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01 agosto 2022

Infância perdida: como a Romênia comunista destruiu uma geração inteira de crianças

Por Maurício Brum [1]

Milhares de crianças foram criadas em instituições estatais na
Romênia comunista comandada com mão de ferro
por Ceausescu [2].

Uma desastrosa intervenção do Estado Romeno na vida das famílias provocou uma tragédia pouco conhecida até hoje: milhares de crianças sem lar, desamparadas e vítimas de doenças como hepatite e Aids.

No início de 1990, pouco após o ditador romeno Nicolae Ceausescu ser deposto e executado em uma das tantas revoluções que varreram os regimes socialistas do Leste Europeu, o resto do mundo começou a conhecer a verdade sobre um dos países mais fechados do Leste Europeu.

Entre as revelações feitas na época, nenhuma chocou mais do que as imagens das centenas de orfanatos mantidos ao redor do país: um número estimado entre 100 mil e 170 mil crianças eram confinadas em instituições fétidas, com péssimas condições de saneamento e higiene, esquecidas pelo governo e praticamente sem contato humano. Muitas desenvolveram transtornos psicológicos e foram infectadas com doenças como hepatite B e Aids. Hoje, trinta anos mais tarde, os sobreviventes lutam por justiça.

Quando o ditador Nicolae Ceausescu assumiu o poder na Romênia, em 1965, seu país era pobre mesmo para os padrões da Europa Oriental. Tudo estava por ser feito naquele que era um dos estados mais obscuros do bloco socialista, e os planos grandiosos do novo líder para o futuro da nação envolviam promover um rápido crescimento populacional. Sua ideia, baseada nos projetos econômicos do stalinismo, parecia simples: quanto mais romenos jovens, mais mão de obra, mais produção — e, consequentemente, mais riqueza à disposição do Estado.

Não tardou para a Romênia se tornar, ao lado da Albânia, um dos países mais fechados de trás da Cortina de Ferro. Ao contrário de nações como a Polônia, a Hungria, a Tchecoslováquia ou a União Soviética, no caso romeno era raro haver, até mesmo, dissidentes famosos: o regime totalitário controlava a dissensão de maneira ainda mais sufocante do que os vizinhos, e ditava regras para todos os aspectos da vida cotidiana, inclusive questões íntimas como a reprodução e o tamanho “adequado” para as famílias romenas.

Para atingir mais facilmente suas metas econômicas, Ceausescu implementou o Decreto 770 logo em seus primeiros tempos de governo: a nova lei estabelecia regras e punições para desestimular os cidadãos a terem famílias pequenas. O ditador instituiu uma multa de até 30% sobre o salário de casais acima de 25 anos que não tivessem filhos. As cirurgias esterilizadoras foram proibidas para as mulheres de menos de 40 anos (e, mais tarde, 45 anos) que não tivessem pelo menos cinco crianças em casa. Outra lei da época determinou que os homossexuais, quando descobertos pela Securitate, a polícia secreta, seriam punidos ainda mais duramente do que antes: o “crime” rendia até cinco anos na cadeia e, com frequência, os presos eram mortos antes de recuperar a liberdade. A ordem do dia era garantir que nenhum lar da Romênia ficasse sem filhos.

A lei surtiu efeitos imediatos: já no primeiro ano após o decreto, a taxa de natalidade cresceu cerca de 13% no país. O “baby boom” romeno, que se seguiu pela década seguinte, fez com que as crianças nascidas nesse período recebessem o apelido de “decretei”, os “filhos do decreto”.

Com o tempo, porém, as mulheres que não queriam mais crianças passaram a utilizar métodos clandestinos para evitar ou interromper a gravidez — pílulas abortivas, por exemplo, começaram a ser contrabandeadas para o país e, embora vendidas ilegalmente e a preços altíssimos, chegaram às mãos de muitas romenas. Famílias influentes também contavam com as vistas grossas das autoridades. Segundo a Human Rights Watch, estimava-se ainda que o número de mortes relacionadas a abortos havia aumentado em até 600% nos anos imediatamente seguintes à lei.

Foi assim que, nos anos 80, quando o crescimento da população voltou a esfriar, Ceausescu aprofundou sua política de controle: em 1985, criou também os “Corpos de Comando Demográfico”, grupos médicos que ganharam o apelido de “polícia da menstruação” — ginecologistas enviados pelo governo faziam exames trimestrais nas mulheres, em seus locais de trabalho, para detectar gestações antes que elas fossem interrompidas. As grávidas que não viessem a dar à luz, por qualquer razão, eram investigadas pelo Estado e podiam ser presas.

Após o Decreto 770, os orfanatos romenos passaram a exercer uma função distinta daquela para a qual haviam surgido. Agora, em vez de atenderem principalmente a crianças que haviam perdido os pais, tornaram-se também repositórios de jovens oriundos de famílias sem condições de arcar com tantos filhos em casa. O próprio Estado estimulava essa decisão, com a propaganda governamental garantindo que as crianças seriam bem cuidadas e preparadas para a vida adulta. De fato, nos primeiros anos os “decretei” destinados aos orfanatos não sofreram tanto quanto aqueles nascidos nas décadas seguintes — apesar de estarem longe da qualidade anunciada pelo regime de Ceausescu, as instituições dispunham de recursos suficientes para operar dentro de um certo padrão.

A partir de 1982, no entanto, quando o governo iniciou sua tentativa de pagar a astronômica dívida externa da Romênia, grande parte dos serviços públicos começou a enfrentar uma constante falta de verbas — e manter os orfanatos funcionando adequadamente passou a ser uma das últimas prioridades.

No final dos anos 1980, às vésperas da derrubada do ditador, faltavam alimentos, roupas e remédios para os orfanatos. Dentro e fora das instituições, também haviam se tornado comuns os cortes no fornecimento de água e energia elétrica. Com o país inteiro na penúria, o pouco que chegava para suprir as crianças era rotineiramente furtado pelos funcionários, segundo relataram os sobreviventes dos orfanatos, anos mais tarde. Em 1989, o orçamento diário destinado a um orfanato romeno era inferior a dois centavos de dólar por criança (ou 14 lei, o valor na desvalorizada moeda local).

Os protocolos do governo também deixaram de ser seguidos à risca. Originalmente, as crianças ficavam em uma instituição até os três anos de idade e, após isso, transferidas para outra, onde ficavam até completar o sexto aniversário. Finalmente, elas passavam por uma avaliação física e psiquiátrica: as consideradas “normais” seguiam em instituições mantidas pelo Ministério da Educação, enquanto aquelas tachadas de “irrecuperáveis” ou “improdutivas” (em razão de alguma deficiência ou dificuldade de aprendizado) eram entregues a órgãos ligados, ironicamente, ao Ministério do Trabalho.

Diante da falta de recursos, os já controversos critérios foram afrouxados — as crianças agora eram destinadas ao prédio que tivesse espaço para recebê-las, independentemente da filosofia seguida ali. De modo geral, as práticas se tornaram parecidas: os responsáveis pelos orfanatos eram orientados a não conversar com as crianças e a não responder se estivessem chorando. O objetivo, alegavam os especialistas do governo, era “acostumá-las” a não depender de alguém, já que havia poucos funcionários para dar atenção a todas.

