira. Os casamentos festejavam-se, segundo ele, com banquetes, touradas, jogos de canas e argolinhas e vinho de Portugal. Muitos batizavam seus engenhos com o nome de santos protetores: São Francisco, São Cosme e Damião, Santo Antônio. Outros tinham nomes africanos como Maçangana. Outros ainda lhes davam nomes de frutas e árvores: Pau-de-Sangue, Cajueiro-de-Baixo, Jenipapo.

No centro de sua família, o senhor de engenho devia irradiar autoridade, respeito e ação. Sob seu comando dobravam-se filhos, parentes pobres, irmãos, bastardos, afilhados, agregados e escravos. Uma esposa, às vezes bem mais jovem, movia-se a sua sombra. Ela vivia para gerar filhos, desenvolvendo também uma atividade doméstica – costura, doçaria, bordados – alternada com práticas de devoção piedosa. Na ausência do senhor, contudo, assumia as responsabilidades de trabalho com vigor igual ao do marido. Sua família era a formulação exterior de uma sociedade, mas não o domínio do prazer sexual. A possibilidade de se servirem de escravas criou no mundo dos senhores uma divisão racial do sexo. A esposa branca era a dona de casa, a mãe dos filhos. A indígena, e depois a negra e a mulata, o território do prazer.

Disputas pelo acesso à terra também marcaram a ocupação das terras açucareiras e não faltavam os que “infiltravam-se manhosa e furtivamente” – no entender de um observador, em 1635 – em terras virgens, na esperança de enriquecer graças à instalação de engenhos. O engenho de açúcar correspondia a uma estrutura extremamente complexa. Estrutura, diga-se, que se expandiu no Nordeste do Brasil na sua forma clássica, ou seja, associada às grandes plantações e ao trabalho escravo, nos séculos XVI e XVII, aproximadamente. Apesar de assentada em capitais de vulto, capazes de garantir a produção em larga escala, a empresa do açúcar contava igualmente com pequenos empreendedores que abasteciam o engenho com suas canas. Um relatório holandês de 1640 informa que somente 40% dos engenhos de Pernambuco moíam canas próprias, e os demais dependiam da matéria-prima fornecida por tais lavradores.

A empresa do açúcar não envolvia só senhores e escravos. Ela abrigava um grupo diversificado de trabalhadores especializados e agregados, que orbitavam em suas franjas, prestando serviços ao senhor de terras. Eram mestres de açúcar, purgadores, caixeiros, calafates, caldeireiros, carpinteiros, pedreiros, barqueiros, entre outros. A eles juntavam-se outros grupos a animar a vida econômica e social das áreas litorâneas: mercadores, roceiros, artesãos, lavradores de roças de subsistência e até mesmo desocupados e moradores de favor compunham uma complexa fragmentação de pequenos ou grandes proprietários. O número de escravos que possuíam (de apenas um a dezenas) permite inferir a diversidade de origens sociais e de situações econômicas. No século XVIII, com o declínio da atividade e o aumento das alforrias, alguns libertos tornaram-se, também, proprietários de partidos de cana.

No que exatamente consistia o engenho? Em outras coisas mais além das gigantescas rodas, movidas a água ou a tração animal, com que são representados nas gravuras dos viajantes. A preocupação com a técnica, por exemplo, era fundamental. A fase agrícola não exigia maiores investimentos pela excelência das terras nordestinas – o massapé –, evitando-se até o uso de arado e adubos. Uma vez plantada, a cana do tipo crioula é colhida após um ano e meio. A colheita se fazia rudimentarmente, com facão e foice. Respeitava-se, todavia, segundo conta o bandeirante João Peixoto Viegas, as “luas próprias”. A força da moenda determinava a produtividade na extração do caldo. Para fazê-la girar, água, bois e cavalos alternavam-se na preferência dos senhores de engenho. Herdadas dos mouros, as rodas d’água chegaram ao Brasil pela mão de habilidosos artesãos. Sempre na vertical, tinha o diâmetro de aproximadamente sete metros. Acoplada ao mesmo eixo da roda d’água havia uma outra roda menor, dentada, chamada rodete, que transmitia o movimento a uma roda maior, esta horizontal e com o mesmo diâmetro da roda d’água, que se chamava bolandeira. O eixo da bolandeira, revestido de um cilindro dentado e reforçado com aros de ferro, transmitia o movimento a dois outros cilindros paralelos, também dentados e reforçados. Era entre eles que se passava a cana.

