Por: Alcides Amorim
Tribunal de dogmas [1]
Já falamos um pouco sobre ética bíblica;
ética x
moral e ceticismo, que entendemos ser assuntos
interrelacionados. Mais um tema correlacionado a estes é o conceito de dogmatismo.
O
dogmatismo, ao contrário do ceticismo,
refere-se à crença em verdades absolutas e inquestionáveis, geralmente
baseadas em princípios estabelecidos ou em autoridades
reconhecidas. Implica na adoção de uma postura de firme convicção, sem
espaço para dúvidas ou críticas. Sua fundamentação tem conexão principalmente com
os contextos religioso e filosófico/jurídico/cultural. Por isso, quero destacar
este assunto em duas partes: neste artigo, destacando o conceito
teológico-cristão, ou seja, o dogmatismo e sua relação com a ética e a
fé, e num outro momento, o seu conceito filosófico em conexão com a ética:
ética dogmática.
1. Dogma
No Novo Testamento, a palavra dogma (do
grego, δόγμα) refere-se a um decreto, ordenança, decisão ou mandamento sagrado
(divino) e/ou de autoridades civis. Por exemplo, em Lucas 2.1, o termo “dogma”
é usado como “decreto” de César Augusto para que todos fossem recenseados; em Atos
16.4, "dogma" é usado para descrever as decisões tomadas pelos
apóstolos e anciãos em Jerusalém para que os gentios não precisassem se
circuncidar, mas apenas se abstivessem de idolatria, fornicação e sangue; em
Efésios 2.15, Paulo fala sobre a "lei dos mandamentos expressos em
ordenanças" (dogmas em algumas traduções), que Jesus removeu ao abolir a
lei cerimonial judaica; em Colossenses 2.14, “dogma” é utilizada como
“ordenanças” ou dívidas que foram pagas por Cristo na cruz e assim por diante.
No breve resumo teológico sobre dogma, Donald
K. McKIM [2]
destaca que na filosofia grega posterior, o uso legal do termo “dogma” era
abrangido como proposições doutrinárias que expressavam o ponto de vista
oficial de um mestre ou escola filosófica em particular.
A teologia cristã primitiva finalmente veio a
usar o termo da mesma maneira. Basílio Magno, em meados do século IV,
distinguiu entre o kërygma [3]
e os dogmas cristãos no sentido das proposições de fé. A primeira aprovação que
a igreja deu a declarações "dogmáticas" ocorreu em 325, no Concilio
de Nicéia, onde a consubstancialidade do Filho com o Pai foi declarada como uma
confissão de fé.
Na Idade Média, a Igreja Católica Romana
desenvolveu o conceito do depositum fidel ("depósito de
fé") [4],
segundo o qual considerava-se que à igreja era confiado um certo depósito de
verdades cujas ramificações podiam ser licitamente desenvolvidas pela igreja.
Finalmente, através do Concilio de Trento (1545-63) e o Primeiro Concilio
Vaticano (1870), os pronunciamentos dogmáticos da Igreja Católica passaram a
ser considerados infalíveis. Assim, o dogma era visto no catolicismo romano,
até mesmo antes da Reforma, como uma verdade cujo conteúdo objetivo é revelado
por Deus e definido pela igreja. Isto é feito mediante um concilio
eclesiástico, por um papa ou através da propagação geral do dogma nos ensinos
da igreja.
Desde a Reforma, o protestantismo tem
rejeitado a associação entre o dogma e os pronunciamentos eclesiásticos infalíveis.
Segundo o pensamento da Reforma, todos os dogmas devem ser testados em
comparação com a revelação de Deus nas Sagradas Escrituras. Conforme observou
Karl Barth: "A Palavra de Deus está tão acima do dogma quanto os céus
estão acima da terra" (In: Dogmática Eclesiástica...). Além disso,
para os reformadores, a fé é confiança pessoal em Deus e relacionamento com Ele
mediante Jesus Cristo, não basicamente a anuência àquilo que a igreja ordena
que seja crido. "Dogma" veio a significar uma expressão de verdade
doutrinária que obteve o "status" eclesiástico, porém sem
reivindicações à infalibilidade.