As crianças não eram abraçadas, não participavam de brincadeiras e não recebiam qualquer estímulo emocional. Em geral, eram apenas alimentadas e limpas. Nas instituições para “irrecuperáveis”, como Cighid, perto da fronteira com a Hungria, nem isso: a falta de atenção e higiene chegava a provocar taxas de mortalidade de até 50% em um único ano.

O brutal regime de Nicolae Ceausescu chegou a um fim abrupto em dezembro de 1989. Com a queda do Muro de Berlim servindo de exemplo aos movimentos que cobravam o fim dos regimes socialistas, Ceausescu se viu encurralado: cada vez mais impopular em função de duas décadas de desmandos e perdendo o controle de seus subordinados mais próximos diante das pressões econômicas, o ditador tentou fugir em 22 de dezembro, após uma série de protestos tomarem as ruas de Bucareste.

Ceausescu e a esposa, Elena, foram capturados três dias mais tarde, julgados sumariamente por um tribunal montado pelo novo governo provisório, e condenados por crimes de genocídio e acúmulo ilícito de riquezas — antes que a noite de Natal terminasse, os dois haviam sido executados por um pelotão de fuzilamento. O fim da ditadura comunista na Romênia não trouxe mudanças imediatas ao país: muitos membros da Securitate se beneficiaram da desestatização da economia, assumindo o controle de importantes setores e se tornando oligarcas aos moldes russos — reformas mais profundas só começariam a aparecer em 1997, após a eleição de um opositor para o governo.

Ainda assim, apesar da lenta transição, a vontade do novo governo de se diferenciar dos dias de Ceausescu fez com que já no início dos anos 90 a Romênia se abrisse para o Ocidente, denunciando os horrores do regime anterior. As cenas que mais chocaram o resto do mundo foram aquelas gravadas no interior dos orfanatos, cuja realidade havia sido tornada pública pela primeira vez, dentro e fora do país.

As duas coisas que eu lembro mais vividamente, e que vão ficar comigo para sempre: o cheiro de urina e o silêncio de tantas crianças”, relatou o britânico Bob Graham, repórter do Daily Mail que esteve entre os primeiros estrangeiros a visitar uma instituição romena em janeiro de 1990, em entrevista ao GlobalPost.

Normalmente quando se entra em uma sala cheia de berços com crianças dentro, a expectativa é de barulho, conversa ou choro, às vezes um choramingo. Não havia coisa alguma, mesmo com as crianças acordadas. Elas deitavam em seus berços, às vezes duas ou três em uma mesma cama, e ficavam olhando. Em silêncio. Era assustador, quase sinistro”.

As câmeras internacionais mostraram uma fração da realidade vivida diariamente nos orfanatos de Ceausescu: crianças vestidas com roupas parecidas, que às vezes não lhes serviam direito, com frequência sujas, sempre com o mesmo corte de cabelo – muito curto, independentemente do gênero, para evitar piolhos.

Quando um visitante entrava nos salões, as crianças corriam para abraçá-lo. Era a “afabilidade indiscriminada”, assim descrita pelo neurocientista David Eagleman em “Cérebro: uma biografia”: “Embora esse tipo de comportamento indiscriminado pareça meigo à primeira vista, é uma estratégia que crianças negligenciadas usam para lidar com essa situação e está ligada a problemas de apego de longo prazo”.

O choque causado pelas imagens provocou uma onda de adoções de crianças romenas por famílias da Europa Ocidental, dos Estados Unidos e do Canadá. Nos quase trinta anos desde então, acompanhadas por psicólogos, seu crescimento e desenvolvimento foram estudados — e ajudaram a compreender a importância dos anos iniciais e a forma como eles se refletem na vida adulta. 

As péssimas condições das instituições romenas deixaram muitas crianças com sequelas físicas e psicológicas que repercutem ainda hoje. Charles Nelson, médico do Hospital Infantil de Boston, avaliou 136 crianças em Bucareste: após submetê-las a exames de eletroencefalografia, viu que sua atividade neural era muito reduzida — o QI daqueles internados oscilava entre 60 e 70, quando a média para a sua faixa etária batia nos 100 pontos.

Outro levantamento, que incluiu crianças adotadas por famílias no Reino Unido, mostrou que, embora o nível de QI geralmente voltasse ao normal ao longo dos anos, esses jovens ainda tinham mais dificuldades de sociabilidade — apresentando, por exemplo, maiores taxas de desemprego do que crianças adotadas que não haviam passado pelos orfanatos de Ceausescu. 

Ainda nos anos 1990, a neurobióloga Mary Carlson e o marido, o psiquiatra Felton Earls, ambos de Harvard, também investigaram a situação das crianças internadas nas instituições que, naquele momento, não haviam mudado muito. Seu estudo se centrou no cortisol, o chamado hormônio do estresse, e mostrou que as crianças possuíam níveis completamente fora dos padrões para a sua idade: nelas, o pico de cortisol acontecia no meio da tarde e seguia alto até à noite.

O cortisol ajuda a nos manter preparados para situações de perigo mas, em excesso, tem efeitos profundos sobre o cérebro: pode reduzir a capacidade de memória e causar sintomas de depressão e a síndrome de estresse pós-traumático.

Graças aos efeitos de uma criação sem laços humanos, muitos romenos acreditavam que os órfãos do país eram utilizados nas fileiras da Securitate. Para Mary Carlson, a hipótese era plausível: “eles eram ótimos membros para a polícia secreta”, disse, em uma entrevista à Harvard Magazine. “Como elas não têm qualquer senso de lealdade social, perdem as emoções sociais básicas”. Outro drama que afligiu aqueles crescidos nos orfanatos romenos foi uma chocante epidemia de Aids. Para driblar a falta de alimentos, era comum que as enfermeiras de muitas instituições aplicassem microtransfusões nas crianças sob seus cuidados: injetando sangue que não havia sido devidamente testado para doenças e reutilizando seringas não esterilizadas, vírus como o HIV e o HBV (da hepatite B) foram disseminados para orfanatos inteiros.

No início dos anos 90, incríveis 94% dos casos de Aids na Romênia afetavam crianças menores de 13 anos. Na virada do século, o país respondia por 60% das infecções por HIV em toda a Europa, a maioria afetando crianças contaminadas por transfusões.

A situação dos orfanatos romenos começou a mudar drasticamente nos anos 2000, quando o país buscou a entrada na União Europeia e uma das exigências do bloco era a revisão completa do sistema de atenção aos menores desacompanhados na Romênia.

Desde então, o governo estabeleceu um programa nacional para substituir as grandes instituições do passado por um sistema de adoção temporária em casas de família ou em pequenos orfanatos, muito menores que os antigos.