O cozimento do caldo extraído na moenda era realizado em tachos de cobre pousados sobre um fogo de lenha. O calor no interior das casas de caldeira era vulcânico. Por isso escolhiam-se para esta tarefa escravos fortes e robustos: eram os caldeireiros e tacheiros. A cota diária dos primeiros era de processar três caldeiras e meio de caldos; a dos últimos, a quantidade necessária para preencher, ao fim da jornada de trabalho, de quatro a cinco formas de melado. Muito valorizado era o mestre de açúcar, cujo mister era “dar ponto às meladuras” ou “achar o pulso aos açúcares”. O cronista Fernão Cardim, em 1583, sobre ele escreveu: “tem necessidade cada engenho de feitor, carpinteiro, mestre de açúcar com outros oficiais que servem de o purificar; os mestres do açúcar são os senhores de engenhos, porque em sua mão está o rendimento e ter o engenho fama, pelo que são tratados com muitos mimos, e os senhores lhes dão mesa e cem mil-réis e outros mais, cada ano”. Muitos deles foram levados para as Antilhas, por holandeses, franceses e ingleses, quando esses instalaram ali seus engenhos. A purga ou purificação consistia em acondicionar o caldo cozido em formas cônicas de barro com um furo através do qual o melado escorria durante alguns dias. Tais formas assentavam-se sobre estrados de madeira, com orifícios próprios para acomodá-las. No interior desses pães – nome dado às formas –, o açúcar se depositava de acordo com o valor comercial. Na parte superior, o branco, mais caro e fino; na inferior, o mascavo. Para a fabricação de pães de açúcar, havia olarias nos engenhos. Depois de secos, os diferentes tipos de açúcares eram embalados para comercialização. Levados em caixas por transporte fluvial ou lombo de animais e carros de boi, chegavam até os portos de embarque. Muitos engenhos possuíam ainda destilarias para a produção de aguardente utilizada no escambo de escravos e banguês para a fabricação de rapadura. Seguiam-se oficinas, estrebarias e armazéns.

Quem plantava, colhia, botava a cana para moer, acondicionava e transportava o açúcar até o mar? O escravo: de início o indígena e depois o africano. Deve-se lembrar que desde o século XV, no Sul de Portugal e posteriormente nas ilhas do Norte da África, a escravidão de negros em associação com engenhos de açúcar era comum. Intensificou-se ao longo dos séculos XVI e XVII, graças ao tráfico para o Brasil. A importação de africanos cobria a falta de mão de obra, uma vez que as epidemias e a mortalidade ligadas ao trabalho forçado, associadas à fuga de tribos inteiras para o interior, acabaram por inviabilizar o trabalho cativo dos índios. Dizia o padre Anchieta que “os portugueses não têm índios amigos que os ajudem porque os destruíram todos”. Se, por um lado, a escravidão indígena durou até o século XVIII, no planalto paulistano, absorvido pela pequena produção de trigo para consumo interno, a percentagem de escravos índios envolvidos na produção do açúcar foi, por outro lado, baixando à medida que os senhores enriqueciam e podiam importar africanos. Isso começou a acontecer, principalmente na Bahia e em Pernambuco, a partir da segunda metade do século XVI.