A obra escrita em 1845 por John Henry Newman,
An Essay on the Development of Christian Doctrine (Um Ensaio sobre o
Desenvolvimento da Doutrina Crista), foi uma contribuição seminal para o
surgimento de questões a respeito das tradições, dos desenvolvimentos e das
ligações das ideias cristãs. Os estudiosos alemães tais como Ferdinand
Christian Baur e Adolf Harnack submeteram os desenvolvimentos históricos dos
dogmas e doutrinas cristãos ao escrutínio crítico [5].
De pontos de vista diferentes, a
mesma coisa foi feita por três teólogos escoceses: William Cunningham, Robert
Raimy e James Orr.
Karl Barth reinterpretou o antigo uso
católico-romano no protestantismo moderno ao definir o dogma como "a
concordância entre a proclamação feita pela igreja e a revelação atestada nas
Sagradas Escrituras" (Dogmática Eclesiástica...). Os dogmas são as
formas nas quais o dogma aparece. O dogma torna-se, em última análise, um
"conceito escatológico", visto que nenhuma formulação humana
chegará a concordar completamente com a Palavra de Deus antes do reino final de
Deus, segundo diz Barth. A pesquisa dogmática, no entanto, pode estar livre
para trabalhar com dogmas individuais e apreciá-los como tentativas de se
expressar a verdade da revelação.
2. Dogmática e/ou Teologia Sistemática
A dogmática é o ramo da teologia que
procura expressar as crenças e doutrinas (dogmas) da fé cristã – demonstrar
"todo o desígnio de Deus" (At 20.27) de um modo organizado ou
sistemático. Visto que nenhum teólogo dogmático trata somente dos
"dogmas" da igreja, esta disciplina atualmente é mais conhecida por
"teologia sistemática" ou simplesmente "teologia".
Os
teólogos dogmáticos ou sistemáticos geralmente ocupam-se das fontes bíblicas e
do apoio às doutrinas da fé, da história do desenvolvimento de tais doutrinas,
dos dogmas contrastantes de outras comunidades da fé e das opiniões de outros
teólogos que tratam de tais doutrinas. Pelo fato de esta disciplina aplicar-se
à totalidade, e não somente a doutrinas específicas, a teologia sistemática
sempre reflete uma comunidade específica da fé católico-romana, a ortodoxia
oriental, a luterana, a reformada, a liberal, a neo-ortodoxa, a
existencialista, etc.
Bem,
num sentido mais didático, a teologia dogmática [6]
recebe esse nome da palavra grega e latina dogma, a qual, ao se
referir à teologia, simplesmente significa "uma doutrina ou corpo de
doutrinas formalmente e autoritariamente afirmada". Basicamente, a
teologia dogmática refere-se à teologia oficial ou "dogmática" como
reconhecida por uma certa igreja, como a Igreja Católica Romana, Igreja
Reformada Holandesa, etc.
Enquanto
se pensa que o termo teologia dogmática tenha aparecido pela
primeira vez em 1659 no título de um livro de L. Reinhardt, o termo se tornou
mais amplamente utilizado após a Reforma e foi usado para designar os artigos
de fé que a igreja tinha formulado oficialmente. Um bom exemplo de teologia
dogmática encontra-se nas declarações ou dogmas doutrinários que foram
formulados pelos primeiros conselhos da igreja que procuraram resolver
problemas teológicos e tomar uma posição contra o ensino herético. Os credos ou
dogmas que vieram desses conselhos foram considerados autoritários e
vinculativos para todos os cristãos porque a igreja os afirmara oficialmente.
Um dos propósitos da teologia dogmática é permitir que uma igreja formule e
comunique a doutrina que é considerada essencial para o Cristianismo e que, se
negada, constituiria heresia.
Mas
na resposta à pergunta O que é a teologia dogmática?, o Ministério Got
Questions difere teologia dogmática de teologia sistemática. A teologia
dogmática às vezes é confundida com a teologia sistemática, e os dois termos
são às vezes utilizados de forma intercambiável. No entanto, existem diferenças
sutis, mas importantes, entre os dois. Para entender a diferença entre a
teologia sistemática e teologia dogmática, é importante notar que o termo
"dogma" enfatiza não apenas as afirmações da Escritura, mas também a
afirmação eclesiástica e autoritária dessas declarações. A diferença
fundamental entre a teologia sistemática e a teologia dogmática é que a
teologia sistemática não requer sanção ou aprovação oficial por parte de uma
igreja ou de um corpo eclesiástico, enquanto que a teologia dogmática está
diretamente ligada a um determinado corpo ou denominação da igreja. A teologia
dogmática normalmente discute as mesmas doutrinas e muitas vezes usa o mesmo
esboço e estrutura que a teologia sistemática, mas faz isso de uma posição
teológica particular, afiliada a uma denominação ou igreja específica.