Também se tornou ilegal para as famílias abandonarem suas crianças em instituições estatais antes de o bebê completar dois anos de idade, salvo em caso de deficiências graves. Além disso, as políticas draconianas exigindo um número mínimo de filhos por casal foram imediatamente suspensas com o fim da ditadura.

Como resultado das políticas adotadas após a Revolução de 1989, o número de crianças institucionalizadas, superior a 100 mil no fim do regime de Ceausescu, havia baixado para 8 mil em 2016. A Romênia também prometeu acabar inteiramente com os orfanatos estruturados à moda antiga até 2022. Embora ainda seja proporcionalmente o país mais pobre da União Europeia (os romenos entraram no bloco onze anos atrás), a economia do país tem passado por um ciclo de crescimento acelerado nos últimos anos. Com a mudança no perfil socioeconômico da população, despencou a necessidade artificial por orfanatos causada na época do Decreto 770.

Muitos dos jovens que cresceram nas instituições estatais e não foram adotados, porém, hoje vivem na indigência, marginalizados dentro da sociedade romena. Desde 2014, a Federeii, uma organização formada pelos “órfãos” de Ceausescu, busca chamar atenção para o problema dos “decretei”. Hoje adultos entre 30 e 40 anos de idade, eles cobram do governo atual políticas de reparação e indenizações pelos danos sofridos ainda na infância.


Referência bibliográfica:

  • BRUM, Maurício. Infância perdida: como a Romênia comunista destruiu uma geração inteira de crianças. In: As atrocidades do comunismo que você não aprendeu na escola – Ebook, pp. 46-59. Gazeta do Povo. Acesso em: 1º/08/2022.

Notas:

  • [1BRUM, Maurício. Infância perdida: como a Romênia comunista destruiu uma geração inteira de crianças (Vide Referência bibliográfica).

29 julho 2022

Trofim Lysenko: o pseudocientista que matou milhões de fome com o apoio de Stalin e Mao

Por Tiago Cordeiro [1]


Com o apoio explícito de Stalin, Lysenko eliminou seus
adversários e implementou um programa de reforma
agrícola desastroso [2]

Lysenko, para quem a genética era uma “pseudociência burguesa”, eliminou seus adversários e implementou um programa de reforma agrícola desastroso, que seria posteriormente exportado para a China.

Selecione um jovem do povo, sem pesquisas acadêmicas relevantes, para conduzir o departamento de genética de um país inteiro de 170 milhões de habitantes. Permita que ele desenvolva um raciocínio pseudocientífico, sem nenhuma base em fatos. Mande para campos de trabalho forçado e manicômios os pesquisadores que discordarem dele.

Na sequência, com base nos conceitos desse jovem do povo, force uma mudança nos métodos centenários de plantio. Exporte esses métodos para um país vizinho, com 550 milhões de habitantes, também controlado por uma ditadura. E pronto: você tem a receita para matar de fome milhões de pessoas — só na China, foram 35 a 45 milhões de vítimas. O jovem em questão foi Trofim Denisovich Lysenko. Nascido em 1898, na atual Ucrânia, ele se tornou diretor do Instituto de Genética da Academia de Ciências da União Soviética em 1940, mas suas ideias já vinham sendo implementadas ao longo da década anterior.

Com o apoio explícito de Josef Stalin, Lysenko eliminou seus adversários e implementou um programa de reforma agrícola desastroso, que seria posteriormente exportado para a China de Mao Tsé-Tung.

Filho de camponeses, analfabeto até os 13 anos, Lysenko estudou no Instituto de Agricultura de Kiev, onde começou a pesquisar os efeitos das variações de temperatura sobre os ciclos das plantas. Seu objetivo era permitir que o trigo que costumava ser plantado na primavera resistisse ao inverno, de forma a garantir a produção de alimentos ao longo do ano inteiro. Seus primeiros estudos chamaram a atenção de outro pesquisador mais experiente, Nikolai Vavilov, que decidiu orientar os trabalhos de Lysenko.

Em 1928, o aluno veio a público com a promessa de que havia encontrado, sozinho, uma forma de implementar o plantio de diferentes plantas em qualquer estação do ano. Lysenko passou a defender que uma série de técnicas, somadas, eram mais eficazes do que as recombinações genéticas que vinham sendo testadas por agrônomos do mundo inteiro, com base na redescoberta dos trabalhos do frei Gregor Mendel.

Mendel, nascido em 1822 e falecido em 1844, deixou escritos que, no século 20, influenciariam o campo da genética e suas aplicações práticas para uma série de atividades, incluindo a agricultura.

O agrônomo preferia utilizar métodos que, na prática, reduziam a produtividade das plantas, como o uso excessivo de enxertos e a exposição de sementes a baixas temperaturas antes do plantio. Em outras palavras, ele recusava os avanços apresentados por Mendel em nome da noção definida pelo naturalista francês Jean-Baptiste Lamarck, morto em 1829, que defendia que as características adquiridas durante a vida eram repassadas para as gerações futuras.

Para Lysenko, a genética era uma “pseudociência burguesa”, porque ia contra os princípios marxistas-leninistas de que as leis que regem a história são universais e imutáveis.

Nisso, ele contava com o apoio de Stalin. “Stalin detestava a genética. Ele dizia não acreditar na genética como era estudada no Ocidente, pois a considerava uma ciência burguesa, que não estaria de acordo com o materialismo dialético. Não por acaso, ele autorizou seu verdugo científico, Trofim Lysenko, a tornar a genética mendeliana ilegal na URSS”, afirma Daniel Fernandes, professor de história, coordenador editorial da editora Arcádia e organizador do livro O elogio do conservadorismo e outros escritos.

Alguns dos métodos do pesquisador, como o de resfriar ou aquecer as sementes para que elas ficassem preparadas para solos adversos, já eram conhecidos na Europa desde o século 19, e eram considerados limitados pelos produtores rurais. Outros, como a recomendação de plantar as sementes mais próximas entre si, duas a duas, para que uma desse suporte à outra, simplesmente não funcionavam.

Ao longo da década de 1930, enquanto a União Soviética provocava uma grande crise de abastecimento na Ucrânia que levaria ao Holodomor (veja o capítulo 3), a coletivização da produção agrícola soviética era implementada seguindo práticas preconizadas por Lysenko, que passou a ganhar amplo espaço junto a Stalin.

Foi também por influência do agrônomo que o ditador proibiu o uso de qualquer tipo de herbicida e fertilizante na agricultura soviética, sob a alegação de que as plantas seriam capazes de aprender sozinhas a se fortalecer e se defender de pragas.

Em 1935, o agrônomo discursou no Kremlin, alegando que os pesquisadores que se apegavam à genética eram semelhantes aos fazendeiros que resistiam a ceder suas terras ao Estado. Ao fim de sua fala, Stalin, que estava presente, se levantou e aplaudiu, gritando: “Bravo, camarada Lysenko, Bravo!”.