Nas áreas rurais, as plantações drenavam escravos sem cessar. Submetidos a senhores e administradores, os cativos tinham que se integrar a uma divisão de trabalho bastante sofisticada. Na lista do engenho baiano Freguesia, encontramos escravos exercendo as funções de oficiais da casa de caldeira, purgadores, no serviço de enxada, como trabalhadores da casa de caldeira, do serviço de moenda ou da horta, como carreiros, carapinas, pedreiros, condutores de saveiros, costureiras, bordadeiras, lavadeiras, entre outros. Tratá-los como “coisa” era natural, regra, aliás, seguida pela Igreja Católica, que os possuía às centenas em seus conventos e propriedades. O castigo físico exagerado era, contudo, condenado. Todo o cuidado que lhes era dispensado devia ser entendido como zelo pelo capital que representavam. O jesuíta Antonil advertia os senhores de engenho: “Aos feitores, de nenhuma maneira se deve consentir o dar couces, principalmente nas barrigas das mulheres que andam pejadas [ou seja, grávidas], nem dar com paus nos escravos porque na cólera não se medem os golpes, e pode ferir na cabeça um escravo de muito préstimo, que vale muito dinheiro, e perdê-lo”. Mais eficiente seria dar “algumas varadas com cipó às costas”. Rações de farinha de mandioca ou milho, coquinhos chamados aquês, feijões e hortaliças compunham o cardápio alimentar dos moradores do engenho, e, por extensão, em maior ou menor quantidade, também, dos escravos. Carne de galinha era excepcionalmente servida aos doentes. Por outro lado, a aguardente, consumida como fonte de calorias, causava graves problemas de saúde. Junto à cachaça, a maconha, à época denominada fumo de Angola ou pango e trazida clandestinamente nos navios do tráfico, era utilizada para aliviar os sofrimentos do cativeiro. As roupas, por sua vez, eram raras. Não foram poucos os cronistas e viajantes a observar que os escravos cobriam-se, geralmente, com muito pouco. A Igreja admoestava os senhores para que evitassem trazê-los “indecentemente vestidos”, como se queixava o jesuíta Jorge Benci. As mulheres vestiam saia e blusa feitas com panos de Surrate ou baeta, e os homens usavam apenas calça, permanecendo sem camisa.

Os escravos distinguiam-se em boçais – como eram chamados os recém chegados da África – e ladinos, os já aculturados e que entendiam o português. Ambos os grupos de estrangeiros opunham-se aos crioulos, aqueles nascidos no Brasil. Havia distinções entre as nações africanas e, dada a miscigenação, a cor mais clara da pele era também fator de diferenciação. Aos crioulos e mulatos reservavam-se as tarefas domésticas, artesanais e de supervisão. Aos africanos, dava-se o trabalho mais árduo. Em contrapartida, muitos recebiam em usufruto parcelas de terra onde podiam cultivar, nos fins de semana e feriados, produtos agrícolas mais tarde revendidos. Tal comércio, por pequeno que fosse, permitiu a alguns comprar a própria liberdade. Não é raro se encontrar nos registros deixados por senhores de engenho as formas de pagamento utilizadas por seus escravos por conta de sua liberdade: ouro, prata e efeitos. Estes podiam ser valores negociáveis (créditos, por exemplo) advindos desse pequeno comércio. A liberdade também podia ser obtida graças às alforrias de pia concedidas em dias de batismo, ou outras, formalizadas nos testamentos do senhor. As tensões entre os grupos de homens de cor não eram pequenas. Não poucas vezes, os crioulos e mulatos antagonizavam com os negros africanos, a ponto de pedir a seus senhores que estes lhes passassem as piores tarefas. Em 1789, por exemplo, os escravos do senhor de engenho baiano Manuel da Silva Ferreira exigiam-lhe, durante um levante: “Para seu sustento, tenha lancha de pescarias e quando quiser comer mariscos, mande seus pretos Minas”.

