No início de 1990, pouco após o ditador romeno Nicolae Ceausescu ser deposto e executado em uma das tantas revoluções que varreram os regimes socialistas do Leste Europeu, o resto do mundo começou a conhecer a verdade sobre um dos países mais fechados do Leste Europeu.
Entre as revelações feitas na época, nenhuma chocou mais do que as imagens das centenas de orfanatos mantidos ao redor do país: um número estimado entre 100 mil e 170 mil crianças eram confinadas em instituições fétidas, com péssimas condições de saneamento e higiene, esquecidas pelo governo e praticamente sem contato humano. Muitas desenvolveram transtornos psicológicos e foram infectadas com doenças como hepatite B e Aids. Hoje, trinta anos mais tarde, os sobreviventes lutam por justiça.
Quando o ditador Nicolae Ceausescu assumiu o poder na Romênia, em 1965, seu país era pobre mesmo para os padrões da Europa Oriental. Tudo estava por ser feito naquele que era um dos estados mais obscuros do bloco socialista, e os planos grandiosos do novo líder para o futuro da nação envolviam promover um rápido crescimento populacional. Sua ideia, baseada nos projetos econômicos do stalinismo, parecia simples: quanto mais romenos jovens, mais mão de obra, mais produção — e, consequentemente, mais riqueza à disposição do Estado.
Não tardou para a Romênia se tornar, ao lado da Albânia, um dos países mais fechados de trás da Cortina de Ferro. Ao contrário de nações como a Polônia, a Hungria, a Tchecoslováquia ou a União Soviética, no caso romeno era raro haver, até mesmo, dissidentes famosos: o regime totalitário controlava a dissensão de maneira ainda mais sufocante do que os vizinhos, e ditava regras para todos os aspectos da vida cotidiana, inclusive questões íntimas como a reprodução e o tamanho “adequado” para as famílias romenas.
Para atingir mais facilmente suas metas econômicas, Ceausescu implementou o Decreto 770 logo em seus primeiros tempos de governo: a nova lei estabelecia regras e punições para desestimular os cidadãos a terem famílias pequenas. O ditador instituiu uma multa de até 30% sobre o salário de casais acima de 25 anos que não tivessem filhos. As cirurgias esterilizadoras foram proibidas para as mulheres de menos de 40 anos (e, mais tarde, 45 anos) que não tivessem pelo menos cinco crianças em casa. Outra lei da época determinou que os homossexuais, quando descobertos pela Securitate, a polícia secreta, seriam punidos ainda mais duramente do que antes: o “crime” rendia até cinco anos na cadeia e, com frequência, os presos eram mortos antes de recuperar a liberdade. A ordem do dia era garantir que nenhum lar da Romênia ficasse sem filhos.
A lei surtiu efeitos imediatos: já no primeiro ano após o decreto, a taxa de natalidade cresceu cerca de 13% no país. O “baby boom” romeno, que se seguiu pela década seguinte, fez com que as crianças nascidas nesse período recebessem o apelido de “decretei”, os “filhos do decreto”.
Com o tempo, porém, as mulheres que não queriam mais crianças passaram a utilizar métodos clandestinos para evitar ou interromper a gravidez — pílulas abortivas, por exemplo, começaram a ser contrabandeadas para o país e, embora vendidas ilegalmente e a preços altíssimos, chegaram às mãos de muitas romenas. Famílias influentes também contavam com as vistas grossas das autoridades. Segundo a Human Rights Watch, estimava-se ainda que o número de mortes relacionadas a abortos havia aumentado em até 600% nos anos imediatamente seguintes à lei.
Foi assim que, nos anos 80, quando o crescimento da população voltou a esfriar, Ceausescu aprofundou sua política de controle: em 1985, criou também os “Corpos de Comando Demográfico”, grupos médicos que ganharam o apelido de “polícia da menstruação” — ginecologistas enviados pelo governo faziam exames trimestrais nas mulheres, em seus locais de trabalho, para detectar gestações antes que elas fossem interrompidas. As grávidas que não viessem a dar à luz, por qualquer razão, eram investigadas pelo Estado e podiam ser presas.