Em 1948, Lysenko conseguiu que a Academia de Ciências Agrícolas da União Soviética, que ele mesmo presidia desde 1938, declarasse que sua teoria era a única correta, e que qualquer pesquisa que questionasse o chamado Lysenkoísmo deveria ser renegada. “A influência de Lysenko foi tão grande que qualquer referência aos cromossomos foi banida dos livros didáticos”, diz Daniel Fernandes.

Na mesma época, o americano Norman Bourlaug iniciava a chamada Revolução Verde, que salvou da fome mais de 1 bilhão de pessoas. Os efeitos da adoção do pensamento de Lysenko foram catastróficos. Mais de 3 mil pesquisadores foram presos e levados para gulags ou manicômios.

Nikolai Vavilov, o antigo professor de Lysenko, e primeiro presidente da Academia de Ciências Agrícolas da União Soviética, recusou-se a abrir mão de suas pesquisas.

Vavilov havia viajado para 64 países, incluindo o Brasil (onde esteve entre dezembro de 1932 e janeiro de 1933), coletando sementes e desenvolvendo técnicas de plantio com base na observação das variedades que encontrou em todo o planeta. Acabou preso em 1940, acusado de provocar a escassez de alimentos que era, na verdade, resultado da política de Lysenko.

Depois de passar a vida buscando soluções para melhorar a produtividade do plantio, Vavilov morreu de fome em um campo de trabalho forçado, em 1943. Seu trabalho pioneiro, que indicou que todas as maiores variações genéticas de uma determinada espécie de planta são encontradas nos locais onde ela se desenvolveu pela primeira vez, ainda hoje funciona como referência para pesquisadores do mundo todo.

Como escreveu em 2001 o geneticista russo Valery N. Soyfer, no artigo “The consequences of political dictatorship for Russian science [As consequências da ditadura política para a ciência russa]”, “os líderes comunistas promoveram Trofim Lysenko e impuseram o banimento da prática e do ensino da genética, condenada como ‘perversão burguesa’. A ciência russa, que havia florescido no início do século, sofreu um rápido declínio, e muitas descobertas científicas valiosas realizadas por pesquisadores russos foram esquecidas”.

Na medida em que os geneticistas eram silenciados, a União Soviética expandia as técnicas de Lysenko para outros locais, incluindo a Alemanha Oriental e a Tchecoslováquia. Mas foi na China que a combinação de coletivização da produção agrícola e o Lysenkoísmo provocaram o maior número de mortes. Entre 1958 e 1962, a Grande Fome resultante da reforma agrícola conduzida na China transformou Mao no maior assassino em massa da história mundial, segundo o historiador Frank Dikotter.

As ações de Lysenko foram implementadas como reforço a uma política de abandono das ações individuais dos fazendeiros russos. “A coletivização forçada do campo foi uma guerra declarada pelo Estado soviético contra toda uma nação de camponeses bem sucedidos. Com o tempo, o processo inteiro transformou-se em guerra contra os camponeses em geral”, diz o professor Daniel Fernandes. “Com a coletivização forçada do solo agrícola, a produção de grãos entrou imediatamente em declínio, logo seguida por acentuada queda na criação de gado. A iniciativa congênita do camponês foi cortada pela raiz, com sérias e inevitáveis consequências”.

Diante do fracasso da política, diz o professor, “Stalin reagiu tratando de encontrar um culpado. Acusou os funcionários do partido, afirmando que não haviam entendido corretamente as instruções que receberam”.

Lysenko acabaria perdendo espaço com a morte de Stalin, em 1953. Depois que o sucessor do ditador, Nikita Kruschev, denunciou os crimes do stalinismo, o agrônomo foi mantido na direção da Academia de Ciências Agrícolas da União Soviética, mas agora com atuação mais discreta.

Em 1964, Lysenko foi abertamente denunciado pelo físico Andrei Sakharov: “Ele é responsável por um recuo vergonhoso da biologia soviética, e da genética em particular, provocado pela disseminação de uma visão pseudocientífica”, escreveu. O agrônomo perdeu o cargo em 1965, quando a imprensa controlada pelo Estado passou a publicamente criticar seu trabalho e caracterizá-lo como pseudociência. Foi só então que as pesquisas russas sobre genética puderam ser retomadas. Ao morrer, em 1976, Trofim Lysenko recebeu um enterro discreto.


Notas / Referências:

  • [1]  "Tiago  Cordeiro é jornalista pós-graduado em Literatura Brasileira. Nascido em Curitiba, foi repórter das revistas Época e Veja, e editor da Aventuras na História. É autor de ‘A Grande Aventuras dos Jesuítas no Brasi’ e ‘Os Primeiros Brasileiros’. Foi indicado ao Prêmio Esso de Criação Gráfica e ganhou medalha de prata no Prêmio Malofiej. Colabora com a Gazeta do Povo desde 2016”. In: <https://www.gazetadopovo.com.br/autor/tiago-cordeiro/>. Acesso em: 26/07/2022.

26 julho 2022

A Ilha de Nazino: um lugar ainda pior do que os Gulags e Auschwitz

Por Rafael Azevedo [1]

 

Ilha canibal do Stalin [2]

Milhares de pessoas tiveram como destino uma ilha gelada e barrenta no meio da Sibéria. Sem ter o que comer, a situação descambou para o caos absoluto, com fuzilamentos, mutilações e canibalismo.

Hoje em dia – ou pelo menos até a pandemia de Covid-19 parar o mundo – barcos cheios de passageiros cruzam corriqueiramente um trecho do rio Ob, no meio da Sibéria, sem que a maioria dos seus passageiros se deem conta de por onde estão passando. Talvez uns poucos tenham ouvido seus pais e avôs comentarem o que aconteceu ali. Mas, se nem eles se lembram, imagine o resto do mundo.

Já no fim da década de 20 o regime soviético tinha começado a se revoltar contra inimigos, imaginários ou não, inaugurando com os kulaks (não confundir com gulags. Os kulaks eram os proprietários de terras considerados “burgueses” pelo regime comunista) a mania de mandar todo mundo de que não gostassem para a Sibéria. Mas com as dissidências internas do regime e a própria insânia inerente ao socialismo, a paranoia se instalou no regime e pessoas consideradas “desclassificadas e socialmente prejudiciais”, como comerciantes, camponeses que fugiam da fome, “ladrões de galinha”, ou qualquer um que simplesmente não se encaixasse no esquema de classes idealizado pelo Partidão ou tivesse deixado seu passaporte em casa, começaram a ser presas em Moscou e Leningrado, classificados como “parasitas da sociedade” e deportados para algum “campo de trabalho”.

Para o idealizador do plano, Genrikh Yagoda, chefe da política secreta da época e alguém que poderia apresentar um programa policial na TV soviética da época, tudo isso serviria para “purificar” as cidades. Mendigos e criminosos seriam mandados para colonizar e subjugar a Sibéria, enquanto a população local tinha que se virar com a falta de remédios, empregos, moradia, e viver à base de tubérculos e caça. Em 1931, um primeiro experimento foi feito pelo governo soviético: 800 pessoas consideradas “socialmente perigosas” foram despachadas para um lugar às margens do Ob, onde, sem comida e emprego, acabaram se revoltando e aterrorizaram a população local até serem exterminadas pelos nativos. 