Como se vê, a empresa do açúcar era complexa e envolvia terras, técnicas e homens. No século XVII, ia de vento em popa. Isso tudo era alvo de grande cobiça por parte dos holandeses. Sobretudo porque, durante a Unificação Ibérica (1580–1640), encontravam-se interditados de realizar negócios no Brasil. Afinal, a luta pela independência das Províncias Unidas era uma luta contra os Felipes espanhóis, o que, automaticamente, tornava os flamengos inimigos dos portugueses. Felipe II dera ordens expressas a respeito deste particular: “Nenhuma nau, nem navio estrangeiro” poderia comerciar em portos do Reino ou das Conquistas sem licença expressa e assinada pelo rei. Se, durante anos, holandeses comerciaram em nosso litoral, alguns deles tendo se tornado até senhores de engenhos – é o caso de Erasmo Schetz, que comprou em 1540, de Martim Afonso de Souza, um engenho em São Vicente –, agora viam a possibilidade de tomar conta da empresa do açúcar como um todo. E isso sem ter que pagar tarifas ou licenças à Coroa portuguesa (ou espanhola, a partir de 1580) e passando, além do mais, a controlar o refino e o comércio colonial do produto. A política restritiva da Coroa espanhola estimulava, portanto, uma reação, cristalizada na invasão de Olinda e Recife entre fevereiro e março de 1630. Começava aí uma contenda bélica entre duas potências europeias que eram também potências coloniais. A vantagem, segundo o relatório de um funcionário do Brasil holandês, é que não existia no Novo Mundo região mais fácil para conquistar do que a América portuguesa, bastando para isso ocupar dois ou três portos; na América espanhola seria indispensável ocupar extensas áreas.

Entre 1630 e 1632, os flamengos ficaram à mercê da guerra lenta: uma guerra feita de emboscadas e assaltos, levados a termo por esquadrões compostos por negros, índios e soldados da terra, que os mantinham nas praças fortes do litoral, mas que deixavam os engenhos e a produção de açúcar fora de seu alcance. Em 1635, a ajuda na forma de uma armada de socorro enviada pela Coroa foi desbaratada. Caiu a fortaleza de Nazaré, no cabo Santo Agostinho, e rendeu-se o arraial de Bom Jesus. Sobrou apenas uma pequena resistência em Porto Calvo, reunindo as colunas do índio Felipe Camarão e do negro Henrique Dias sob o comando do napolitano Bagnuolo. Soldado experiente, Bagnuolo mostrou-se sempre pessimista sobre o papel dos ataques volantes, chegando a queixar-se a Felipe IV: “não defender as praças e retirar-se para os matos é contra a reputação das armas de Vossa Majestade”. Temia ainda a precária ação dos soldados recrutados na Paraíba e em Pernambuco, que, uma vez tendo recebido o soldo, desapareciam nos matos. Previa, assim, o desfecho que teria essa primeira fase das guerras do açúcar. Enfraquecida pela Guerra de Trinta Anos (1618-48), que travava contra os protestantes, a Espanha, por meio do protegido de Felipe IV, o conde duque de Olivares enviou para a colônia minguados reforços. Lisboa pouco podia interferir, fazendo-se a resistência à custa e nas costas dos luso-brasileiros. Um mercenário inglês, Cuthbert Pudsey, assim resumiu a primeira fase da ocupação: “no começo, esta guerra no mato era algo estranho para nossos homens, devido às emboscadas que o inimigo propositadamente nos armava nas matas, invenção assassina que nos matava muitos soldados [...] tendo pago um alto preço, reforçamos nossas companhias com espingardas, tornando nossos homens peritos no uso delas, de modo que em breve tempo nos podemos vingar do inimigo, dispondo ademais de negros que conheciam bem o interior e que guiavam nossos passos”.