Após o Decreto 770, os orfanatos romenos passaram a exercer uma função distinta daquela para a qual haviam surgido. Agora, em vez de atenderem principalmente a crianças que haviam perdido os pais, tornaram-se também repositórios de jovens oriundos de famílias sem condições de arcar com tantos filhos em casa. O próprio Estado estimulava essa decisão, com a propaganda governamental garantindo que as crianças seriam bem cuidadas e preparadas para a vida adulta. De fato, nos primeiros anos os “decretei” destinados aos orfanatos não sofreram tanto quanto aqueles nascidos nas décadas seguintes — apesar de estarem longe da qualidade anunciada pelo regime de Ceausescu, as instituições dispunham de recursos suficientes para operar dentro de um certo padrão.
A partir de 1982, no entanto, quando o governo iniciou sua tentativa de pagar a astronômica dívida externa da Romênia, grande parte dos serviços públicos começou a enfrentar uma constante falta de verbas — e manter os orfanatos funcionando adequadamente passou a ser uma das últimas prioridades.
No final dos anos 1980, às vésperas da derrubada do ditador, faltavam alimentos, roupas e remédios para os orfanatos. Dentro e fora das instituições, também haviam se tornado comuns os cortes no fornecimento de água e energia elétrica. Com o país inteiro na penúria, o pouco que chegava para suprir as crianças era rotineiramente furtado pelos funcionários, segundo relataram os sobreviventes dos orfanatos, anos mais tarde. Em 1989, o orçamento diário destinado a um orfanato romeno era inferior a dois centavos de dólar por criança (ou 14 lei, o valor na desvalorizada moeda local).
Os protocolos do governo também deixaram de ser seguidos à risca. Originalmente, as crianças ficavam em uma instituição até os três anos de idade e, após isso, transferidas para outra, onde ficavam até completar o sexto aniversário. Finalmente, elas passavam por uma avaliação física e psiquiátrica: as consideradas “normais” seguiam em instituições mantidas pelo Ministério da Educação, enquanto aquelas tachadas de “irrecuperáveis” ou “improdutivas” (em razão de alguma deficiência ou dificuldade de aprendizado) eram entregues a órgãos ligados, ironicamente, ao Ministério do Trabalho.
Diante da falta de recursos, os já controversos critérios foram afrouxados — as crianças agora eram destinadas ao prédio que tivesse espaço para recebê-las, independentemente da filosofia seguida ali. De modo geral, as práticas se tornaram parecidas: os responsáveis pelos orfanatos eram orientados a não conversar com as crianças e a não responder se estivessem chorando. O objetivo, alegavam os especialistas do governo, era “acostumá-las” a não depender de alguém, já que havia poucos funcionários para dar atenção a todas.
As crianças não eram abraçadas, não participavam de brincadeiras e não recebiam qualquer estímulo emocional. Em geral, eram apenas alimentadas e limpas. Nas instituições para “irrecuperáveis”, como Cighid, perto da fronteira com a Hungria, nem isso: a falta de atenção e higiene chegava a provocar taxas de mortalidade de até 50% em um único ano.
O brutal regime de Nicolae Ceausescu chegou a um fim abrupto em dezembro de 1989. Com a queda do Muro de Berlim servindo de exemplo aos movimentos que cobravam o fim dos regimes socialistas, Ceausescu se viu encurralado: cada vez mais impopular em função de duas décadas de desmandos e perdendo o controle de seus subordinados mais próximos diante das pressões econômicas, o ditador tentou fugir em 22 de dezembro, após uma série de protestos tomarem as ruas de Bucareste.