O responsável pelo transporte dos “prisioneiros”, conhecido apenas como Comandante Tsepkov, depois de receber um telegrama de seus superiores ordenando acomodar “pelo menos 25.000 elementos” na região no início de maio, respondeu dizendo que conhecia os nativos da taiga e sabia que eles “eram excelentes caçadores”. Tsepkov esperava, no entanto, receber fazendeiros, gente especializada com a vida agrária. Quando foi informado pelos seus superiores que receberia milhares de “criminosos e desclassificados”, pouco pôde fazer.

Quatro barcas carregadas com cerca de cinco mil “dissidentes”, presos pelos mais variados e irrelevantes motivos, foram levados rumo ao Oceano Ártico em balsas usadas para carregar madeira. Depois de quatro dias de viagem e 900 quilômetros Sibéria adentro, em 18 de maio de 1933 os chamados “desclassificados” desembarcaram na ilha de Nazino. Uma ilha entre aspas. Um pedaço de lama e terra, em plena taiga siberiana. Um terreno pantanoso e infértil, cujas redondezas eram habitadas por tribos nativas hostis.

Os registros de embarque estavam tão ilegíveis que era quase impossível conferir a presença dos passageiros. Mas, ao que se conta, 332 mulheres e 4.556 homens conseguiram desembarcar, e 27 não resistiram à viagem. Os que sobreviveram desembarcaram com as parcas forças que tinham, sem qualquer roupa ou bagagem, e se depararam não só com a paisagem desolada da ilha, mas também com a falta de qualquer estrutura. Ao ver os prisioneiros, a frase de Tsepkov ficou para a história: “eles que pastem”. Muitos tentaram fugir, construindo jangadas improvisadas com o que encontravam pela frente, mas morreram depois de naufragar nas águas geladas ou fuzilados pelos guardas que o governo soviético tinha diligentemente designado para cuidar de dissidentes tão perigosos.

A única comida distribuída aos prisioneiros era uma pilha de farinha podre. À medida que o frio e a neve aumentaram, o Comandante Tsepkov tentou organizar duas equipes para construir fornos para assar pães. Quando questionado por Moscou, ele foi obrigado a responder que “os indivíduos desclassificados que alegavam conhecer todo tipo de trabalho, quando foram forçados a trabalhar, não sabiam fazer nada, especialmente como construir fornos!”

Dois dias depois, todo tipo de doença contagiosa já tinha se espalhado pela ilha. A sociedade local rapidamente se transformou numa espécie de “valetudo”, com grupos oriundos das cidades formando máfias para extorquir a população e, com o tempo, todos os outros habitantes das redondezas. Com o tempo, até o canibalismo foi “institucionalizado” e corpos passaram a ser encontrados mutilados, sem órgãos. Pessoas foram pegas com restos de fígados e outros órgãos alheios.

Os soldados e policiais responsáveis por “cuidar” do lugar acabaram se rendendo ao absurdo da situação, alguns extorquindo os habitantes para manter a coisa em segredo, mas muitos apelando aos superiores para narrar o desespero e detalhar a que ponto os locais tinham chegado. Tropas foram enviadas para a ilha, mas, em vez de trazer provisões ou transferir quem estava lá, a intenção dos militares era apenas reprimir os condenados, dizendo que o “sistema soviético tinha fracassado com eles”.

Enquanto isso tudo acontecia, Tsepkov, seus superiores e auxiliares se recusavam a informar os chefões. Talvez por medo de serem eles mesmos canibalizados por sua ideologia. A dificuldade de encontrar guardas dispostos a patrulhar o lugar era tamanha que foi necessário o uso de informantes entre a população de aldeias locais. Uma pessoa a cada doze famílias era incumbida de delatar casos de fuga e qualquer distúrbio da ordem pública, já que não eram poucos os casos de moradores da ilha que assaltavam as populações vizinhas e tentavam matar seus animais e roubar seus barcos para fugir.

Enquanto os documentos da época mostravam uma obsessão em implementar um sistema utópico de colônias administradas sob um sistema quase militar, o que se via na realidade era praticamente uma terra de ninguém. Um emissário do Departamento de Assentamentos Especiais enviado para inspecionar as condições do lugar ouviu de um dos locais: “Vocês estão fazendo as pessoas passarem fome. Bem, estamos comendo uns aos outros!” O sujeito obviamente foi preso por “propaganda contrarrevolucionária”, por “espalhar alegações envolvendo canibalismo e uma suposta fome causada pelo Estado soviético”. Para as autoridades, os rumores estavam sendo difundidos por dissidentes infiltrados em Nazino para contatar os “elementos desclassificados” que tinham sido enviados para lá, “numa clara demonstração de manipulação política conduzida por elementos externos”. 

A chegada de uma nova remessa de “dejetos humanos” à ilha agravou de tal maneira a situação em Nazino que, depois de alguns meses, autoridades do Partido Comunista ordenaram a transferência dos detentos para locais vizinhos, obrigando a população destes locais a fornecer pão, roupas e construir acomodações para os “elementos desclassificados”. O Comandante Tsepkov caiu em desgraça, acusado de “incompetência” e de “violar as resoluções do Partido com respeito à recepção dada aos assentados especiais”.

Nas semanas seguintes, a ilha começou a ser gradualmente esvaziada. Durante o processo de transporte dos prisioneiros, muitos estavam num estado de tamanha fragilidade que não resistiram à viagem. Outros tantos simplesmente “desapareceram” após desembarcarem. 157 estavam tão fracos que foram obrigados a continuar lá. A situação nos novos assentamentos, no entanto, não era muito diferente da que eles viviam na ilha de Nazino. Muitos que tentavam fugir eram simplesmente abatidos a tiros pelos guardas. 

Enquanto isso, um comitê de inspeção enviado pelo governo até a ilha determinou que o número de mortos em Nazino tinha sido “escancaradamente exagerado por motivos políticos”. O episódio foi mantido em segredo por décadas, até que, durante a glasnost, na década de 1980, um grupo ativista de direitos humanos chamado Memorial trouxe o assunto à tona, entrevistando sobreviventes e membros da população local. O relato de um desses últimos foi simplesmente estarrecedor: “Eles estavam tentando fugir [da ilha]. Perguntaram para nós: “Onde está a ferrovia? Nunca tínhamos visto uma ferrovia. Perguntaram: “Para que direção é Moscou? Leningrado? Estavam perguntando para as pessoas erradas. Nunca tínhamos sequer ouvido falar desses lugares. Somos ostiaques. As pessoas estavam fugindo, famintas. Tinham lhes dado um punhado de farinha, que eles misturaram com água para comer e imediatamente tiveram diarreia. As coisas que vimos! Pessoas morrendo por toda a parte, matando uns aos outros... na ilha havia um guarda chamado Kostia Venikov, um rapaz jovem. Ele se apaixonou por uma garota enviada para lá e estava tentando conquistá-la, procurava protegê-la. Um dia ele teve que se ausentar e pediu a um de seus colegas que ‘cuidasse dela’, mas não havia nada que aquele sujeito pudesse fazer diante daquela quantidade de pessoas... Agarraram-na e a amarraram numa árvore, cortaram seus seios, seus músculos, tudo que puderam comer, tudo, tudo... estavam famintos, precisavam comer. Quando Kostia voltou, ela ainda estava viva. Tentou salvá-la, mas já era tarde. Ela tinha perdido muito sangue”. 