Preocupados em consolidar o domínio da terra e reconstruir a economia, os dirigentes da Companhia das Índias Ocidentais enviam para cá João Maurício, conde de Nassau-Siegen, com o título de governador-geral do Brasil. Ele chegou a Recife a 23 de janeiro de 1637, apressando-se em esmagar os últimos focos de resistência. Nassau veio com uma verdadeira corte, onde conviviam pintores como Franz Post e Albert Eckhout e sábios como George Markgraf e Wilhem Piso. Empenhou-se em transformar a vila, mandando construir dois palácios: o de Vrijburg, para a sede do governo, e o outro, o de Boa Vista, para sua residência. Entre os dois, ergueu a cidade nova de Maurícia, adornada com um jardim botânico e um museu, à época denominado gabinete de curiosidades. No Recife, a pequena aglomeração de 250 casas passou para aproximadamente 2 mil; aos antigos moradores misturaram-se os recém-chegados holandeses, comerciantes franceses, escoceses, dinamarqueses e ingleses que ali se estabeleceram. Na Paraíba, segundo o cronista holandês Gaspar Barléu, Nassau foi saudado por uma comitiva tapuia que lhe ofertou arcos, flechas e penas de ema, em sinal de paz e cortesia. Retribuiu-lhes com vestimentas de linho, camisas de mulher, facas, miçanga e anzóis. Mas, se as coisas pareciam ir bem com os indígenas, não o foram com os colonos. Dos engenhos existentes nas capitanias de Itamaracá, Paraíba e Rio Grande do Norte, quase a metade foi abandonada pelos proprietários, confiscada ou vendida pelo governo holandês entre 1637 e 1638. Os vazios criados pelo abandono dos engenhos foram preenchidos por holandeses, judeus e luso-brasileiros, graças ao financiamento providenciado pela Companhia. Criou-se, assim, um grupo de novos proprietários interessados no sucesso da empreitada flamenga. E entre os senhores que preferiram abandonar suas terras, os chamados retirados de Pernambuco, a maioria instalou-se entre a Bahia e o Rio de Janeiro, arrendando engenhos e dedicando-se às atividades agrícolas. Outros optaram por casar-se dentro de famílias abastadas, ingressando na burocracia ou na carreira militar. Houve, também, quem vivesse do aluguel dos seus muitos escravos, levados consigo na fuga.

Nuvens sombrias na economia anunciavam, contudo, uma mudança. O colapso do preço do açúcar na bolsa de mercadorias de Amsterdã entre 1642 e 1644 destruiu o otimismo que Nassau encorajara em sua verdejante Maurícia. Enquanto o recém-instalado governador-geral incentivava o financiamento e a melhoria dos engenhos, estimulando, entre outros aspectos, a implementação de uma política de livre comércio na qual a Companhia ficava restrita ao monopólio do pau-brasil, de escravos e de munição, na Europa, o açúcar se desvalorizava. Endividados com a compra de escravos, ferramentas e cobres, os senhores de engenho começaram a atrasar os pagamentos à Companhia. Na Metrópole, em resposta, comerciantes passaram a exigir de seus representantes e comissários importantes somas em pagamento do que lhes fora fornecido, provocando escassez de numerário. Para satisfazer o comércio da Metrópole, os negociantes recifenses passaram, por sua vez, a exigir satisfação dos mercadores do interior, que, por seu turno, executaram seus devedores luso-brasileiros. Com essa infernal cadeia de mazelas, seguiu-se a bancarrota. Em 1642, com Nassau ainda no comando, começaram a chover notícias sobre a ruína de comerciantes do Recife, ruína que empurrara para a falência grandes mercadores flamengos. O preço dos imóveis começou a cair, seguido da contração da venda de escravos e do tráfico marítimo. Para culminar, as ações da Companhia despencaram.

No plano político, outra cadeia, esta de fatos, ajudaria a precipitar a restauração de Pernambuco. Não nos esqueçamos de que, em 1640, d. João IV assumira o trono e que, com a perda dos territórios no Oriente, o Brasil ganhava importância. Enquanto isso, na Holanda, insatisfeitos com as despesas e prejuízos, os diretores da Companhia exigiram o retorno de Nassau. Ele regressou em 1644. No mesmo ano, uma conjura de pernambucanos foi abortada, mas nem por isso cessou a agitação contra o invasor. Forças luso-brasileiras fustigavam as fronteiras do território ocupado pelos holandeses, encorajando pequenas revoltas e guerrilhas. No ano seguinte, o Maranhão seria abandonado, e no Ceará a guarnição flamenga acabaria massacrada por índios bravios. Em 1645, rebentava a revolta de Pernambuco, que ganhou o conjunto dos territórios outrora ocupados pelos holandeses. As tropas de Hendrick van Haus foram batidas e os flamengos voltaram a refugiar-se nos portos.