Também
podemos diferenciar dogma de doutrina e, nesse caso, fazer uma
correlação – sob o enfoque cristão protestante – entre teologia, dogma e
doutrina:
· Teologia sistemática,
esforço organizado de compreender, de forma lógica e coerente, as verdades
reveladas nas Escrituras sobre Deus, o ser humano, a salvação, a igreja e os
eventos futuros. Ela busca reunir todos os ensinamentos bíblicos em um sistema
unificado.
· Dogmas: verdades centrais e
inegociáveis da fé cristã, como a Trindade, a divindade de Cristo e a
ressurreição. São verdades inquestionáveis inseridas nas doutrinas oficialmente
reconhecidas pelas igrejas como essenciais para a salvação e identidade cristã.
· Doutrinas: ensinamentos
derivados das Escrituras que instruem a vida e a prática da fé, podendo variar
entre tradições denominacionais. No caso específico dos protestantes, no
entanto, as Escrituras têm a autoridade final sobre a definição dogmática de um
ponto ou item de um conjunto de doutrinas. Toda doutrina pode ser parte da
teologia sistemática, mas nem toda doutrina é dogma. Assim, a teologia
sistemática organiza as doutrinas e reconhece os dogmas, formando uma base
sólida para a fé e a vida cristã.
Concluindo,
por aqui, como foi nossa intenção neste post, tentamos analisar o dogma como
uma verdade estabelecida como fundamental e indiscutível dentro de um sistema
religioso, especialmente no cristianismo, e dogmatismo, como a atitude
de aceitar ou impor ideias como absolutas e inquestionáveis, sem admitir
questionamento ou debate. Enquanto o dogma pode ter base revelada e reconhecida
por uma tradição, o dogmatismo é mais uma postura rígida e fechada ao diálogo,
que pode ocorrer tanto na religião quanto em outras áreas, como a política ou a
filosofia. Resumindo: dogma é o conteúdo (o que se crê); dogmatismo
é a postura (como se crê e se defende).
Veja
também:
Notas:
- [1] Tribunal de dogmas: Imagem ilustrativa feita por Inteligência do Artificial do chatgpt, em 12/07/2025.
- [2] McKIM, Donald K. Dogma (texto adaptado). R.B.
- [3] Dogma x kerygma: “Em termos simples, o kerygma é o anúncio inicial do Evangelho, a mensagem central de Jesus Cristo, enquanto dogma é uma verdade de fé definida pela Igreja como revelada por Deus e obrigatória para todos os fiéis. O kerygma é o ponto de partida, a proclamação da Boa Nova, enquanto o dogma é uma formulação clara e definitiva dessa fé“. Veja mais este resumo (Kerygma x Dogma), muito bem feito por I. A. do Google. Veja também: kerygma.
- [4] Sugiro a leitura de meu artigo: O depósito da fé: cânon, sucessão apostólica, tradição e outras considerações.
- [5] Escrutínio crítico: “... refere-se à análise detalhada e avaliativa de algo, com o objetivo de identificar pontos fortes, fracos, erros ou inconsistências. Envolve uma investigação cuidadosa e questionadora, indo além de uma simples observação. Pode ser aplicado a diversos contextos, como textos, ideias, ações, políticas ou até mesmo pessoas...” (I.A., Google).
- [6] O que é a teologia dogmática? In: Ministério Got Questions (R.B.).
Referências Bibliográficas:
GOT QUESTIONS. O que é teologia dogmática? Disponível em: teologia
dogmática. Acesso em: 11/07/2025.
KLOOSTER, Fred H. Dogmática. In: Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. I. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág. 493 e 494.
MCKIM, Donald K. Dogma. In: Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. I. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág. 490 e 491.