O fracasso de Nazino pôs um fim ao sistema de “colonização” dos territórios de fronteira planejado pelo regime soviético usando elementos tidos como perigosos e “desclassificados”. Muitos membros do Partido ficaram chocados ao descobrir que amigos e colegas deles tinham sido enviados para lá, além de pessoas que não tinham cometido absolutamente nada de condenável. 

Mas Stalin e seus capangas ainda continuariam mandando por mais algumas décadas todos aqueles que julgavam indesejáveis para os gulags, onde, segundo algumas estimativas, mais de um milhão de pessoas morreram.


Notas / Referências:

  • [1]  Texto de Rafael Azevedo. In: As atrocidades do comunismo que você não apendeu na escola. Capítulo 1. Ebook publicado por Gazeta do Povo, pp. 07 a 13.

  • [2]  Imagem disponível em: <https://history.uol.com.br/historia-geral/prisioneiros-sofreram-horrores-na-ilha-canibal-do-stalin>. Acesso em: 21/07/2022.

21 julho 2022

Gulags: os campos de trabalho forçado na União Soviética

Por Tiago Cordeiro1

Aspecto do Gulag Perm-36 que hoje funciona como um museu 2


Criminosos, intelectuais, ‘“burgueses”, opositores. Não importava o delito, quem não seguia as regras do Partido Comunista era enviado para as regiões mais remotas da União Soviética e submetido a trabalhos forçados, castigos e torturas3.

Tudo começou em 1923, no campo especial das ilhas Solovestky, um arquipélago localizado no Mar Branco, a apenas 160 quilômetros do Círculo Ártico. A temperatura mais baixa registrada no local foi 36,5 graus Celsius negativos.

Conhecido por abrigar um complexo de mosteiros construído no século 15 pela igreja ortodoxa cristã, o local podia ser facilmente adaptado para se tornar um campo de prisioneiros, destino daqueles que se opusessem ao regime bolchevique que havia tomado o poder na Rússia. Além de isolado, ele tinha estruturas prontas, num contexto no qual as propriedades da igreja não pertenciam mais às congregações.

O local entrou para a história como o primeiro gulag. A expressão ficou conhecida no Ocidente a partir do momento em que a imprensa passou a se referir à sigla que, em russo, significa “Diretoria Central dos Campos”, ou Glavnoe Upravlenie Ispravitelno-trudovykh Lagerej. Entre os moradores da União Soviética, esses locais eram chamados apenas de “campos”.

Até que os últimos campos fossem fechados, em 1961, passaram pelos gulags 18 milhões de pessoas, com uma estimativa conservadora indicando que 1,7 milhão delas morreram. Os primeiros assassinatos aconteceram ainda no campo de Solovestky.

Foram mandados ao local religiosos, comerciantes, fazendeiros, adversários derrotados na guerra civil que havia assolado o país, além de seguidores de linhas políticas agora proibidas, como o anarquismo. Entre os prisioneiros estavam também artistas, como o escritor Konstantine Gamsakhurdia, o pintor Osip Braz e o poeta A. K. Gorsky.

A criação do campo de trabalhos forçados provocou a reação negativa de outros países, à qual o regime respondeu enviando o escritor e ativista Máximo Gorki, que escreveu um ensaio alegando que as condições não eram ruins. Não era verdade.

O local começou abrigando três mil pessoas e, antes de ser desativado, em 1939, chegou a conter 50 mil detentos que trabalhavam na construção de um canal na região. Eles dormiam no chão, ou em beliches sem colchões, e utilizavam banheiros externos, em latrinas cavadas na terra. A alimentação, insuficiente, era baseada em porções de pão, macarrão e batata. Os mais fortes e saudáveis recebiam mais comida, para continuar trabalhando mais.

As fugas eram frequentes — muitos presos se arriscavam em embarcações improvisadas, em busca de outras ilhas próximas, e dali para a Finlândia. Ao decidir fechar o local, o governo soviético determinou que 1.116 presos fossem executados a tiros — a maioria baleada na nuca, diante das próprias covas — e outras centenas de embarcações com presos fossem afundadas de propósito.

Uma detenta, a engenheira Yelizaveta Katz, estava grávida de oito meses quando o grupo do qual ela fazia parte foi escolhido para morrer, em fevereiro de 1938. Os guardas permitiram que ela tivesse o bebê. Três meses depois, a mataram. Ela tinha 28 anos. Em 1992, depois que a União Soviética se desfez, Solovestky foi devolvido à igreja ortodoxa, que reativou o monastério.

A primeira experiência com um gulag ensinou o regime soviético a repensar a estratégia utilizada para escolher os locais. O governo passou a optar por áreas isoladas e inóspitas, distantes das fronteiras, de forma a desestimular as fugas. Presos idosos ou doentes foram expulsos e largados para morrer fora dos campos de prisioneiros.

Ainda assim, alguns detentos sobreviviam a décadas de regimes de trabalho de 16 horas diárias e espancamentos frequentes. Leonid Petrovich Bolotov, por exemplo, resistiu por 20 anos. Preso com uma leva de 86 engenheiros detidos em Leningrado por se comportarem como “inimigos do povo”, ele foi enviado a Kolimá, região do extremo leste, rica em ouro e onde ficavam alguns dos campos mais conhecidos e temidos. Acabou sendo libertado e contou sua história em um livro autobiográfico.

Por outro lado, muitas práticas surgidas em Solovestky foram aplicadas aos demais locais. Por exemplo: as pessoas detidas por pensar ou se comportar de forma diferente da preconizada pelo regime eram consideradas mais perigosas. “Paradoxalmente, os criminosos enviados para o campo eram considerados ‘socialmente amigáveis’, já que não questionavam o governo comunista”, escreve o historiador Martyn Whittock no livro “The Secret History of Soviet Russia’s Police State: Cruelty, Co-operation and Compromise, 1917–91 (A história secreta do Estado policial da Rússia Soviética: crueldade, cooperação e queda)”, inédito no Brasil.

“Por isso, os criminosos comuns passaram a ser utilizados pelos guardas para ajudar a manter os presos políticos na linha, uma prática que se espalhou pelos outros campos e acrescentou uma camada de brutalidade e horror para a experiência da maioria dos detentos”.

Utilizar estruturas prontas, como mosteiros, também se tornou uma prática comum, já que economizava custos para construir os alojamentos. O principal objetivo também foi mantido: os presos eram obrigados a trabalhar, seja em fábricas construídas próximas aos gulags, seja na mineração.