Ceausescu e a esposa, Elena, foram capturados três dias mais tarde, julgados sumariamente por um tribunal montado pelo novo governo provisório, e condenados por crimes de genocídio e acúmulo ilícito de riquezas — antes que a noite de Natal terminasse, os dois haviam sido executados por um pelotão de fuzilamento. O fim da ditadura comunista na Romênia não trouxe mudanças imediatas ao país: muitos membros da Securitate se beneficiaram da desestatização da economia, assumindo o controle de importantes setores e se tornando oligarcas aos moldes russos — reformas mais profundas só começariam a aparecer em 1997, após a eleição de um opositor para o governo.
Ainda assim, apesar da lenta transição, a vontade do novo governo de se diferenciar dos dias de Ceausescu fez com que já no início dos anos 90 a Romênia se abrisse para o Ocidente, denunciando os horrores do regime anterior. As cenas que mais chocaram o resto do mundo foram aquelas gravadas no interior dos orfanatos, cuja realidade havia sido tornada pública pela primeira vez, dentro e fora do país.
“As duas coisas que eu lembro mais vividamente, e que vão ficar comigo para sempre: o cheiro de urina e o silêncio de tantas crianças”, relatou o britânico Bob Graham, repórter do Daily Mail que esteve entre os primeiros estrangeiros a visitar uma instituição romena em janeiro de 1990, em entrevista ao GlobalPost.
“Normalmente quando se entra em uma sala cheia de berços com crianças dentro, a expectativa é de barulho, conversa ou choro, às vezes um choramingo. Não havia coisa alguma, mesmo com as crianças acordadas. Elas deitavam em seus berços, às vezes duas ou três em uma mesma cama, e ficavam olhando. Em silêncio. Era assustador, quase sinistro”.
As câmeras internacionais mostraram uma fração da realidade vivida diariamente nos orfanatos de Ceausescu: crianças vestidas com roupas parecidas, que às vezes não lhes serviam direito, com frequência sujas, sempre com o mesmo corte de cabelo – muito curto, independentemente do gênero, para evitar piolhos.
Quando um visitante entrava nos salões, as crianças corriam para abraçá-lo. Era a “afabilidade indiscriminada”, assim descrita pelo neurocientista David Eagleman em “Cérebro: uma biografia”: “Embora esse tipo de comportamento indiscriminado pareça meigo à primeira vista, é uma estratégia que crianças negligenciadas usam para lidar com essa situação e está ligada a problemas de apego de longo prazo”.
O choque causado pelas imagens provocou uma onda de adoções de crianças romenas por famílias da Europa Ocidental, dos Estados Unidos e do Canadá. Nos quase trinta anos desde então, acompanhadas por psicólogos, seu crescimento e desenvolvimento foram estudados — e ajudaram a compreender a importância dos anos iniciais e a forma como eles se refletem na vida adulta.
As péssimas condições das instituições romenas deixaram muitas crianças com sequelas físicas e psicológicas que repercutem ainda hoje. Charles Nelson, médico do Hospital Infantil de Boston, avaliou 136 crianças em Bucareste: após submetê-las a exames de eletroencefalografia, viu que sua atividade neural era muito reduzida — o QI daqueles internados oscilava entre 60 e 70, quando a média para a sua faixa etária batia nos 100 pontos.
Outro levantamento, que incluiu crianças adotadas por famílias no Reino Unido, mostrou que, embora o nível de QI geralmente voltasse ao normal ao longo dos anos, esses jovens ainda tinham mais dificuldades de sociabilidade — apresentando, por exemplo, maiores taxas de desemprego do que crianças adotadas que não haviam passado pelos orfanatos de Ceausescu.
Ainda nos anos 1990, a neurobióloga Mary Carlson e o marido, o psiquiatra Felton Earls, ambos de Harvard, também investigaram a situação das crianças internadas nas instituições que, naquele momento, não haviam mudado muito. Seu estudo se centrou no cortisol, o chamado hormônio do estresse, e mostrou que as crianças possuíam níveis completamente fora dos padrões para a sua idade: nelas, o pico de cortisol acontecia no meio da tarde e seguia alto até à noite.
