A era dos mártires (I): Cristianismo e história
Por
GONZÁLEZ, Justo L. E até aos confins da Terra: uma história ilustrada do Cristianismo: a era dos mártires – Vol. 1. São Paulo: Vida Nova, 1995 (Reimpressão), pág. 011 a 014.
Texto adaptado ao novo
Acordo Ortográfico
Por:
Alcides Barbosa de amorim.
“Naqueles dias foi
publicado um decreto de César Augusto, convocando toda a população do império
para recensear-se” (Lucas 2.1).
Desde as suas próprias
origens, o evangelho se inseriu na história humana. De fato, isso é o
evangelho: as boas novas de que, em Jesus Cristo, Deus se introduziu em nossa
história, em prol de nossa redenção.
Os autores bíblicos
não deixam lugar a dúvidas acerca disto. O Evangelho de São Lucas nos diz que o
nascimento de Jesus teve lugar na época de César Augusto, e "sendo
Quirino, governador da Síria" (Lucas 2:2). Pouco antes, o mesmo evangelista
coloca sua narração dentro do marco da história da Palestina, dizendo-nos que
estes fatos sucederam "nos dias de Herodes, rei da Judeia" (Lucas
1:5). O Evangelho de São Mateus começa com uma genealogia que enquadra Jesus
dentro da história e das esperanças do povo de Israel, e quase imediatamente
nos diz também que Jesus nasceu "nos dias do rei Herodes" (Mateus
2:1). Marcos nos dá menos detalhes, mas não deixa de assinalar que sei] livro
trata do que "aconteceu naqueles dias" (Marcos 1:9). O Evangelho de
São João quer assegurar-se de que não pensemos que todas estas narrações tenham
um interesse meramente transitório, e por isso começa afirmando que o Verbo que
foi feito carne no decurso da história humana (João 1:14) é o mesmo que
"estava no princípio com Deus" (João 1:2). Mas, depois de tudo, o
resto deste evangelho se apresenta como uma narração da vida de Jesus. Por
último, um interesse semelhante pode se ver na Primeira Epístola de São João,
cujas primeiras linhas declaram que "o que era desde o princípio" é
também "0 que temos ouvido, o que temos visto com nossos olhos, o que
temos contemplado. e as nossas mãos apalparam" (I João 1:1).
Esta importância da
história para compreender o sentido de nossa fé não se limita à vida de Jesus,
mas engloba toda a mensagem bíblica. No Antigo Testamento: boa parte do texto
sagrado é de caráter histórico. Não só os livros que geralmente chamamos
"históricos", mas também os livros da Lei – por exemplo, Génesis e Êxodo
– e dos profetas nos narram uma história em que Deus se revelou ao seu povo. À
parte dessa história, é impossível conhecer essa revelação.
Também no Novo
Testamento encontramos o mesmo interesse pela história. Lucas, depois de
completar seu evangelho, seguiu narrando a história da igreja cristã no livro
de Atos. Isto não fez Lucas por simples curiosidade antiquária. Ele o fez,
principalmente, por fortes razões teológicas. Com efeito, segundo o Novo
Testamento, a presença de Deus entre nós não terminou com a ascensão de Jesus.
Ao contrário, o próprio Jesus prometeu aos seus discípulos que não os deixaria
sós, mas que lhes enviaria outro Consolador (João 14:16-26). E no princípio do
livro de Atos, imediatamente antes da ascensão, Jesus lhes disse que receberiam
o poder do Espírito Santo, e que em virtude disso seriam testemunhas "até
aos confins da terra" (Atos 1:8). A vinda do Espírito Santo, no dia de
Pentecoste marca o começo da vida da igreja. Portanto, o que Lucas está
narrando no livro que geralmente chamamos "Atos dos Apóstolos" não é
tanto os atos dos apóstolos como os atos do Espírito Santo através dos
apóstolos. Lucas escreve então dois livros, o primeiro sobre os atos de Jesus
Cristo e o segundo sobre os atos do Espírito. O segundo livro, entretanto,
quase parece haver ficado incompleto. No final de Atos, Paulo está ainda
pregando em Roma, e o livro não nos diz o que aconteceu com ele ou com o resto
da igreja. Isto tinha de ser assim, porque a história que Lucas está narrando,
necessariamente, não há de ter um finai até que o Senhor venha.
Naturalmente isto não
quer dizer que toda a história da igreja tenha o mesmo valor e a mesma
autoridade que o livro de Atos. Ao contrário, a igreja sempre creu que o Novo
Testamento e a idade apostólica têm uma autoridade única. Do ponto de vista da
fé, a história da igreja ou do cristianismo é muito mais que a história de uma
instituição ou de um movimento qualquer. A história do cristianismo é a
história dos atos do Espírito entre os homens e as mulheres que nos precederam
na fé.
Às vezes, no curso
desta história haverá momentos em que nos será difícil ver a ação do Espírito
Santo. Haverá quem utilizará a fé da igreja para enriquecer-se ou para
engrandecer seu poderio pessoal. Outros haverá que se esquecerão do mandamento
do amor e perseguirão aos seus inimigos com uma fúria indigna do nome de
Cristo. Em alguns períodos parecerá que toda a igreja abandonou por completo a
fé bíblica, e teremos de nos perguntar até que ponto tal igreja pode
verdadeiramente chamar-se cristã. Em tais momentos, talvez nos convenha
recordar dois pontos importantes.
O primeiro destes
pontos é que a história que estamos narrando é a história dos feitos do
Espírito Santo, sim; mas é a história desses atos entre pessoas pecadoras como
nós. Isto se pode ver já no Novo Testamento, onde Pedro, Paulo e os demais
apóstolos são apresentados, ao mesmo tempo, como pessoas de fé e pecadores
miseráveis. E, se esse exemplo não nos basta, olhemos aos "santos" de
Corinto a quem Paulo dirige sua primeira epístola.
O segundo ponto que
devemos recordar é que foi precisamente através desses pecadores e dessa
igreja, que aparece às vezes corno totalmente descarrilhada, que o evangelho
chegou até nós. Ainda através dos séculos mais escuros da vida da igreja, nunca
faltaram cristãos que amaram, estudaram, conservaram e copiaram as Escrituras e
que desse modo as fizeram chegar aos nossos dias. Além disso, segundo o que
iremos ver no curso desta história, nosso próprio modo de interpretar as
Escrituras não deixa de manifestar o impacto dessas gerações anteriores.
Uma e outra vez através dos séculos o Espírito Santo tem estado chamando o povo de Deus a novas aventuras de obediência. Nós também somos parte dessa história, desses atos do Espírito.
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