Na década de 1940, o trabalho forçado respondia por 46,5% do total da extração de níquel, 76% do cobre e 60% do ouro do país, segundo uma pesquisa da historiadora Galina Mikhailovna Ivanova publicada no livro “Labor Camp Socialism: The Gulag in the Soviet Totalitarian System [Campo de trabalho socialista: o Gulag no sistema totalitário soviético]”, também sem edição no Brasil.

Grandes obras de infraestrutura foram construídas com base nessa categoria de trabalho escravo — caso da ferrovia BaikalAmur, que tem 4 mil quilômetros e liga a Sibéria até o extremo leste da Rússia. Em 1933, uma dessas obras terminou em tragédia: 6.700 prisioneiros morreram durante as obras para construir um gulag na ilha de Nazino, na Sibéria.

Sem materiais suficientes nem alimentação ou abrigo adequado, os detentos eram baleados pelos guardas diante de qualquer questionamento ou reação. Quem não morreu baleado foi vítima de doenças ou inanição — nas últimas semanas antes de a experiência ser abandonada, foram registrados casos de canibalismo. Apenas 2.200 sobreviveram.

O critério para que uma pessoa fosse presa e encaminhada para um gulag foi bastante ampliado durante o regime de Josef Stalin, especialmente entre metade dos anos 30 e o período da Segunda Guerra — entre 1942 e 1943, a taxa de mortalidade nos campos de prisioneiros alcançou 20%. Nessa época, contar uma piada sobre Stalin era o suficiente para acabar na cadeia.

Estima-se que foram construídos ao todo 30 mil campos, sendo que a população de cada um variava muito — alguns tinham 5 mil presos, enquanto que o gulag Vorkuta chegou a manter 73 mil prisioneiros no auge de suas atividades, em 1961.

Cerca de 20 milhões de pessoas passaram por eles, até que os campos foram gradativamente desativados depois da morte de Josef Stalin, em 1956. Mas pessoas continuaram a ser presas por motivações políticas até o fim da União Soviética, em 1991.

O último campo, conhecido como Perm36, operou até dezembro de 1987 – e permanece como o único antigo gulag ainda existente, após a destruição dos demais pelos governos soviéticos. Próximo aos montes Urais, o Perm36 foi convertido em um museu, mas cortes no orçamento do governo russo vêm ameaçando seu funcionamento nos últimos anos.

Notas:

  • 1 "Tiago Cordeiro é jornalista pós-graduado em Literatura Brasileira. Nascido em Curitiba, foi repórter das revistas Época e Veja, e editor da Aventuras na História. É autor de ‘A Grande Aventuras dos Jesuítas no Brasi’ e ‘Os Primeiros Brasileiros’. Foi indicado ao Prêmio Esso de Criação Gráfica e ganhou medalha de prata no Prêmio Malofiej. Colabora com a Gazeta do Povo desde 2016”. In: <https://www.gazetadopovo.com.br/autor/tiago-cordeiro/>. Acesso em: 06/05/2022.

  • 3Texto copiado na íntegra e extraído de: As atrocidades do comunismo que você não apendeu na escola. Capítulo 1. Ebook publicado por Gazeta do Povo, pp. 07 a 13.