A operação montada para apoiar os revoltosos foi comandada por um rico agricultor mulato, inicialmente aliado dos holandeses, mas desde 1644 bandeado para o lado luso-brasileiro. Tratava-se de João Fernandes Vieira. Essa revolta foi a de devedores que tinham dois objetivos: alegando sua participação na luta contra os flamengos, pretendiam livrar-se das dívidas que tinham acumulado e garantir a posse de engenhos cujos antigos senhores tinham se “retirado”. Engenhosos, não? Tropas regulares sob o comando do governador da Bahia, Antônio Telles da Silva, invadiram os territórios antes ocupados, somando aos seus os exércitos comandados por Felipe Camarão e Henrique Dias. Encontraram pela frente soldados enfraquecidos pela partida de seu chefe militar, Nassau, e desestimulados pelo atraso no pagamento de soldos. Multiplicavam-se as deserções. A guerra foi declarada em 1646. Duas batalhas campais, em Guararapes, selaram, entre 1648 e 1649, o destino dos holandeses.

Portugal resolveu intervir num momento em que os holandeses confrontavam a Inglaterra de Cromwell. Uma guerra iniciada em 1652 absorveria todas as forças, armas e esquadras das Províncias Unidas. Lá, não apenas discordâncias haviam enfraquecido a Companhia como um grupo de burgueses interessados na via pacífica ocupava o governo. E percebera-se, com rapidez, que o Brasil ocupado era pior negócio do que enquanto colônia portuguesa. Através do comércio com Portugal, muito ainda se poderia lucrar em terras de açúcar, pau-brasil e outros produtos. A Companhia do Brasil, recém-criada em Lisboa, armou uma esquadra que zarpou para o Recife. Em 26 de janeiro de 1654, pressionados por terra e mar, renderam-se os poucos pontos que os holandeses ainda mantinham no litoral. Em poucos dias, recuperou-se o Recife.

A resolução do conflito passou por interferência inglesa. Recém-reconduzido ao trono, em 1660, Carlos II Stuart casou-se com Catarina de Bragança. O tratado de paz firmado com a Holanda, em Breda, deixava a totalidade do Brasil a Portugal, mediante largas concessões no Oriente, uma importante indenização e a possibilidade para os flamengos de seguir fazendo comércio nas costas brasileiras. As Províncias Unidas, por sua vez, renunciavam a qualquer ambição territorial. As guerras do açúcar tiveram sérias consequências para o Nordeste. Em curto prazo, deixaram ruínas. Colheitas destruídas, gado capturado, escravos aquilombados. Foram necessárias dezenas de anos para que Pernambuco voltasse a integrar a empresa do açúcar. Em longo prazo, comerciantes judeus e agricultores holandeses transferiram para as Antilhas o conhecimento de técnicas agrícolas aprendidas no Brasil. A tendência foi acompanhada por franceses e ingleses, e a presença de um maior número de produtores no mercado mundial empurrou a economia da Colônia para uma grande crise, da qual só sairia com a descoberta de ouro em Minas Gerais.


Veja também:


Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.


Notas:

[1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010,pp., 33 a 41.

[2Em geral “Os engenhos coloniais possuíam uma grande estrutura, dividida em:

  • Plantações: além da cana-de-açúcar, haviam plantações (verduras, legumes e frutas) de outros produtos;
  • Casa Grande: era o local em que concentrava o poder dos engenhos…
  • Senzala: eram locais com péssimas condições que tinham como objetivo, abrigar pessoas escravizadas;
  • Capela: construída para representar a crença dos moradores do engenho, principalmente, dos portugueses. Local em que as missas e demais celebrações religiosas eram realizadas;
  • Casas de Trabalhadores Livres: locais em que os trabalhadores livres habitavam;
  • Curral: local que abrigava os animais;
  • Canavial: local em que era cultivada a cana-de-açúcar;
  • Moenda: local em que a cana-de-açúcar era moída pela tração animal, força humana ou moinho;
  • Casa das Caldeiras: local em que o produto era aquecido;
  • Casa das Fornalhas: local em que a cana era aquecida e transformada em melaço;
  • Casa de Purgar: local responsável por refinar o produto, o transformando em açúcar”. Texto e Imagem disponíveis em: <Engenho de Açúcar no Brasil Colonial >. Acesso em 22/09/2022.