O cortisol ajuda a nos manter preparados para situações de perigo mas, em excesso, tem efeitos profundos sobre o cérebro: pode reduzir a capacidade de memória e causar sintomas de depressão e a síndrome de estresse pós-traumático.
Graças aos efeitos de uma criação sem laços humanos, muitos romenos acreditavam que os órfãos do país eram utilizados nas fileiras da Securitate. Para Mary Carlson, a hipótese era plausível: “eles eram ótimos membros para a polícia secreta”, disse, em uma entrevista à Harvard Magazine. “Como elas não têm qualquer senso de lealdade social, perdem as emoções sociais básicas”. Outro drama que afligiu aqueles crescidos nos orfanatos romenos foi uma chocante epidemia de Aids. Para driblar a falta de alimentos, era comum que as enfermeiras de muitas instituições aplicassem microtransfusões nas crianças sob seus cuidados: injetando sangue que não havia sido devidamente testado para doenças e reutilizando seringas não esterilizadas, vírus como o HIV e o HBV (da hepatite B) foram disseminados para orfanatos inteiros.
No início dos anos 90, incríveis 94% dos casos de Aids na Romênia afetavam crianças menores de 13 anos. Na virada do século, o país respondia por 60% das infecções por HIV em toda a Europa, a maioria afetando crianças contaminadas por transfusões.
A situação dos orfanatos romenos começou a mudar drasticamente nos anos 2000, quando o país buscou a entrada na União Europeia e uma das exigências do bloco era a revisão completa do sistema de atenção aos menores desacompanhados na Romênia.
Desde então, o governo estabeleceu um programa nacional para substituir as grandes instituições do passado por um sistema de adoção temporária em casas de família ou em pequenos orfanatos, muito menores que os antigos.
Também se tornou ilegal para as famílias abandonarem suas crianças em instituições estatais antes de o bebê completar dois anos de idade, salvo em caso de deficiências graves. Além disso, as políticas draconianas exigindo um número mínimo de filhos por casal foram imediatamente suspensas com o fim da ditadura.
Como resultado das políticas adotadas após a Revolução de 1989, o número de crianças institucionalizadas, superior a 100 mil no fim do regime de Ceausescu, havia baixado para 8 mil em 2016. A Romênia também prometeu acabar inteiramente com os orfanatos estruturados à moda antiga até 2022. Embora ainda seja proporcionalmente o país mais pobre da União Europeia (os romenos entraram no bloco onze anos atrás), a economia do país tem passado por um ciclo de crescimento acelerado nos últimos anos. Com a mudança no perfil socioeconômico da população, despencou a necessidade artificial por orfanatos causada na época do Decreto 770.
Muitos dos jovens que cresceram nas instituições estatais e não foram adotados, porém, hoje vivem na indigência, marginalizados dentro da sociedade romena. Desde 2014, a Federeii, uma organização formada pelos “órfãos” de Ceausescu, busca chamar atenção para o problema dos “decretei”. Hoje adultos entre 30 e 40 anos de idade, eles cobram do governo atual políticas de reparação e indenizações pelos danos sofridos ainda na infância.
Referência bibliográfica:
- BRUM, Maurício. Infância perdida: como a Romênia comunista destruiu uma geração inteira de crianças. In: As atrocidades do comunismo que você não aprendeu na escola – Ebook, pp. 46-59. Gazeta do Povo. Acesso em: 1º/08/2022.
Notas:
- [1] BRUM, Maurício. Infância perdida: como a Romênia comunista destruiu uma geração inteira de crianças (Vide Referência bibliográfica).
- [2] Imagem disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/ideias/como-a-romenia-comunista-destruiu-uma-geracao-inteira-de-criancas-1o1hx7mx8iwhyxliea2jhk8cf/?#success=true>. Acesso em: 1º/o8/2022.