19 julho 2022

Teorias sobre a origem do Homem (2): Criacionismo

"A Criação de Adão", obra de Michelangelo1

Como já vimos, a História, como ciência, estuda o passado das diferentes sociedades humanas... com base num estudo criterioso, investigativo e sistemático sobre a humanidade através dos tempos. E, para melhor identificar os fatos, historiadores costumam dividir o passado da humanidade em fases ou eras como Pré-história, Idade Antiga, Média, Moderna e Contemporânea. As teorias sobre a origem do homem, por exemplo, são estudadas na primeira fase: pré-história.
Duas teorias sobre a origem do homem são: evolucionismo e criacionismo. Já vimos sobre a primeira - o Evolucionismo – e neste post, veremos algumas considerações sobre o Criacionismo.
Obviamente, o que chamamos de "teoria" (no título do artigo) pode ter um significado maior do que simplesmente um "conhecimento especulativo, metódico e organizado de caráter hipotético e sintético". Entendemos que o Criacionismo pode receber o status de teoria científica, assim como já o fazem com o Evolucionismo na maioria ou (quase) todas as instituições de ensino do mundo. Ou seja, entendemos que embora o assunto seja polêmico, ele pode ser recebido como sendo parte das contribuições da ciência para o estudo da origem do homem.
Mas sabemos que o conceito de um conjunto de conhecimento reconhecido com o status de ciência pode mudar com o tempo. Por exemplo, até o século XVI o Geocentrismo – que afirmava ser a Terra o centro do Universo – era tido como ciência, e que foi deixada de lado a partir de Nicolau Copérnico, o qual sistematizou uma teoria – que ficou chamada de Heliocentrismo – que contrapunha àquele modelo, afirmando que "... a Terra e os demais planetas se moviam ao redor de um ponto vizinho ao Sol, sendo, este, o verdadeiro centro do Sistema Solar2". O Criacionismo também, até meados do século XIX3, era aceito quase que de forma universal no mundo alcançado pelo Cristianismo. Por causa da influência da teologia, considerada a "rainha" das ciências, os cristãos eram criacionistas e jamais ousavam por em dúvida as Escrituras. Foi a partir de Charles Darwin que o Evolucionismo foi pouco a pouco substituindo o Criacionismo de modo que hoje ele é apresentado em escolas e universidades não como uma hipótese, mas sim como um fato “cientificamente” comprovado, impenetrável a qualquer outra forma de pensamento, enquanto cristãos procuravam ficar com o Criacionismo apenas justificando suas bases religiosas e dogmáticas.
Mas muitos estudiosos hoje procuram entender o Criacionismo não apenas pelo lado religioso e dogmático mas também científico. “Tais homens de ciência afirmam não estar longe o dia em que a evolução será ensinada nas escolas, não como um fato, mas como a grande falácia dos séculos XIX e XX” 4. Na verdade, embora o Criacionismo, em linhas gerais, segue o modelo da criação, baseado nas Escrituras, em que “… todos os sistemas básicos da natureza foram trazidos à existência completos, prontos para pleno desempenho de suas funções”5 e que os seres vivos vieram à existência através de atos distintos de criação – “conforme sua especie” –, seguindo a ciência observacional, os criacionistas entendem que há vários processos da natureza que podem provocar mutações capazes de introduzir novidades genéticas em uma dada espécie, embora não ao ponto desta ou daquela espécie mudarem sua criação ou aspecto original. Também não creem que a vida possa ter se originado a partir da matéria sem vida, de um modo inteiramente ao sabor do acaso. Pelo contrário, há um Criador que do NADA fez todas as coisas e que “… findo o período de criação, cessaram os processos criativos, substituídos por processos de conservação, com o fim de preservar tudo que havia sido feito. Nesse contexto, tudo teria sido criado perfeito. Do infinitesimal protozoário aos grandes mamíferos; do minúsculo átomo às gigantescas galáxias, o universo foi criado em perfeita ordem e todos os seres vivos, inclusive o homem, estavam presentes desde o início”6.
As modificações que existem na criação, segundo os criacionistas, são processos normais e naturais e esses processos ocorrem de forma providencial, mas não implicam num processo de criação em si. “Podemos dizer que o mundo é o mesmo desde que foi criado, no sentido de que nada mais está se criando, mas não no sentido de fixismo. Isso significa que as espécies se adaptam para sobreviverem em seus ecossistemas, e as atividades sísmicas alteram aspectos geológicos. O importante é compreender que essa verdade é muito diferente de uma teoria de macro-evolução”7.
A terra e a criação são muito antigos como afirmam os evolucionistas? Algumas correntes criacionistas defendem que a Terra não é tão antiga assim. Uma destas correntes é o chamado Criacionismo da Terra-Jovem (CTJ), cujos princípios de interpretação se baseiam principalmente nos escritos de Henry Morris8, que defendem evidências científicas relacionadas à ‘Creation science’ que significa as evidências científicas como9:
- Repentina criação do universo, energia e vida, a partir do nada.
- A insuficiência da mutação e da seleção natural em suscitar o desenvolvimento de todas as formas de vida a partir de um único organismo.
- Mudanças apenas em limites fixos nos tipos originalmente criados de plantas e animais.
- Ancestralidade separada de humanos e primatas.
- Explicação da geologia da Terra por catastrofismo, incluindo a ocorrência de um dilúvio global.
- Uma origem relativamente recente da Terra e dos seres vivos.
Há outras correntes criacionistas, como por exemplo a da Terra-Antiga e a da teoria da Lacuna. Esta última, também chamada de “criacionismo de ruína-restauração”, se aproxima da teoria evolucionista de que a Terra é muito antiga (mas apenas neste aspecto), uma vez que “… esta posição apoia-se numa leitura alternativa dos primeiros versos da Bíblia, admitindo que há uma lacuna de tempo (Gap) indeterminado entre os versos 1 e 2 de Gênesis 1. O verbo hebraico normalmente traduzido como era em ‘E a terra era sem forma e vazia’ pode ser traduzido como ‘tornou-se’, o que resultaria no seguinte: Gn 1:1 – No princípio criou Deus os céus e a terra. Lacuna (GAP) – possíveis milhões de anos Gn 1:2 - E a terra se tornou sem forma e vazia10...”. Ou seja, houve uma recriação da Terra (tempo recente e em seis dias da criação) para consertar o caos em que ela se tornou (tempo antigo).
Bem, entendemos que o criacionismo é compatível com a abordagem científica referente a qualquer assunto. E também que a verdadeira ciência não entra em choque com a Bíblia, base de sua interpretação. Se não houver consenso em dado resultado de algum objeto estudado é porque a falha não está na Bíblia mas sim na sua interpretação. “Há fatos científicos estabelecidos que são consistentes com o criacionismo, e a forma pela qual esses fatos se relacionam entre si combinam com a interpretação criacionista. Da mesma forma que ideias científicas gerais são usadas para dar coerência a uma série de fatos, assim também ocorre com o criacionismo”11.
O evolucionismo defende os processos naturais de desenvolvimento das espécies, enquanto o criacionismo é definido como a crença de que o universo e organismos vivos se originaram de atos específicos da criação divina. Mas o naturalismo, assim como o criacionismo, requer uma série de pressuposições que não são geradas por experimentos. E assim, tanto o naturalismo como o criacionismo são fortemente influenciados por pressuposições que não podem ser testadas ou provadas, as quais entram nas discussões antes de quaisquer fatos: uma teoria, que pode se tornar científica. Seguindo então a lógica da teoria – conhecimento especulativo, metódico e organizado de caráter hipotético e sintético –, é justo dizer que o criacionismo é tão cientifico quanto o naturalismo e tão compatível com o método científico de descobrimento. Esses dois conceitos não são, no entanto, ciências em si mesmos, pois ambas as opiniões incluem aspectos que não são considerados “científicos” no seu sentido normal, mas teorias. Portanto, nem o criacionismo nem o naturalismo podem ser rejeitados ou negados; quer dizer, não há qualquer experimento que possa conclusivamente refutar um ou o outro. “Apenas tomando esses dois pontos como base – naturalismo x criacionismo – podemos ver que não há nenhuma razão lógica pela qual devemos considerar um como sendo mais científico que o outro (idem, Nota 11). Mais uma observação entre naturalismo e criacionismo é que o primeiro rejeita as crenças em milagres descritas na Bíblia. Nesse caso, “… o criacionismo, na verdade, como teoria propriamente dita, é melhor do que o naturalismo, pois ela possui evidências de declarações de milagres, já que as Escrituras nos fornecem narrativas documentadas de acontecimentos milagrosos. A caracterização do criacionismo como um conceito não científico por causa de milagres exige uma caracterização semelhante para o naturalismo” (Idem, Nota 11). Especificamente no que diz respeito ao debate entre a evolução e a criação, o próprio Charles Darwin defendeu esse argumento.
A base para a afirmação do resultado científico precisa ser a verdade. E “nem todos os cientistas concordam sobre qual é a verdade, mas quase todos concordam que um ou o outro tem que ser verdade” (Idem, Nota 11). E no caminho para além da teoria o criacionismo segue uma abordagem racional e científica à aprendizagem, como os conceitos de probabilidade realística, falta de evidência que sustente a macroevolução, a evidência da experiência etc. A suposta “crença” na criação não é uma barreira ao descobrimento científico, haja vista as grandes realizações de homens como Newton, Pasteur, Mendel, Pascal, Kelvin, Linnaeus e Maxwell, todos declaradamente criacionistas. Criacionismo não é uma “ciência”, assim como naturalismo não é uma “ciência”. Criacionismo é, no entanto, completamente compatível com a ciência propriamente dita.
A Bíblia faz referência a um dilúvio universal e depois disto, todos os homens no mundo de hoje, segundo Gênesis 9.1,19, descendem dos três filhos de Noé. Ou seja, todos os continentes foram, no decorrer dos tempos, ocupados pelos descendentes dos filhos de Noé: Sem, Cam e Jafet.
Mais sobre este assunto, sugiro os textos abaixo:

Veja ainda o vídeo a seguir:


Notas:

  • 1 Nesta obra, o pintor italiano Michelangelo executou a criação do afresco “A criação de Adão”, que retrata o exato momento em que Deus estabeleceu a criação do homem. In: <O Deus de Michelangelo>. Acesso em: 19/07/2022.
  • 5 Idem (Nota 3).
  • 6 Idem (Nota 3).

  • 8 Henry Madison Morris, “… criacionista da Terra Jovem, apologético cristão e engenheiro estadunidense. Foi um dos fundadores da Creation Research Society e do Institute for Creation Research, sendo considerado por muitos como ‘o pai da moderna ciência da criação’. In: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Henry_Madison_Morris>. Acesso em: 12/07/2022.
  • 10 GARROS, Tiago Valentim (Veja Nota 8. Pág. 27.